José Ivo Follmann
Entrevista especial com: José Ivo Follmann
“A esfera religiosa tende a se tornar uma esfera sempre mais diversificada e plural”, declara o sociólogo.
Confira a entrevista.
O mapa religioso brasileiro, traçado a partir dos dados do censo 2010, pode ser comparado à “ponta de um grande iceberg da esfera religiosa do Brasil, que sinaliza para uma crescente diversificação e pluralidade”, afirma o sociólogo José Ivo Follmann, por e-mail, à IHU On-Line. Entretanto, apesar de sinalizar a “multiplicação de novas formas de expressão do religioso”, a pesquisa do IBGE demonstra uma “grande fragilidade dos números”, porque não contempla a diversidade religiosa brasileira. “Existe uma riqueza muito grande que subjaz e que as estatísticas ainda não estão conseguindo fazer emergir”, assinala. O pesquisador refere-se aos seguidores das religiões de matriz africana e assinala que “qualquer levantamento superficial que se faça, nas nossas regiões metropolitanas, leva à constatação de números elevados em termos de espaços físicos dedicados a religiões de matriz africana, como ‘casas’, ‘terreiros’ ou ‘centros’, com uma multiplicidade ímpar de denominações, tanto pelo viés das ‘afrobrasilidades’ umbandistas como pelo viés de ‘africanidades’ mais cultivadas em suas tradições de origem, muitas vezes também se expressando em suas formas cruzadas”.
Para ele, o censo 2010 reitera a diversidade religiosa brasileira, que se manifesta, inclusive, naqueles que se declaram sem religião. Esse fenômeno de desfiliação religiosa, esclarece, está relacionado com o “crescimento de uma cultura favorável à independência dos sujeitos com relação aos atrelamentos institucionais. Trata-se do crescimento de uma cultura que estimula a afirmação dos sujeitos individuais, da independência subjetiva”. A subjetividade também favorece o “trânsito religioso” e a constante experimentação nas diversas matrizes religiosas, oportunizando ao fiel a elaboração de “processos de identidade religiosa”. “É um misto, uma espécie de composição do processo de peregrinação e de conversão. Muitas conversões acabam sendo passageiras e predomina o ‘permanente peregrinar’”, complementa.
José Ivo Follmann é graduado em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, e em Teologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. É mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e doutor em Sociologia pela Université Catholique de Louvain. É vice-reitor e professor da Unisinos, onde leciona no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Também é diretor de Assistência Social da Associação Antônio Vieira – ASAV.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Algum dado do censo em relação à religião lhe surpreendeu? Em que aspecto?
José Ivo Follmann – A maior surpresa? Não é surpresa – e não é de agora –, mas um estranhamento com relação às estatísticas religiosas do Brasil apresentadas pelos censos do IBGE em geral. Trata-se do baixíssimo percentual daqueles que se dizem seguidores de religiões de matriz africana.
Mais do que surpresa, é um grande ponto de interrogação. É uma limitação lamentável o fato de o IBGE ainda não ter encontrado mecanismos mais apropriados para colher dados mais condizentes. Qualquer levantamento superficial que se faça nas nossas regiões metropolitanas leva à constatação de números elevados em termos de espaços físicos dedicados a religiões de matriz africana, como “casas”, “terreiros” ou “centros”, com uma multiplicidade ímpar de denominações, tanto pelo viés das “afrobrasilidades” umbandistas como pelo viés de “africanidades” mais cultivadas em suas tradições de origem, muitas vezes também se expressando em suas formas cruzadas.
Por exemplo, para falar a partir de pesquisa recente realizada por nossa equipe na região metropolitana de Porto Alegre, especificamente em seis municípios no entorno de São Leopoldo, dos 1327 locais de culto religioso e templos que identificamos até 2004, 442 eram locais de culto religioso de religiões de matriz africana e/ou umbanda. (Conforme a imagem abaixo, n. 1.)
