CASA PODEROSA DOS FILHOS DE YEMANJÁ

CASA PODEROSA DOS FILHOS DE YEMANJÁ

domingo, 30 de dezembro de 2012

Linhagem e Legitimidade NO CANDOMBLÉ PAULISTA Reginaldo Prandi


Caribé: Mulata

A expressão "candomblé paulista", já no título deste artigo, pode soar estranha ao leitor. Afinal, quando se fala em candomblé pensa-se logo na Bahia e suas populações negras com seus costumes de origem africana. 

Religião afro-brasileira em São Paulo é a umbanda, pensamos logo, pois a umbanda é a religião da sociedade brasileira, cujos modos de vida se formaram no pós-1950, com o desenvolvimento capitalista centrado nas,metrópoles industriais em formação no Sudeste do pais. 

De fato, o termo candomblé, que já era usado, pelo menos, desde os meados do século passado para designar práticas ou objetos de uso ritual da magia e da religião dos negros livres e escravos, que viviam na corte imperial e na Bahia, veio a consolidar-se, desde o começo deste século, como designação das religiões de culto aos orixás, voduns e depois encantados tal como se constituíram em Salvador e no Recôncavo baiano.

Nos estados acima da Bahia, até o Rio Grande do Norte, porém, mais expressivamente em Pernambuco, as religiões de origem predominantemente africanas receberam designação de xangô; no Maranhão e no Pará foram chamadas de mina; no Rio Grande do Sul seu nome é batuque; e no Rio de Janeiro, macumba, termo que veio a se generalizar para qualquer referência (em geral preconceituosa) às religiões de origem negra de qualquer parte do país.

A partir dos anos 60, contudo, a palavra candomblé, antes reservada às' expressões baianas do culto aos orixás, começou a se transformarem nome genérico para os cultos afro-brasileiros de origem "antiga", das diversas regiões do pais, em oposição ao termo umbanda, que é o nome pelo qual a mais difundida religião de origem africana é conhecida desde sua formação lá pelos anos 30 e 40.

A umbanda, nascida no Rio de Janeiro do contato do candomblé com o kardecismo, profundamente influenciada pela moralidade cristã já incorporada pelos espíritas, veio, em oposição ao candomblé como religião de populações negras, a se firmar como religião para todos, sem limites de raça, cor, geografia, origem social. Enquanto o candomblé continuava como expressão de uma sociedade de molde estamental, escravocrata na origem, a umbanda espalhou-se como a religião brasileira para a sociedade de classes, industrializada, urbanizada, de intensa mobilidade geográfica e social. A umbanda, ao se fazer como religião independente, adotou o uso da língua portuguesa, abandonou o sacrifício ritual de sangue e a iniciação sacerdotal com reclusão e mortificação, deixou de lado o oráculo do candomblé (especialmente o jogo de búzios) que dá ao chefe do grupo de culto a prerrogativa de decifração do destino e dos males e oportunidades da pessoa; incorporou do kardecismo a noção básica da caridade, que deslocou o eixo do culto para a prática da cura através da intervenção dos espíritos desencarnados ou encantados, no rito do transe, reduzindo a importância dos orixás e minando a estrutura rígida da autoridade centrada na mãe ou pai-de-santo que caracteriza o candomblé.

Nos passos do kardecismo, a umbanda vai se organizando em federações, adota um estilo burocrático de organização e vai cada vez mais se mostrando publicamente e lutando para ocupar espaços fora dos limites do terreiro. A umbanda rompe, quase totalmente, com a idéia de mistério e segredo que é tão cara ao candomblé, mesmo porque foi se escondendo que este conseguiu sobreviver na sociedade branca e hostil. Sem mistério iniciático, a própria iniciação lenta e "misteriosa" do candomblé deixou de fazer sentido para a umbanda. Assim, e por isso tudo, até recentemente, a umbanda era vista pelas ciências sociais como uma religião para a sociedade contemporânea, cabendo às diferentes modalidades regionais do candomblé a preservação do patrimônio ético de origem negra afastado da sociedade inclusiva por limites. culturais, correndo inclusive o risco de desaparecimento à medida que a sociedade de classes avançava a incorporação de segmentos presumidamente identificados com uma identidade que os remetia a vínculos voltados para um passado cultural e social incompatível com a vida na sociedade moderna.

A despeito de o candomblé nunca ter, antes dos anos 60, se constituído significativamente como religião organizada em São Paulo, e apesar de se acreditar que a umbanda, no conjunto das tradições afro-brasileiras, era a expressão religiosa mais propriamente adequada e coerente com a sociedade industrial da grande metrópole do Sudeste, o candomblé veio a ser atualmente uma alternativa importante no quadro das religiões populares que disputam o mercado religioso em São Paulo (Prandi, 1990).

Tendo deixado de ser uma religião de grupos negros – como foi em suas origens e ainda o é em certas cidades do Nordeste, sobretudo –, o candomblé em São Paulo arrebanha adeptos de todas as origens étnicas e raciais, prolifera sobremaneira entre os pobres, como o pentecostalismo e a umbanda, oferecendo-se inclusive como agência religiosa especializada de serviços mágicos para uma demanda de clientes de qualquer classe social não comprometidos religiosamente.

Sua recente presença em São Paulo, não anterior ao ano de 1960, já definida nos termos de uma religião competitiva capaz de se afirmar como religião de caráter universal, isto é, aberta a todos, representa uma terceira etapa de um processo iniciado com a introdução do kardecismo na sociedade brasileira, na virada do século, e redirecionado com a consolidação da umbanda, numa segunda etapa, a partir dos anos 50. No começo, e ainda hoje, a maioria dos militantes do candomblé paulista é salda dos quadros umbandistas, já contando o candomblé nos dias correntes com cerca de três mil terreiros em São Paulo (Prandi e Gonçalves, 1989 a e 1989 b).

