“Segundo os nagôs igbómìnà, no início da humanidade, em um pobre vilarejo, o chefe de uma família, que exercia a profissão de agricultor, recebeu de sua esposa a notícia de que seria pai pela décima sexta vez.
Ao ser comunicado, disse-lhe de imediato: ‘Mulher, por que engravidaste outra vez?
Esqueceste das dificuldades que estamos enfrentando?’
A mulher respondeu-lhe: ‘Um a mais, um a menos na miséria que estamos, não fará diferença’[1].
Nove meses se passaram.
No fim dos mesmos, a mulher entrou em trabalho de parto. Logo após ter dado a luz ao décimo sexto filho, a esposa do agricultor faleceu.
Desesperado, o pobre homem começou a oferecer a quem quisesse apadrinhar a pobre e infeliz criança.
Desgraçadamente, nenhuma das pessoas a quem o agricultor ofereceu aceitou, pois sabiam que, ao aceitar, teriam que amparar, criar e educar o rebento.
Após alguns dias, o pobre agricultor, sem ter nada para dar de comer aos seus quinze filhos, tampouco alimentar o recém-nascido, começou a blasfemar.
O desespero foi tanto que, em determinado momento, começou a clamar pelo espírito da morte, que viesse buscá-lo e seus dezesseis filhos.
Em determinado momento, um redemoinho começou a surgir diante do miserável agricultor.
Do interior dessa manifestação, aparece um homem de aparência macabra. Apavorado, ele tenta correr para dentro de casa, entretanto uma força sobrenatural o impediu de mover-se.
Quando a poeira assentou, o homem lhe dirigiu a palavra: ‘Estou ciente de que percorreste todo o vilarejo oferecendo teu filho como afilhado (gbígbàtó) a quem quer que fosse. Sei também que ninguém o aceitou tê-lo como pupilo.
Assim sendo, ofereço-me a apadrinhá-lo e retirá-los juntamente da miséria em que se encontram’. Sem eira nem beira, o pobre agricultor não teve outra opção a não ser aceitar a proposta de Ìkú.
O tempo passou.
A promessa de Ìkú cumpriu-se na íntegra. A família do agricultor deixou para trás todos aqueles dias de infortúnio.
Quando Yíyàn[2], o afilhado do Senhor dos Mortos, atingiu a adolescência, o Ìrúnmólè Ìkú foi visitá-lo.
Um arrepio percorreu todo o corpo do agricultor.
Desconcertado com aquela visita, indagou Ìkú: ‘A que devo a honra da vossa visita?’ Ìkú respondeu-lhe: ‘Não te apavores.
Eu não vim buscar teu filho.
Ao vir para o plano terrestre, ele trouxe consigo a data do retorno ao plano espiritual.
Vim apenas revê-lo e presenteá-lo.
Quero que ele me diga o que deseja ser ao atingir a maturidade.’ O jovem que a tudo ouvia disse de imediato: ‘Quero ser um médico (onísègùn) famoso’.
‘Assim será.
Acompanhe-me’; respondeu-lhe o senhor dos mortos.
E assim, ambos se dirigiram até a imensa árvore osè [3] (baoba) que existia na frente da casa do agricultor.
Lá, Ìkú, colocando as mãos sobra à cabeça de Yíyàn, pronunciou-se: ‘A partir de hoje, os enfermos que receberem de tuas mãos uma folha dessa árvore se restabelecerão e ficarão curados.
Entretanto, quando ao leito dos mesmos chegares e veres uma chama se extinguindo aos seus pés, significará que não haverá cura.
Sendo assim, não deverás dar a nenhum deles a folha da árvore osè, isto porque eu virei buscá-lo tão logo dos aposentos dos mesmo você se retire’.
Yíyàn concordou plenamente com as determinações de seu padrinho, senhor dos mortos.
A partir daquela data, o afilhado de Ìkú começou a fazer cura.
Sua fama alcançou os lugares mais longínquos do planeta.
Certa ocasião, após restabelecer a saúde de um pastor de cabras que residia em um reino vizinho próximo a sua terra natal, Yíyàn, foi convidado pelo regente do mesmo para ceiar e pernoitar na moradia real.
Esse, exausto, não titubeou, aceitou de imediato o convite real.
Durante à noite, ao cair da madrugada, Yíyàn acordou com gritos de desespero que vinham dos aposentos reais.
Não demorou muito para que os conselheiros do rei viessem buscá-lo para curar o rei.
Ao adentrar os aposentos do rei munido com uma folha da árvore osè, Yíyàn esmoreceu.
Aos pés do leito do Oba (rei) havia uma chama se extinguindo. Era o sinal da morte.
De imediato, Yíyàn informou que nada mais poderia ser feito, isto porque o rei estava condenado à morte.
A família real inconformada com o fato ofereceu a Yíyàn várias peças em ouro maciço, pedras preciosas, isto sem falar dos outros objetos de valor que lhe foram oferecidos.
As ofertas foram tantas que o lado humano do jovem médico falou mais alto.
Antes que o rei expirasse seu último suspiro, Yíyàn realizou o ritual com a folha do osè, restituindo dessa forma a vida do rei.
Tão logo dos aposentos reais Yíyàn se retirou, Ìkú, o senhor dos mortos, o mesmo adentrou e possesso ficou ao ver o rei totalmente restabelecido. Imediatamente, Ìkú se apresentou ao seu afilhado.
Quando diante do mesmo se apresentou perguntou-lhe: ‘Por que me desobedeceste, Yíyàn.
Por acaso esqueceste das minha palavras?