Religiões de matriz africana
A mesma “surpresa” que nos causam os percentuais muito baixos das religiões de matriz africana e de umbanda também pode ser manifesta com relação ao espiritismo. O Brasil é provavelmente uma das culturas onde o espiritismo reencarnacionista encontrou maior guarida. O principal indício que faz reforçar esta hipótese é a intensidade com que concepções religiosas de ordem reencarnacionista são veiculadas por certos meios de comunicação, sobretudo através de novelas de grande penetração popular. Este aspecto da realidade religiosa continua, também, totalmente ausente nas estatísticas religiosas.
É urgente e fundamental que o IBGE crie mecanismos adequados para dar conta de forma mais consistente das diferentes práticas religiosas e, sobretudo, do fenômeno tão próprio dos processos de identidade vividos no Brasil e que envolvem dupla ou múltipla adesão religiosa.
IHU On-Line – Quais as principais características da religiosidade do povo brasileiro? Como descreve o mapa religioso brasileiro que emerge do Censo 2010?
José Ivo Follmann – O verbo emergir está empregado de uma forma muito feliz aqui. Trata-se da ponta de um iceberg que emerge. A ponta de um grande iceberg da esfera religiosa do Brasil que sinaliza para uma crescente diversificação e pluralidade. O mapa religioso brasileiro sinalizado pelo IBGE 2010, além de apontar para esta multiplicação de novas formas de expressão do religioso, mostra também, como já mencionei acima, uma grande fragilidade dos números. Existe uma riqueza muito grande que subjaz e que as estatísticas ainda não estão conseguindo fazer emergir.
O que está claro, ao longo das últimas três décadas, é um processo acelerado de inflexão nas forças da esfera religiosa: de um Brasil predominantemente católico está-se caminhando para um Brasil onde a força do segmento evangélico pentecostal e neopentecostal tende a conquistar sempre maiores espaços.
“Chute da santa” e a inflexão na esfera religiosa
Como sociólogo, não posso deixar de fazer referência a um episódio que, eventualmente, poderia ser considerado como um fato isolado, se ficarmos em nível de senso comum. Seria como que mais uma notícia sensacionalista que passa. Seria mais uma entre tantas outras notícias que se enfileiram e tomam o espaço de nossa percepção no dia a dia. No entanto, creio ser necessário voltar ao evento do “chute da santa” como um evento de elevadíssima força simbólica e impacto social. O episódio ocorreu em 12 de outubro de 1995. Trata-se de um episódio que, muito além de sua ruidosa repercussão midiática e social, tem um alcance simbólico sem igual em termos de composição e recomposição da esfera religiosa brasileira. Naquela data, dia da santa católica Nossa Senhora Aparecida, culturalmente consagrada no mundo católico como a Padroeira do Brasil, o bispo Sérgio Von Helder, da Igreja Universal do Reino de Deus, em um programa matutino, na Rede Record, chamado “O Despertar da Fé”, proferiu insultos e deu chutes na imagem desta santa em frente às câmaras. O episódio tornou-se conhecido como o episódio do “chute da santa”. Ricardo Mariano se reporta diversas vezes a este episódio em seus estudos para uma sociologia do novo pentecostalismo no Brasil (Mariano, 2005) [1]. O “chute da santa” simboliza todo um movimento agressivo de dimensões amplas que vem promovendo uma inflexão na esfera religiosa brasileira contra o predomínio religioso católico. As estatísticas parecem confirmar o amplo sucesso deste movimento. A prática de combater de forma recorrente, buscando desclassificar, símbolos e práticas religiosos do meio católico ou das religiões de matriz africana é uma prática usual no meio neopentecostal e gera fortes repercussões nos processos de identidade.
IHU On-Line – Apesar de o número de fiéis da Igreja Católica representar 66,2% da população da região do Vale do Rio dos Sinos, os dados do censo demonstram que entre as religiões católicas listadas no questionário, a Católica Ortodoxa cresceu, enquanto a Católica Apostólica Romana e Apostólica Brasileira perderam fiéis. Como compreender essas diferenças?
José Ivo Follmann – Conheço os dados estatísticos, mas seria temerário, de minha parte, tentar qualquer explicação. As diferenças mencionadas talvez possam ser atribuídas a fatores conjunturais sem maior impacto em termos de processo mais amplo. A pergunta é interessante e despertou em mim a vontade de conhecer de perto.