Em 1987, iniciei um projeto de pesquisa com o fim de conhecer o processo de mudanças que vem fazendo do candomblé, em São Paulo, uma religião originalmente de grupos negros, uma religião de caráter universal, isto é, sem barreiras geográficas, étnicas, de cor e de classe social. Uma religião que, desse modo, passa a competir com outras ofertas religiosas presentes na metrópole paulista, sobretudo o pentecostalismo e a umbanda, mas também o novo catolicismo popular das comunidades de base.

Até 1989, foram estudados 60 terreiros de candomblé localizados nos mais diversos pontos geográficos da região metropolitana da Grande São Paulo, incluindo-se nesta amostra terreiros das mais expressivas "nações" de candomblé (1): do tronco iorubá, terreiros das nações queto, efã e nagô pernambucano; do tronco banto, terreiros angola; do fon, o jeje-mina; além do candomblé de caboclo, que pode aparecer justaposto aos demais, mas nunca autonomamente (2). Creio que a pesquisa permitiu reconstruir uma primeira versão da formação do candomblé em São Paulo, identificar suas fontes e avançar alguma interpretação sobre o sentido sociológico de sua reprodução no Sudeste contemporâneo em contraposição com a umbanda, religião que a muitos se mostrara como uma espécie de etapa "urbanizada" do próprio candomblé em seu contato com o kardecismo, visão que condenava o candomblé ao espaço das religiões voltadas para grupos específicos (Prandi, 1990).

Característica importante do candomblé é a ênfase na origem religiosa, a importância atribuída ao conhecimento da genealogia religiosa do iniciado, a valorização da tradição. Um membro do candomblé é reconhecido nos meios do chamado povo-de-santo, os adeptos do candomblé, pelo conhecimento que se tem de quem o iniciou, seu pai ou mãe-de-santo, de quem iniciou seu pai ou mãe, e depois seu avô ou avó, e assim por diante, até a Bahia do século passado e até a África, se e tanto quanto possível.

A origem religiosa, hipervalorizada no candomblé, padece, contudo, de muitas dificuldades, entre as quais o fato de que as origens mais valorizadas mudam com o tempo. Um tronco religioso "antigo" ora é mais ora é menos aceito como de maior legitimidade, pois muito aí influi não só o carisma e a publicidade dos chefes de terreiro que lideram as linhagens, como a própria pesquisa cientifica; capaz de, através do registro etnográfico das descobertas feitas pela prática da reconstituição histórica, emprestar- a esta ou àquela casa de candomblé um reconhecimento de "antigüidade" e "originalidade" muito procurado pelo povo-de-santo.

Nos dias de hoje, neste jogo de afirmação, importantíssimos são a mídia, os movimentos artísticos e culturais e as instituições oficiais encarregadas de definir, selecionar e preservar aquilo. que possa ser definido como "tradição" para a sociedade brasileira, ou seja, os órgãos de tombamento patrimonial. Candomblé sempre foi identificado com tradição, e como tal se forjou como objeto da ciência, desde Nina Rodrigues no final do século passado, o qual estudava preferencialmente o terreiro do Gantois (que mais tarde seria chefiado por Mãe Menininha, a mais famosa mãe-de-santo de todos os tempos) exatamente pelo fato de poder creditá-lo como um terreiro de origem africana "legítima", autêntica. E este tem sido desde esses velhos tempos o grande drama do candomblé: quem é criais legitimo, mais antigo, mais autêntico, mais tradicional?

No presente texto, ao estudar a formação do candomblé em São Paulo em suas relações com o candomblé das regiões de onde este é proveniente, procuro mostrar como os adeptos do candomblé enfrentam e Manipulam a questão da tradição, movendo-se com muita freqüência de uma linhagem religiosa para outra, ao se mudarem de terreiro e mudando de nação. As tendências mais claras da direção em que se dão essas mudanças de axé (terreiro, linhagem, nação) permitem perceber a existência de um processo de mobilidade no interior da religião que aparece como um processo de mobilidade social (no inicio é mobilidade geográfica: a migração do Nordeste para o Sudeste), uma vez que as redes de parentesco, e as mudanças de um grupo para outro, inserem os adeptos em linhagens religiosas de origens diferentes, todas elas portadoras.dos mesmos graus de prestígio. Como este prestígio é, sobretudo, um reconhecimento proveniente do mundo não religioso, que no começo deste século, no Nordeste, era o mundo branco, letrado, culto e de homens de extração social elevada, e, hoje, é a sociedade brasileira em seu conjunto, uma mudança de linhagem implica certo tipo. de ação no interior dá religião que remete, necessariamente, ao mundo profano. Ser do santo, ser do candomblé, hoje, prenuncia a possibilidade de uma carreira sacerdotal que também está referida à profissionalização, numa sociedade em que o feiticeiro e sua magia são perfeitamente aceitos socialmente, abrindo-se inclusive, para isso, espaços específicos no mercado de prestação de serviços pessoais. Competir num mercado de trabalho como o de agora importa deter certa competência, real ou atribuída pela agência formadora. Nesta sociedade, no mercado religioso e mágico, axé pode ter o sentido do currículo, isto é, o da boa escola.