’ Yíyàn, prostrando-se aos pés de Ìkú, pede-lhe desculpas alegando que se rendeu diante de tanta riqueza, mas que tal fato não mais se repetiria.
Pouco tempo depois, Yíyàn foi procurado outra vez pelos conselheiros do rei que havia salvo da morte.
Dessa vez, era para socorrer a princesa, a herdeira do trono.
Sem questionar, Yìyán acompanhou os conselheiros do rei até o palácio.
Lá chegando, ao adentrar os aposentos reais, defrontou-se com uma chama aos pés da princesa, lume esse quase extinguindo.
A expressão do rosto de Yíyàn foi o suficiente para que o rei compreende-se qual seria a resposta que seria dada.
Sem pestanejar, mandou buscar tecidos caríssimos, tapetes, jóias, objetos de valor, ouro, prata e uma incontável quantia em búzios.
Apesar da tentadora oferta, Yíyàn disse ao rei: ‘Infelizmente não há mais nada a ser feito.
A princesa está agonizando’.
O rei, numa tentativa derradeira, disse-lhe: ‘Salve minha filha que eu lhe darei a mão dela em casamento’.
A proposta soou aos ouvidos de Yíyàn de forma alucinadora. Longe de imaginar as conseqüências, libertou a princesa dos braços da morte.
Horas mais tarde, quando Yíyàn, ao lado do rei e da princesa, comemorava o casamento, foi avisado de que seu padrinho tinha vindo pessoalmente abraçá-lo e parabenizá-lo pelo enlace matrimonial.
O frio correu a espinha de Yíyàn que, pálido tal qual um cadáver foi ter com seu padrinho.
Ao se defrontarem, Ìkú perguntou-lhe: ‘Por que desobedeceste pela segunda vez?’
Yíyàn respondeu-lhe: ‘Ìkú, meu padrinho e senhor dos mortos, sou lhe muito grato por tudo que fizeste por mim e a minha família, entretanto, de hoje em diante, serei um nobre.
Terei tudo o que desejar a tempo e a hora.
Não sou mais aquele menino indeciso e indefeso. Hoje sei muito bem o que eu sou e o que quero.
Continuando o diálogo, disse Yíyàn ao seu padrinho: ‘Venha, entre em minha tenda, ceie comigo, e, como já está muito tarde, convido-lhe para pernoitar em meu palácio’.
Ìkú, não se fazendo de rogado, prontamente aceitou o convite do seu afilhado.
Quando a noite ia alta, Yíyàn, durante o sono, ouviu a voz de Ìkú que lhe chamava.
Ao atendê-lo, se deu conta de que estava frente ao mesmo embaixo de um imenso baobá (osè).
Antes de conseguir se expressar ouviu Ìkú lhe dizer: ‘Yíyàn, você virá comigo até o Vale da Morte.
Existe algo no mesmo que você precisa ver. Venha.
Acompanhe-me’.
Lá chegando, o afilhado de Ìkú deparou-se com um vale totalmente iluminado por chamas.
Em determinado momento, Yíyàn perguntou o que significavam tais lumes.
Ìkú respondeu-lhe: ‘Essas chamas significam a vida de cada ser humano’.
Yíyàn cada vez mais curioso, indagou: ‘Por que estão todos esses lumes em um só lugar.
Uns apagando, outros acendendo quase ao mesmo tempo.
O que significa tudo isso?’
Ìkú respondeu-lhe: ‘Meu afilhado, cada um desses lumes representa um ser vivente, seja ele rei, rainha, príncipe, princesa ou plebeu.
Aqui é morada do tempo. Esse é motivo de estarem todos aqui ao mesmo tempo’.
Yíyàn, sem nada entender perguntou outra vez: ‘Como assim todos ao mesmo tempo?
’ Ìkú respondeu-lhe: ‘Yíyàn, todos estão aqui ao mesmo tempo, isto porque o tempo é uma linha ininterrupta.
O ontem, o hoje e o amanhã estão contidos nesse mesmo espaço.
O tempo não passa, os seres viventes é quem passa por ele.
Seus semelhantes ao virem para o mundo trazem em seus destinos o dia de nascerem e a hora de perecerem.
Portanto, tudo está aqui ao mesmo tempo.
O ontem, o hoje e o amanhã’.
Assim que Ìkú terminou suas explanações, Yíyàn perguntou-lhe: ‘Se cada uma dessas chamas corresponde à vida de um ser vivente, de quem se trata o lume que está se apagando aos seus pés, uma vez que já é morto?
E por que a árvore osè esta se desfolhando com tanta rapidez?’ ‘O lume que está se apagando é o seu; Nada mais pode fazer.
Evitou inconseqüentemente por duas vezes consecutivas que a morte cumprisse seu papel. Por esse motivo sua vida foi trocada.
É chegada a hora da sua morte’.
Após Ìkú pronunciar-se, um leve vento soprou por todo vale da morte, apagando definitivamente o lume da vida de Yíyàn, que não viveu para desfrutar do reino que havia herdado’”.
“Eni gbogbo gbódò; ko si gbàní”
“Quem muito quer; nada tem”
Da Sabedoria Yorùbá.
Bibliografia: PENNA, Antonio dos Santos, Mérìndilogun Kawrí – Os Dezesseis Búzios. Páginas 257, 258, 259 e 260 – Produção Independente: RJ, 2001 – Ano 2009. Edição Revista e Ampliada. – ISBN 978-85-902226-4-4.
[1] Para algumas tribos, ter vários filhos simboliza prosperidade (na velhice).
[2] “O escolhido”.
[3] ADANSONIA DIGITATA L., Bombacaceae. Também chamada de “árvore dos mil anos”.
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