IHU On-Line – Ainda na região do Vale dos Sinos, percebe-se uma ascensão das religiões evangélicas e da prática espírita. Como vê o crescimento dessas religiões?
José Ivo Follmann – O Vale do Sinos é uma região de presença evangélica forte ao longo de todo o seu processo histórico e, ao longo das últimas décadas, está havendo um aumento significativo na presença da força evangélica pentecostal e neopentecostal. Na pesquisa realizada por nossa equipe, já mencionada acima – estudo que se concentrou em diversos municípios do Vale do Sinos, constituindo uma pesquisa cadastral dos locais de culto religioso ou templos e o afluxo de fiéis a esses espaços –, chamou a nossa atenção a constatação do relativamente elevado número de templos pentecostais e neopentecostais bem como o afluxo grande de frequentadores semanais nesses espaços. Consideramos a frequência semanal como uma variável importante, sinalizando para um indicador forte, mesmo que não exclusivo, para medir o dinamismo religioso de igrejas. Por exemplo, se ficarmos em nível dos espaços físicos utilizados, dos 1327 locais de culto religioso ou templos identificados até 2004, 435 eram do segmento evangélico pentecostal ou neopentecostal. (Ver imagem n. 1.)
É um dado muito parecido com o dos locais de culto religioso das religiões de matriz africana e umbanda. Porém, deve-se observar que, no caso evangélico pentecostal e neopentecostal, os espaços têm muito maior capacidade física para reunir fiéis. Chama a nossa atenção o número de frequências semanais no meio evangélico pentecostal e neopentecostal. Voltando à pesquisa mencionada, do total dos que frequentam semanalmente algum culto ou celebração religiosa, no município de Novo Hamburgo, por exemplo, 51% são do recorte evangélico pentecostal e neopentecostal. Nos municípios de São Leopoldo este dado também está próximo disso, chegando a 45%. (Ver imagens abaixo, números 2 e 3, de acordo com a ordem.)
IHU On-Line – O que podemos entender por pluralismo religioso? De que maneira ele aparece nos dados do censo 2010?
José Ivo Follmann – O censo 2010, refletindo uma tendência das últimas pesquisas, mostra como a esfera religiosa no Brasil vai se diversificando. Ou seja, a diversidade religiosa passa a ser sinalizada estatisticamente. Eu, até, diria que existe uma espécie de explosão da diversidade, como que reagindo contra os constrangimentos uniformes que precederam, na história brasileira, de quase quatro séculos de religião católica como religião oficial. Mesmo que isso tenha que ser considerado como um fato, é também de se observar que essa “identidade social” religiosa católica colada à brasilidade, mesmo que tenha sido, muitas vezes, constrangedora a outros empreendimentos institucionais religiosos, acabou sendo também um suave manto acolhedor de processos de identidade diversificados, na esfera religiosa, com camuflagem católica. Parte da grande diversidade religiosa que hoje explode e passa a ter afirmação pública própria, mesmo que ainda não se manifeste totalmente nas estatísticas, tem a ver com esse processo histórico. A outra parte tem a ver, sobretudo, com confrontos explícitos na esfera religiosa, pela via da afirmação do segmento evangélico pentecostal e neopentecostal.
IHU On-Line – Como podemos definir sincretismo religioso? De que maneira ele reflete as marcas e valores dos sujeitos contemporâneos?
José Ivo Follmann – Eu gostaria de abordar esta questão pelo viés de uma rápida reflexão crítica com relação à teoria da secularização. Esta teoria associada à razão moderna alimentou uma espécie de aposta com relação à iminência da extinção da dimensão religiosa, enquanto portadora de significação considerável nas sociedades humanas. A teoria, no entanto, sofreu fortes revisões, sobretudo no sentido de dizer que o que realmente está em jogo – e é fato – é a gradual perda da força das instituições religiosas. Isso não estaria necessariamente significando perda ou esvaziamento dos sentimentos religiosos e o cultivo pessoal da dimensão religiosa. O fenômeno que se observa é um movimento simultâneo, por um lado, de perda da força institucional das grandes instituições tradicionais e, por outro lado, um novo ganho e maior vivacidade nas múltiplas formas de vivências religiosas cultivadas pelos sujeitos contemporâneos.