Esse processo de refiliações a terreiros e famílias-de-santo (Lima, 1977) de maior reconhecimento pela sociedade exterior à religião, conta com fontes de ganho de prestígio que são definidas e oferecidas, muitas vezes, aos terreiros e aos adeptos, exatamente pela sociedade laica: o conhecimento acadêmico com suas fontes escritas e suas instituições de ensino culto, o mercado livreiro e discográfico, a formação de imagens públicas pela mídia eletrônica, além de mecanismos oficiais de atribuição de importância patrimonial a aspectos também da cultura popular, como os órgãos governamentais de tombamento e preservação compulsória. Para não falarmos da demanda pela religião e, especialmente no caso do candomblé, pela magia que põe em, destaque este ou aquele pai ou mãe-de-santo, terreiro, nação, linhagem. E se este destaque, esta visibilidade, de um lado é o do feiticeiro para uma clientela ad hoc interessada apenas na solução de seus problemas pessoais, do outro é a do sacerdote para uma população de fiéis.

Apesar de trabalhar dentro dos limites que me são impostos pelo objeto da investigação a que me propus, acredito ser possível, através dos achados aqui descritos, ver em funcionamento alguns mecanismos importantes na construção do que é uma tradição na sociedade brasileira, num jogo de apropriações sucessivas, em que, a última etapa parece ser a própria intervenção do Estado, que aparece não para preservar, como ele se propõe em principio, mas para construir, neste caso, uma tradição de 150 anos em apenas dez. Talvez seja apenas um capitulo a mais da história da invenção das tradições (Hobsbawn e Ranger; 1984).


Origens e linhagens

O candomblé chega e se expande em São Paulo por diferentes maneiras: através de pais-de-santo que vêm do Rio e da Bahia para iniciarem filhos aqui; quando umbandistas vão ao Rio e à Bahia para lá se iniciarem no candomblé; nos casos em que um pai ou mãe-de-santo migra para São Paulo já iniciado em seu estado de origem e abre aqui terreiros de candomblé; na situação em que o migrante já vem "feito" no candomblé, mas começa sua carreira religiosa em São Paulo abrindo casa de umbanda, para mais tarde vir a tocar candomblé e abandonar, a umbanda; e, finalmente, através de filhos que já são iniciados em São Paulo por mães e pais-de-santo, por sua vez, também iniciados em São Paulo. Estas cinco maneiras de entrar na expansão do candomblé em São Paulo podem ser observadas até os dias de hoje. Já na etapa de expansão, é claro, esta última forma é a mais freqüente e é também a que reforça a idéia de estar esta religião se enraizando na metrópole.
Dos meados dos anos 50 até o começo dos anos 60, Joãozinho da Goméia, que, havia muitos anos, transferira sua roça de Salvador para Caxias, no Rio de Janeiro, visitava constantemente São Paulo onde era amigo de influentes líderes umbandistas. Muitos dos primeiros personagens do candomblé de São Paulo foram por ele iniciados ("feitos", na linguagem-de-santo). E feitos aqui em São Paulo, embora este primeiro começo tenha contado também com filhos de Joãozinho feitos na Goméia do Rio e na originária Goméia da Bahia.

Por volta de 1960, havia um trânsito importante entre Rio e São Paulo, entre umbanda e candomblé, trânsito que trazia o candomblé para dentro da umbanda e o Rio para dentro de São Paulo.

Pela memória dos mais velhos, sabemos que os terreiros de mais prestigio (3), no Rio de Janeiro, nessa década eram todos filiados a tradicionais terreiros da Bahia; o terreiro da Goméia de Joãozinho e o Ilê Axé Opô Afonjá então dirigido por Mãe Agripina Souza, terreiro fundado por sua mãe-de-santo Mãe Aninha (Eugênia Anna dos Santos) no Rio, pouco antes de seu retomo a Salvador, onde veio a abrir, por volta de 1910, o Ilê Axé Opô Afonjá em solo baiano (4); a casa de Tata Antônio Fomutinho (Antônio Pinto) e de seu filho-de-santo Seu Djalma de Lalu (Djalma Souza Santos); a casa conhecida pelo nome de Pantanal, fundada por Pai Cristóvão do Ogunjá (Cristóvão Lopes dos Anjos), descendente direto da casa matriz da nação efã, o Terreiro do Oloroquê, em Salvador; o terreiro Tumba Junçara de Manuel Ciríaco dos Santos; e o de Neive Branco Manuel Rodrigues Soares Filho), gêmeos de seus terreiros baianos (5); o candomblé de João Lessenguê, e outros menos lembrados. Aí estavam representadas as nações de candomblé gueto, efã, angola, jeje-marrim, caboclo. Todas se reproduziram em São Paulo entre 1960 e 1970, quando a estas vieram se juntar outras de origem geográfica mais distante; a nação nagô pernambucana, a mina-jeje maranhense, o nagô-ijexá gaúcho. Refundindo-se, refazendo-se, transformando-se. São Paulo se fará cosmopolita, também, para as nações de candomblé.

