Como a comunicação, a internet e até mesmo a palavra escrita estão influenciando as religiões afro-brasileiras, que se apóiam na oralidade em seus ritos
Vagner Gonçalves da Silva
As religiões afro-brasileiras são constituídas por grupos esotéricos que se pautam pelo conhecimento oral.
Suas regras de acesso ou ingresso envolvem a realização de rituais privados, no interior dos terreiros.
Por isso o segredo desempenha um papel fundamental no candomblé.
Porém, se a oralidade no mundo dos terreiros tem sido a forma por excelência de transmissão de conhecimento, manutenção do axé (energia vital) e do segredo ritual, fora deste contexto ela vem se tornando cada vez menos legítima.
Como dizem alguns estudiosos, a escrita tem sido uma das bases dos processos de educação, comunicação de massa e conversão religiosa.
Já no contexto particular dos terreiros, ao contrário, a palavra escrita não tem a força do axé.
É somente nos ritos que a palavra falada se associa ao canto, à reza, aos objetos, ao sacrifício etc. quando então sua força mítica é liberada.
O segredo da força da palavra está na associação da frase que ela anuncia com a legitimidade de quem a profere.
Nesta gramática religiosa, o significado depende de quem fala, o que fala, para quem fala e qual o contexto da interlocução.
As formas assumidas pelas sistematizações (ou codificações escritas) no candomblé denunciam transformações significativas no modo pelo qual a religião tem sido praticada no interior dos terreiros, e pensada na confluência destes com o mundo que os envolve.
A questão do segredo e sua revelação foi uma das mais importantes transformações verificadas no candomblé no momento em que se expandiu a prática nos grandes centros urbanos do Sudeste por volta dos anos de 1960.
Livros e a internet participaram dessa divulgação, com, inclusive, cenas rituais publicas e privadas “postadas” em sites como o “You Tube”.
Nesse caso, uma religião que privilegia a dança, o movimento, a cor, a música, a performance, certamente tem um grande potencial para aproveitar a seu favor os recursos disponíveis na web.
Certas práticas que se verificam hoje no candomblé dos grandes centros urbanos parecem ter se formado em virtude do acesso dos religiosos à literatura acadêmica sobre as próprias religiões afro-brasileiras.
As etnografias tratem de realizadas nos terreiros brasileiros, ao lado dos relatos de viajantes, missionários e pesquisadores sobre o culto aos orixás na África, têm despertado grande interesse por parte dos religiosos do candomblé.
Nesses estudos é possível encontrar referências para comparação, implementação ou ressignificação de suas práticas rituais, tomando-as, em geral, como fontes autorizadas para se estabelecer alguns princípios litúrgicos e sagrados da religião.
A fonte escrita e a disponível na internet também facilitam o acesso dos iniciados ao acervo cultural da religião, diminuindo num certo grau as dificuldades da regra do segredo na transmissão oral do conhecimento religioso.
Essas fontes, ao se reportarem a universos como a África, podem também fornecer elementos para uma ressignificação do patrimônio de conhecimento religioso.
Sob este aspecto o candomblé encurta também sua distância em relação àquelas religiões que podem exibir suas tradições codificadas (traduzidas, impressas e universalizadas) em livros sagrados, como o cristianismo e a bíblia, o judaismo e a torá, o islamismo e o alcorão.
Em sua tentativa de sistematização e legitimação do seu corpus religioso, ao transitar pelo mundo do saber escrito (que cada vez mais se transforma também num saber tecnológico), o candomblé encontra, ainda, outras particularidades.
Os esforços de institucionalização não têm sido realizados no sentido de levá-lo a ser uma religião burocratizada, nos moldes da tradição católica.
No candomblé, cada terreiro é uma comunidade única e o pai-de-santo sua autoridade máxima.
Mesmo que os terreiros formem redes mais amplas, constituídas por famílias religiosas, ou modalidades de ritos que agrupam tradições de diferentes origens africanas (as “nações”), a forma pela qual suas tradições são praticadas é motivo de grande disputa.
O segredo ocupa neste diálogo de tradições um papel crucial, não porque ele de fato revele um conhecimento objetivo que não deve ser revelado.
Na minha experiência de campo isto foi perceptível quando algo que era considerado segredo em um terreiro me era divulgado sem maiores problemas em outro.
Se o segredo é axé e o axé é força dinâmica, podemos dizer que o segredo tem a capacidade de relacionar de forma dinâmica, particular e contextual, os agentes do sagrado e os dons que movimentam estas forças.
A importância do segredo nas religiões afro-brasileiras não decorre do fato de que ele existe, ou de que ele está morrendo e se perdendo com a morte dos antigos sacerdotes.
Seu poder resulta do fato de que está, o segredo, sempre onde o pomos, mas nunca o pomos onde estamos, como dizia um poeta a respeito da felicidade.
Vagner Gonçalves da Silva é professor do departamento de Antropologia da USP, autor de "Candomblé e umbanda, caminhos da devoção brasileira" (Selo Negro), "Caminhos da alma" (Selo Negro), "Orixás da metrópole" (Vozes), "O antropólogo e sua magia" (Edusp), "Intolerância religiosa" (Edusp).
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