Estas vivências religiosas são, na maioria dos casos, “arranjos pessoais”, que, olhados sob o ponto de vista das denominações e tradições religiosas instituídas, assumem o rosto de sincretismo religioso. A observação dos sujeitos contemporâneos nos convida a estar mais atentos àquilo que eu, pessoalmente, gosto de denominar de “processos de identidade”. Talvez se possa dizer que é uma característica de nossos tempos, os sujeitos, em seus processos de identidade, já não se atrelarem mais a identidades sociais dadas, e partirem para construções, desconstruções e reconstruções efetivamente próprias. Mas não se trata simplesmente de uma característica de nossos tempos, pois tem raízes muito profundas no jeito de ser brasileiro e da própria religiosidade nacional. Poder-se-ia dizer que existe um quê de “pós-modernidade”, na brasilidade, se quiséssemos cometer esta pequena irreverência conceitual.
Registra a cultura do jeitinho, do arranjo pessoal e das bricolagens espontâneas. Trata-se de uma cultura muitas vezes citada e gerada pela necessidade de sobrevivência da própria tradição religiosa, como foi o caso das religiões de matriz africana, como é o caso do próprio surgimento da umbanda e, por que não, do Santo Daime. Pode-se levantar, com segurança, a hipótese de que, se houvesse um registro estatístico dando conta de dupla ou múltipla adesão religiosa, no meio da população brasileira, as estatísticas desenhariam um quadro diferente. Religiões como as de matriz africana e outras apareceriam com muito maior expressividade estatística e a informação estaria mais próxima dos verdadeiros processos religiosos de identidade.
IHU On-Line – O que explica esse trânsito religioso e qual é o significado desta experimentação? Quais as implicações para as instituições religiosas?
José Ivo Follmann – Isso está relacionado intimamente com o que afirmei na questão anterior. Existem autores modernos em nossa literatura que, de certa forma, parecem ter intuído esta cultura do trânsito religioso; trata-se de uma pós-modernidade à brasileira. Refiro-me particularmente a Guimarães Rosa, quando coloca uma fala muito sugestiva na boca de um de seus personagens: “Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. (...) Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca” (Rosa, 1980, p. 15) [2]. O diálogo registrado pelo autor é paradigmático. Aponta para a existência desta como que “mente pós-moderna” sabiamente constatada e expressa na estética deste e de outros autores, romancistas e poetas da modernidade brasileira. Trânsito religioso é um conceito apoiado principalmente nos estudos sobre as figuras do peregrino, por um lado, e do convertido, por outro lado, dentro da esfera religiosa, desenvolvidos pela socióloga francesa Danièlle Hervieu-Léger. É um misto, uma espécie de composição do processo de peregrinação e de conversão. Muitas conversões acabam sendo passageiras e predomina o “permanente peregrinar”.
IHU On-Line – Um dos dados do censo assinala o número de pessoas que não têm filiação religiosa. Quais são as razões dessa mudança? Por que cresce o número de pessoas sem vinculação institucional?
José Ivo Follmann – Essa talvez seja a pergunta mais fácil de responder. O fenômeno do crescimento do número dos que se dizem sem religião ou, melhor, “sem vínculo religioso institucional” está, com certeza, relacionado com o crescimento de uma cultura favorável à independência dos sujeitos com relação aos atrelamentos institucionais. Trata-se do crescimento de uma cultura que estimula a afirmação dos sujeitos individuais, da independência subjetiva. Não podemos confundir “sem religião” com ateísmo ou descrença, cujo percentual é bem baixo, apesar de significar um segmento considerável. Não existe clareza estatística com relação ao ateísmo, mas se estima que seja um segmento próximo do 1% da população.