O estabelecimento do candomblé no Estado de São Paulo parece ter começado em Santos, onde estão as casas lembradas como as mais antigas. Ou seja, enquanto umbandistas de São Paulo se iniciavam no candomblé com pais e mães do Rio ou da Bahia, tanto indo para lá como os recebendo aqui, alguns terreiros já haviam se instalado diretamente na Baixada Santista, mais ou menos em torno do cais do porto. O próprio povo-de-santo vê o candomblé como uma religião do litoral, certamente porque ele se formou em capitais litorâneas e suas cercanias: Salvador e o Recôncavo, Recife e Olinda, Baixada Fluminense, Porto Alegre. O mais antigo terreiro de candomblé no Estado de São Paulo foi fundado, pelos dados de que disponho, em Santos, em 1958, por Seu Bobó. Vindo da Bahia, Seu Bobó, José Bispo dos Santos, hoje com 75 anos de idade, ficou no Rio de 1950 a 1958. Diz a lenda (Bobó já é, em vida, uma lenda do povo-de-santo de São Pado) que. Bobó, na Bahia, teria sido suspenso, isto é, escolhido por um orixá no transe, para ser ogã no terreiro de Maria Neném (Maria Genoveva do Bonfim), um dos importantes troncos do candomblé angola, e que depois teria freqüentado a casa de Simpliciana (Simpliciana Maria da Encarnação), ialorixá do terreiro de Oxumarê (outro tronco fundante do candomblé em Salvador, hoje dirigido por Tia Nilzete). Acontece que um ogã não pode ser pai-de-santo, pois ele não tem a faculdade de entrarem transe. Comentei sobre essas coisas com ele e Seu Bobó me explicou: "Estes meninos de hoje, o que eles sabem do tempo dos antigos? Eu sou do santo e estou no santo faz mais tempo que o avô deles. Mas quando eles precisam aprender alguma coisa eles pegam o ônibus lá no metrô e vêm tudo correndo aqui." A casa-de-santo de Seu Bobó está há muito tempo no bairro do Itapema, Rua Projetada Caic, 63, município do Guarujá, do outro lado do canal do porto de Santos. Bobó é pai-de-santo de chefes de muitas casas de São Paulo, filhos que ele iniciou, ou que adotou ritualmente, como Roberto de Oxóssi* (6).

Também em Santos fixou-se Mãe Toloquê (Regina Célia dos Santos Magalhães). Iniciada ainda na Bahia por Joãozinho da Goméia, 50 anos atrás, Toloquê, mãe-de-santo de Adilson do Ogunjá*, veio para o Rio, onde iscou cerca de seis anos, e desceu para Santos nos anos 50, onde está até hoje. Seu terreiro, o Axé Obioju, fica à Rua Prof. Francisco Domênico, 584, no Bom Retiro, em Santos.

Ainda na Baixada Santista, em São Vicente, no início dos anos 50, abre casa o pai de=santo Vavá Negrinha, Valdemar Monteiro de Carvalho Filho, baiano de nação jeje de casa de Guaiacu. Hoje, doente, Seu Vavá vive na casa de seu filho-de-santo (por adoção) Walter de Ogum*, originário do catimbó pernambucano, e iniciado na candomblé do extremo sul do país, em Porto Alegre, 1969, na casa de Mãe Iemanjá-Ossi (Ester Ferreira), filha ou irmã-de-santo de João do Bará, linhagem estudada por Herkovits (1943) nos anos 40 e por Norton Corrêa (1988) no presente.

Todo esse grupo, fixado na Baixada Santista, mantinha estreitas relações com Joãozinho da Goméia e com certos terreiros de umbanda de São Paulo.

Em 1961, chega a São Paulo Alvinho do Omulu, Álvaro Pinto de Almeida,. branco, fluminense; feito no santo em 1954 pelo já citado Cristóvão de Ogunjá, no terreiro fluminense conhecido como terreiro do Pantanal, fundado por este em 1952, após ter passado alguns anos com um terreiro na Vila São Luís, em Caxias. Cristóvão vinha da Bahia onde fora iniciado no terreiro do Oloroquê por Matilde de Jagum Segunda; Matilde Muniz do Nascimento (1900-1973), filha-de-santo de Matilde de Jagum Primeira, que herdou o terreiro de seus fundadores, Maria da Paixão, a Maria do Violão, e o africano Tio Firmo Olufandei. Ainda na Bahia, mas já com casa em Obarama (embora nunca tenha se desligado do Oloroquê, até morrer, poucos anos atrás), Cristóvão iniciou, em 1933, Waldomiro Costa Pinto, Waldomiro de Xangô, popularmente chamado Baiano, e que virá a ser figura importante na etapa de consolidação do candomblé queto em São Paulo.

Antes de Alvinho chegar em São Paulo, como funcionário transferido do antigo IAPETEC, ele teve, no Rio, uma casa de candomblé aberta em 1964, no Largo do Bicão, na Penha. Ali tirou seu primeiro barco de iaôs, isto é, iniciou sua primeira turma de filhos-de-santo (7).

Em São Paulo, Pai Alvinho passou a freqüentar um terreiro de umbanda na Ponte Rasa, o de Décio de Obaluaiê, iniciado no candomblé por Tata Fomutinho. Nesta casa foi iniciado no candomblé, por Antônio Fomutinho, o umbandista Jamil Rachid, sendo Alvinho o seu pai-pequeno. Jamil. jamais abandonou a umbanda e veio a se tomar um dos dirigentes mais importantes no quadro das federações umbandistas de São Paulo (Concone e Negrão, 1987, p.49). E foi nesta casa que Pai Alvinho tirou seu primeiro barco de iaôs em São Paulo.

No início dos anos 60, havia em São Paulo outras casas em formação. Os pais-de-santo daquela época mais lembrados são Vavá Negrinha e Seu Bobó, que transitavam entre Santos e São Paulo, Seu José de Oxóssi, vindo do queto baiano, Camarão de Iansã, filho-de-santo de Joãozinho da Goméia, como sua irmã-de-santo Mãe Toloquê, além da presença constante, em São Paulo, do próprio babalorixá da Goméia, João Torres Filho, Joãozinho da Goméia, Joãozinho do Caboclo Pedra Preta, a quem se acusa de nunca ter sido feito por Jubiabá, como ele dizia, mas que foi o homem mais influente na consolidação pública do candomblé no Sudeste. Há os que se iniciam, que ingressam ritualmente no candomblé e há os que iniciam o candomblé, ou ritos e nações de candomblé. Como acontece com qualquer instituição.

Em São Paulo, Alvinho sempre se instalou na zona Leste. Sua primeira casa ficava na Vila Libanesa, onde raspou sete barcos, num total de 17 iniciados. Depois ele foi para Engenheiro Goulart, em 1964, e mudou-se mais uma vez, agora para a cidade A. E. Carvalho e finalmente para o Imirim. Em 1972, Alvinho voltou para o Rio, onde seu terreiro está hoje instalado em Engenheiro Pedreira, Nova Iguaçu. Mas vem freqüentemente a São Paulo. Nesses onze anos de terreiro em São Paulo, Alvinho iniciou 51 barcos de iaôs, dentre os quais os barcos de Ada de Obaluaiê*, João Carlos de Ogum*, José Mauro de Oxóssí*, Deusinha de Ogum*, enfim, toda uma primeira geração de pais e mães do candomblé paulista que já haviam experimentado por bom tempo o sacerdócio umbandista.

Dentre os muitos filhos-de-santo de Joãozinho feitos em São Paulo, podemos citar, entre os primeiros, Dona Isabel de Omulu* (1962), e sua filha Wanda* (1964); Sessi Mikuara, esposa do Tenente Eufrásio, importante nome da história da umbanda paulista, além de Gitadê*, feito no Rio, e que mais tarde trouxe para São Paulo o que restou dos fundamentos do terreiro da Goméia, e a já citada Mãe Toloquê, dos tempos de Joãozinho na Bahia.

Em 1965 abriu casa Manodê*, nascida no sul da Bahia, e iniciada em Salvador por Nanã, Erundina Nobre Santos. Quando Mãe Nanã se mudou para Aracaju, levou consigo sua filha Manodê, que, depois de se casar, acompanhou o marido migrante para São Paulo no ano de 1963. De nação angola, Nanã de Aracaju, falecida com 115 anos em 1981, é considerada a fundadora de um tronco angola que leva seu nome: o candomblé de Nanã de Aracaju. Esta linhagem já tem muitas gerações espalhadas por todo o Brasil (8).

A casa de Manodê*, fundada em 1965, no mesmo endereço em que ainda hoje se encontra, é um exemplo formidável do crescimento de uma casa-de-santo. Ali, ao lado do grande e novo barracão, ainda se encontra erguido o primeiro, acanhado e pequeno. Nesse terreiro, que sempre permaneceu uma casa de angola, ela iniciou e ainda inicia filhos, entre os quais Aulo de Oxóssi*, hoje gueto africanizado, do grupo da nova geração de pais e mães-de-santo intelectualizados, ao qual pertence Sandra de Xangô, sobrinha-bisneta-de-santo da mesma Mãe Manodê*.

Tendo se iniciado no candomblé diretamente no terreiro do Gantois de Mãe Menininha, nos anos 50, o paulista Babá Idérito*, após estudar iorubá na USP, em 1977, e empreender várias viagens à África, dirige hoje o terreiro de candomblé talvez mais africanizado do pais. No barracão de sua roça em Guarulhos, lê-se, afixado na parede, o seguinte: "Todas as modificações que foram, e que continuarão a ser introduzidas nesta casa servirão para conduzi-Ia até suas origens, na África".

Ainda desses primeiros anos é também a casa de Diniz da Oxum (Diniz Neri), filho-de-santo de Waldomiro Baiano, que se estabeleceu em São Vicente antes de 1960. Foi ele quem confirmou, no Rio, em 1961, Gilberto de Exu*, no cargo de ogã.

Em 1962, à procura de emprego, migrou de Feira de Santana Ajaoci de Nanã*. Logo se integrou nas redes da umbanda e desse candomblé em formação, iniciando expressiva linhagem na região Noroeste da capital. Dele 'é filho-de-santo, no candomblé, Aligoã de Xangô*, antiga mãe dë~ umbanda e depois de candomblé angola, a qual iniciará Armando de Ogum*. Este virá a receber, sete anos depois, seu grau de senioridade, já no rito gueto, africanizado, pelas mãos de Mãe Sandra de Xangô*.

Já no final dos anos 60, outras casas fundadoras foram chegando: Waldomiro de Xangô, Baiano, já citado, abriu casa por pouco tempo em São Paulo, mas manteve a de Caxias, no Rio, e mesmo depois, só com a roça do Rio, permaneceu residindo em São Paulo. Por volta de 1970, o efã Waldomiro Baiano passou a fazer parte da família-de-santo gueto do Gantois. Este fato, nos anos seguintes, fez mudar muita coisa no candomblé de São Paulo.

Pérsio de Xangô*, que já morava em São Paulo com casa de umbanda, voltou à Bahia em 1968, onde se iniciou com Nezinho da Muritiba, sendo sua dofona de barco Tia Nilzete, filha carnal de Simpliciana, ialorixá de Axé de Oxumarê, em Salvador, onde ela ocupa o cargo herdado da mãe. Em 1971, Pérsio* iniciou Tonhão de Ogum*, de quem mãe Rosinha* foi a mãe-pequena. Seu Nezinho da Muritiba, Manuel Siqueira do Amorim, era o chefe do terreiro do Portão de Muritiba, no Recôncavo, onde Mãe Rosinha de Xangô* era mãe-pequena; era estreitamente ligado por laços religiosos ao Gantois e à Casa Branca do Engenho Velho, onde fez o jogo de búzios para indicar a sucessora da falecida Tia Maci.