Voltemos aos 8% dos que se apresentam como sem religião, incluindo, evidentemente, os próprios ateus. É necessário ampliar a reflexão. Existem propostas religiosas hoje, como são as propostas das igrejas neopentecostais que também se alinham com muita proximidade com este não compromisso com uma instituição. Não existe criação de vínculo com uma comunidade ou uma estrutura organizacional. São proporcionadas experiências religiosas segundo necessidades e oportunidades. Seria um exercício interessante e, no mínimo, provocador, somar as adesões ao neopentecostalismo ao segmento “sem religião”. Já levantei, num outro momento, a hipótese de que as adesões ao neopentecostalismo e as adesões à autodefinição como sem religião são os dois segmentos que mais claramente sinalizam um fenômeno que venho denominando de secularização encantada.
IHU On-Line – Em que medida o conceito da transdisciplinaridade pode contribuir para a compreensão dos novos rumos religiosos que o povo brasileiro vem tomando? Como você, que trabalha muito com o conceito de transdisciplinaridade e também está envolvido na prática do diálogo inter-religioso, percebe pessoalmente tudo isso? O que gostaria de acrescentar além dos comentários sobre as estatísticas?
José Ivo Follmann – Vou abrir um pouco mais a “guarda” para dar conta de uma resposta a essa pergunta. Para mim, a esfera religiosa, ou, como às vezes prefiro dizer, “o mundo das religiões e das religiosidades”, ocupa um lugar fundamental. A minha percepção tem três fontes, todas elas ligadas à minha própria trajetória (ou processos pessoais de identidade). Eu até diria que se trata de três grandes escolas de aprendizado: 1) Sou sacerdote católico, de uma família e comunidade de profundo cultivo da tradição religiosa católica. Tive, também, longa formação espiritual dentro da espiritualidade inaciana dos jesuítas. Isso pauta fundamentalmente meus processos de identidade. (É o aprendizado permanente no recolhimento pessoal). 2) A minha prática de estudo das religiões, como sociólogo das religiões, pesquisador e orientador de muitos trabalhos de pesquisa nesta área. Dedico-me nas últimas duas décadas principalmente à questão da crescente diversificação na esfera religiosa. É nesta frente que sempre mais fui despertando para a importância da transdisciplinaridade para o conhecimento. (É o aprendizado na prática de pesquisa). 3) Na minha trajetória passada e também no presente, assumo uma postura de radical prática de diálogo na relação com as demais religiões. Faço parte de um grupo inter-religioso de diálogo, desde 2002, no qual participam mais de dez segmentos religiosos diferentes. (É o aprendizado no diálogo com o outro).
São minhas três grandes escolas nesta área. Muitos mestres e muitas mestras fizeram e fazem parte destas escolas em minha vida. Nelas aprendi e fui convencido de que a esfera religiosa é uma esfera fundamental também nas sociedades de hoje. Reconheço-me como defensor da laicidade do estado e da sociedade como espaços públicos, democráticos e de reconhecimento da pluralidade religiosa.
Saindo do âmbito de depoimento puramente pessoal, quero retomar a constatação de que a esfera religiosa tende a se tornar uma esfera sempre mais diversificada e plural. Talvez sempre tenha sido. A novidade é que, de algumas décadas para cá, está sendo sempre mais possível que isso se explicite. Que isso se torne mais visível. A pluralidade humana, que se expressa nas mais diferentes esferas do convívio social, se expressa também, de maneira forte, na esfera religiosa. O convívio com a pluralidade traz dentro dele três grandes espaços de fecundidade e de desafios: o espaço do cultivo dos processos pessoais de identidade; o desafio de um conhecimento mais consistente, de um conhecimento transdisciplinar, rompendo velhos paradigmas; e o desafio da cultura do diálogo e do reconhecimento do outro, do diferente.