Numa de suas andanças por São Paulo, Nezinho, acompanhado por Rosinha*, deu, em 1970, a obrigação de senioridade ao pai-de-santo José Mendes*, o auto-intitulado "Rei do Candomblé", sobre quem Ismael Giroto escreveu sua dissertação de mestrado em Antropologia (Giroto, 1980). Neste terreiro Giroto foi confirmado ogã. Desligado depois desta casa, com os propósitos de se estabelecer como pai-de-santo, veio, inclusive, a questionar a fidedignidade de parte da informação oral fornecida pelo pai-de-santo sobre sua linhagem e registrada em sua dissertação.

Por volta de 1970, havia muitos paulistas sendo iniciados em São Paulo e outros mais indo à Bahia e ao Rio para lá fazer o santo. Ainda estava chegando gente que formaria grandes famílias, como Milton de Oxóssi (Milton Mercadante), que veio de Mãe Eulália do Axé da Ilha Amarela, no Rio de Janeiro; e Kajaidê*, que para lá foi a fim de ser iniciado. Pai Doda de Ossaim* foi filho de Milton de Oxóssi e, com a morte dele, passou para a mão de Kajaidê*.

Em 19 de março de 1971, aos 57 anos de idade, morreu no hospital das Clínicas de São Paulo, Joãozinho da Goméia. Ocorreu então uma reviravolta de nações no candomblé em São Paulo. O angola entrou em baixa, e o gueto se impôs, começando o período de predomínio desse candomblé nagô da Bahia, com grandes disputas sobre tradição, origem e legitimidade, tanto entre o povo-de-santo, quanto entre antropólogos (Dantas, 1988). Era a época do prestígio do Gantois de Mãe Menininha, e Baiano, então reconhecidamente adotado por esta mãe-de-santo, cantada em prosa e verso, passou a ser pai-de-santo de muitos filhos feitos por Joãozinho da Goméia, além de outros iniciados em outras casas e nações. Na qualidade de filhos de Baiano, eles passavam a ser ritualmente netos de Menininha – todos no axé do Gantois, a mais prestigiada família-de-santo de todos os tempos no Brasil. No ano de 1972, aconteceu o jubileu de ouro de iniciação da mãe-de-santo do terreiro do Gantois, ocasião em que Dorival Caymmi compôs Oração a Mãe Menininha, música que alcançou grande sucesso na voz de alguns artistas na época, por sinal baianos: Gal Costa, Maria Bethânia; Caetano Veloso.

Nesse contexto da "nagocracia", chegou Mãe Juju*, que assumiu em São Paulo a casa que seu pai carnal, Nezinho da Muritiba, vinha construindo em Sapopemba. Olga do Alaqueto (Olga Francisca Régis) fixou residência em São Paulo, permanecendo na Bahia quatro meses por ano, para as obrigações no seu mais que centenário terreiro.

Caio Aranha, famoso pai-de-santo da umbanda paulista, com terreiro primeiro no Brás e depois no Jabaquara; foi sé passando para o candomblé e inaugurou, em 1974, na Vila Fachini, o mais imponente terreiro de candomblé do país. Caio atraiu para sua casa a gente mais importante dos candomblés do Rio e da Bahia. Em 1984, ao falecer, foi sucedido por sua sobrinha e filha-de-santo, Sílvia de Oxalá*.

Gente feita no santo e que havia migrado para São Paulo numa época em que o candomblé não estava presente, e que, por isso mesmo, mantinha terreiros de umbanda, voltou à religião de origem e passou a tocar candomblé. Como é o caso de Mãe Zefinha da Oxum*; feita no nagô pernambucano por Pai Romão, filho carnal e herdeiro de Pai Adão, e por Mãe Maria das Dores*, ambos raízes do xangô pernambucano de maior reconhecimento público. E como o caso de Pai Abdias de Oxóssi*, que ainda menino fora iniciado pela mãe-de-santo Samba Diamongo do Terreiro do Bate Folha (terreiro fundado por Manuel Bernardino da Paixão), a qual foi a avó-de-santo do baiano Ojalarê, que já veio para "trabalhar no santo".

Ainda pela frente tivemos a chegada de Francelino de Shapanan*, do jeje-mina maranhense; a mudança para São Paulo do terreiro de Pai Gabriel de Oxum*, que, a partir de São Paulo; trabalhando religiosamente bastante ligado ao Pai Marco Antônio de Osaim*, e que tem permanecido boa parte de seu tempo na Suíça, onde tem larga clientela; a instalação de uma casa de culto de eguns, sob orientação de Mestre Roxinho, da família dos fundadores do candomblé de egungum de Itaparica; a vinda da filha carnal de Neive Branco, Mãe Meruca*; a mudança completa; do Recife para São Paulo, do terreiro quase centenário da mãe-de-santo de Mãe Zefinha de Oxum*, a matriarca pernambucana Mãe Maria das Dores* (já citada em 1934 nos anais do Primeiro Congresso Afro-brasileiro do Recife, organizado por Gilberto Freyre) (9).

Mas é difícil encontrarmos um terreiro em que todos, ou a grande maioria, tenham sido ali iniciados no candomblé, e mais raro ainda achar um outro em que boa pane dos iniciados não tenha abandonado a mãe ou pai-de-santo da casa (o iniciador original) para, se abrigar sob a tutela religiosa de outro axé. E a cada. mudança,,a teia de parentesco vai se ampliando, se emaranhando, como se, ao foral, partindo-se de tantas e diferentes origens, se chegasse a uma somente. No candomblé, o conflito separa, afasta e rejeita, mas induz também a aproximação e a adoção pelo outro. Isto, na resultante dos movimentos de afastamento e recepção, esta circulação de adeptos pelos terreiros, nações e linhagens, aproxima as casas, ainda que as mantenha. antagônicas entre si. E quase sempre haverá algum grau, mesmo que remoto, de parentesco com o outro. Assim se vai formando o povo-de-santo, e a religião se constituindo em âmbito nacional, por conseguinte.

Parentesco e força sagrada
No candomblé, a palavra axé tem muitos significados. Axé é força vital, energia, princípio da vida, força sagrada dos orixás. Axé é o nome que se dá às partes dos animais que contêm essas forças da natureza viva, que também estão nas folhas, sementes e nos frutos sagrados. Axé é bênção, cumprimento, votos de boa sorte e sinônimo de amém. Axé é poder. Axé é o conjunto material de objetos que representam os deuses quando estes são assentados; fixados nos seus altares particulares para serem cultuados. ,São as pedras (os otás) é os ferros dos orixás, suas representações materiais, símbolos de uma sacralidade tangível e imediata.

Axé é carisma; é sabedoria nas coisas-do-santo, é senioridade. Axé se tem, se usa, se gasta, se repõe, se acumula. Axé é origem, é a raiz que vem dos antepassados. Os grandes portadores de axé, que são as veneráveis mães e os veneráveis pais-de-santo, podem transmitir axé pela imposição das mãos; pela saliva; que; com a palavra sai da boca; pelo suor do rosto, que os velhos orixás em transe limpam de sua testa com as mãos e, carinhosamente, esfregam nas faces dos filhos prediletos.

Axé se ganha e se perde. A intensidade do axé de uma casa pode ser mensurada pelo número de filhos e clientes que seu chefe consegue arrebanhar. Axé é uma dádiva dos deuses, mas é preciso conhecer as fórmulas rituais corretas, perfeitas, para se chegar a ele. "Ah, mas qual é a folha certa?" se pergunta o venerando Idérito de Oxalufã, filho da mãe de mais axé do candomblé de todos os tempos, Mãe Menininha do Gantois, e que mesmo assim não se cansa de peregrinar à África na procura das verdadeiras raízes que, em parte, teriam se perdido no Brasil. Ele nos contou que, sempre, ao voltar da África ia a Salvador, subia a ladeira da Federação que leva ao templo da velha mãe, para tornar a sua bênção. Em respeito a ela nunca tocou no assunto de suas viagens. Sua irmã-de-santo, Creuza de Nanã, filha carnal de Menininha e hoje sua sucessora na casa do Gantois, criticou-o, sutilmente, como é costume entre o povo-de-santo, dizendo-lhe que ela, Creuza, nunca tivera a necessidade de ir à África para aprender o oriqui (a reza da ancestralidade) de sua mãe, o orixá Nanã Buruku. Ao que, respondeu Pai Idérito: "Sim, mas sem ir lá, você nunca vai ficar sabendo quem foi a mãe de Nanã." Nós, pesquisadores sem tato, perguntamos, afoitos: "E quem é a mãe de Nanã, Babá?" Ele deu de ombros, como quem diz: "Ah, pesquisadores..." Isto também é axé, é conhecimento, é poder, é fundamento.

Axé também é a coisa enterrada, objetos de culto escondidos, primeiro da perseguição policial, perseguição do branco, e mais tarde escondidos da curiosidade do olhar profano, do interesse de quem não tem raiz, não tem origem, aquele que é côssi, no linguajar-de-santo.

Axé é sobretudo a casa de candomblé, o templo, a raça, a tradição toda. A matriz fundante de toda uma descendência. Axé é linhagem, é família-de-santo, é saber-se pertencente a uma descendência cuja origem é conhecida e comprovada por registros históricos, pelo trabalho do etnógrafo de outrora, pela prova da fotografia, hoje. Ter axé é ter legitimidade junto ao povo-de-santo.

Filiação por feitura é por obrigação
No candomblé, todo iniciado tem seu pai ou mãe-de-santo, e por conseguinte, um avô ou avó-de-santo, bisavô ou bisavó, e assim por diante. Filhos do mesmo pai serão irmãos. Filhos de irmãos serão sobrinhos etc. O parentesco religioso tem exatamente a mesma estrutura do parentesco ocidental contemporâneo não religioso.

Quando um pai-de-santo morre, os filhos devem tirar de suas cabeças a mão do falecido – tirar a mão de vume ou de vumbe, como se diz. Nessa cerimônia, o sacerdote que substitui o falecido passa a ser o novo pai ou mãe-de-santo do órfão. A filiação anterior era por "feitura", por iniciação, esta segunda é por adoção, por "obrigação". "Dei obrigação com Mãe Maria de Oxóssi" significa que passou sua cabeça e seu santo para os cuidados desta mãe Maria. Quando .uma casa perde seu chefe, a sucessora ou sucessor recebe todos os membros da casa em adoção, sem mudança de linhagem, pois a mudança do parentesco religioso, nesse caso, se deu em linhagem direta. Todos continuam pertencendo ao mesmo axé, à mesma casa onde foram iniciados.