Processos de identidade
Acho que vivemos tempos muito favoráveis para o cultivo daquilo que chamo de “processos de identidade”. No caso, estamos falando de processos religiosos de identidade ou processos de identidade religiosa, se alguém preferir. Fico impressionado, hoje, no meu dia a dia de professor, com o fato de no meio universitário não existir mais aquele temor que existia, por exemplo, no meu tempo de estudante, quando falar de religião era tabu e soava totalmente ridículo falar de suas próprias convicções e opções religiosas. Isso está radicalmente mudado. Hoje os sujeitos assumem muito mais a sua relação com o transcendente ou também a sua postura de negação com relação às crenças religiosas, quando é o caso. As religiosidades, através dos arranjos pessoais, tendem a crescer enquanto as forças institucionais das religiões se encolhem. Este incremento das religiosidades coexiste, no entanto, com grandes fragilidades, que tanto podem ser devidas à falta de cultivo pessoal, à falta de conhecimento mais amplo, como também à falta de um verdadeiro espelhar-se na relação com os diferentes.
O conhecimento exerce papel importante no processo de identidade religiosa. O que falta muito em nossa sociedade é conhecimento com relação ao mundo das religiões e das religiosidades. Infelizmente a história de nossa academia (das universidades) está carregada por um positivismo obtuso que, de certa forma, entendeu que só o fato de falar da temática religiosa já manchava a pureza da ciência. Seria um assunto reservada às mentes menos esclarecidas. Felizmente a nossa academia está superando este tremendo prejuízo intelectual do qual continuamos sendo vítimas. Hoje, além da multiplicação de grupos de estudo e pesquisa, existe já um reconhecimento público da parte do Ministério da Educação com relação a uma multiplicidade de cursos de graduação e pós-graduação em Teologia, e, sobretudo, existe uma grande abertura no sentido de cultivar no estudo das religiões e religiosidades um diálogo fecundo entre os diferentes saberes. Isso se tornou uma verdadeira área de conhecimento, marcada pela abordagem transdisciplinar.
Diálogo e conhecimento transdisciplinar
Outro componente fundamental nos processos de identidade religiosa é a sadia relação com o outro, com o diferente. Sempre costumo dizer que o diálogo inter-religioso é a nossa tábua de salvação. A humanidade estará realmente dando a volta por cima quando aprender efetivamente a dialogar nesta esfera onde historicamente se geraram os maiores fanatismos e intolerâncias. A história está repleta de eventos onde se fez guerra e se matou em nome de uma fé. Muitos também imolaram e imolam as suas vidas em de uma fé. Se quisermos efetivamente trabalhar pela paz, devemos empenhar-nos pelo cultivo do diálogo inter-religioso. Assim como já foi dito que o desenvolvimento é o novo nome da paz, assim também se pode dizer que o diálogo inter-religioso é o novo nome da paz. Diálogo só acontece quando se dá um verdadeiro reconhecimento do outro, do diferente. Diálogo só se faz possível se aqueles que dialogam entre si saibam cultivar sinceramente os seus próprios processos de identidade religiosa e se cultivarem, ao mesmo tempo, um grande reconhecimento dos processos de identidade religioso dos outros.
A iniciativa de introduzir o disciplina de Ensino Religioso nas escolas públicas estatais é uma iniciativa importante. Porém, infelizmente existe muita imaturidade política em nível governamental em diversos estados e, sobretudo, um terrível despreparo das escolas e das professoras e professores. Sem um forte investimento no sentido de fazer do Ensino Religioso um efetivo espaço de educação para o pluralismo, estaremos perdendo uma chance ímpar na história deste país. Acredito num ensino religioso que seja uma efetiva “educação das relações entre as diferentes crenças (descrenças) e práticas religiosas”. Nada melhor do que “sentar” ao redor da mesma mesa os diferentes conhecimentos (e crenças) no domínio religioso, seja pelo ângulo das diferentes ciências da religião, seja pelo ângulo de leituras teológicas e vivências espirituais, para se ensaiar um verdadeiro laboratório de transdisciplinaridade. Estou convencido de que o papel da esfera religiosa é um papel-chave nas sociedades de hoje e isso se dá tanto no plano dos processos de identidade das pessoas como no plano dos processos de conhecimento e dos processos de convívio cidadão.
NOTAS:
[1] MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: Sociologia do Novo Pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Edições Loyola (2ª ed.), 2005.
[2] ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. 14 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/513484-transito-religioso-e-o-permanente-peregrinar-entrevista-especial-com-jose-ivo-follmann
José Ivo Follmann
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