Mas as sucessões nas casas-de-santo (que têm conseguido sobreviver à morte do chefe) sempre foram conflituosas, desde as primeiras vacâncias do trono da Casa Branca do Engenho Velho, considerado "o primeiro terreiro"; por morte de suas ialorixás. Conflitos sucessórios na Casa Branca deram origem ao terreiro do Gantois, fundado por Maria Júlia da Conceição Nazaré, e anos depois ao terreiro do Axé Opô Afonjá, fundado por Aninha, ambas filhas da Casa Branca e pretendentes a frustradas sucessões. Num candomblé, quando morre a mãe-de-santo e o filho não concorda com a sucessão, ele busca outro axé, ou funda um outro. Fundar outro axé era fácil no princípio, mas não tanto agora, quando já há uma história, ou uma memória, alimentando o mecanismo de legitimação da origem.

Um filho pode, também, romper com sua mãe quando esta ainda é viva e procurar outra casa para se filiar. Há procedimentos complicados, o oráculo terá que ser consultado, interesses serão pesados etc. De todo modo, pode-se passar de um axé para outro através da "obrigação".

A obrigação, a adoção, pode ser radical e pública, com novos ritos de raspagem, mudanças do orixá da pessoa etc. Pode ser uma obrigação simples, como tomar um banho de ervas sagradas, fazer alguns sacrifícios, dar uma comida à cabeça. Varia muito. Quando uma mãe-de-santo deseja afastar a presunção de alguém que alega ser seu filho por obrigação, quando ela nega uma possível adoção, ela diz: "Da minha mão, ele não tem na cabeça nem um copo d'água".

Até quarenta ou cinqüenta anos atrás, as feituras-de-santo na Bahia envolviam uma série de casas (e em Pernambuco envolvem ainda hoje duas, a da mãe e a do pai-de-santo, que podem ser de origens diferentes). Compareciam mães e pais de diferentes casas e nações – era um momento de confraternização. Cada uma ajudava um pouco. A mãe tinha experiência na iniciação para determinado orixá, por não saber com segurança suas cantigas e preceitos, mandava a filha para ser iniciada em outra casa, ou chamava para o seu terreiro outra mãe-de-santo para ajudá-la a fazer a filha.

No candomblé de hoje, em São Paulo, na Bahia, em Pernambuco, no Maranhão, no Rio Grande do Norte, no Rio Grande dó Sul, a questão da origem parece ser o assunto predileto do povo-de-santo. O tempo todo a legitimidade da origem religiosa é posta em dúvida. Pai Alvinho é quem diz: "Eu fotografo tudo e anoto tudo, tenho todas as datas. Meus filhos podem provar que são meus filhos". Pai Idérito, que não admite a entrada de câmaras fotográficas no seu barracão, autoriza a família do iniciado a tomar algumas fotos em certos momentos da cerimônia pública.

A pesquisa de campo mostrou que são raríssimos os sacerdotes chefes de terreiros de São Paulo que permaneceram filiados ao axé de feitura (terreiro onde foram iniciados), ocorrendo seqüências de rupturas e refiliações que já vêm desde a Bahia, é bom deixar bem claro. Quando um pai-de-santo se afasta de seu pai ou mãe-de-santo e toma a mão de um outro, esta nova mão expressa, como comprova a presente pesquisa, uma mobilidade no campo da legitimação das origens, cuja trajetória é bastante clara, referida a conjunturas históricas que marcam o prestígio maior ou menor de uma nação-de-candomblé em relação às outras. Repete-se aqui, agora no universo do candomblé, o movimento de passagem da umbanda ao candomblé. Primeiro, entre 1960 e 1970, houve a tendência de maior filiação ao angola (que está mais próximo da umbanda), sobretudo o de Joãozinho da Goméia e seus descendentes. Nesse mesmo período foi igualmente expressivo o crescimento do candomblé de predominância iorubana, o de Alvinho d'Omulu, descendente direto da efã do terreiro Axé do Oloroquê da Travessa Antônio Costa, nº 2, Largo da Capelinha, Engenho Velho de Brotas, Salvador, além das várias linhagens gueto a que se filiavam outros pioneiros já citados. Waldomiro de Xangô, o Baiano, dessa mesma origem efã de Alvinho, ao passar para o axé do Gantois, onde teria dado obrigação com Mãe Menininha, arrastou consigo, nos anos 70 e 80, por adoções sucessivas, diretas ou colaterais, duas ou três gerações de iniciados paulistas.

No conjunto das 60 casas de candomblé que estudei em São Paulo, observamos as seguintes situações:

-           31 dos chefes foram originariamente umbandistas ou tocaram umbanda por um certo tempo, mesmo depois de iniciados no candomblé;

-           quatro deles permanecem com toques de umbanda regulares combinados ou alternados com o candomblé;

-           26 iniciaram-se na nação angola, muito mais próxima da umbanda e com grande prestigio derivado da visibilidade pública e do carisma de Joãozinho da Goméia até sua morte em 1971;

-           11 continuam na nação angola;

-           35 foram iniciados numa nação de predominância cultural iorubana (queto, efã, nagô);

-           45 fazem hoje parte deste grupo iorubano;

-           27 foram iniciados no queto;

-           37 são os que hoje estão no queto;

-           dois foram iniciados em linha direta no Gantois;

-           12 estão hoje filiados (dez por adoções sucessivas) ao terreiro de Menininha do Gantois.
Em resumo, a trajetória é, ou tem sido, a seguinte: umbanda, angola, queto, queto-Gantois. Um pai-de-santo, conversando comigo sobre o assunto, disse: "Joãozinho e Alvinho fazem, Waldomiro Baiano conserta e Menininha leva a fama. Coitada, ela nem sabe que é mãe do candomblé inteiro". Vamos fazer um pequeno cálculo. Do número de chefes de terreiro hoje filiados a uma nação determinada, subtraio o número de chefes que foram feitos naquela nação e divido esse resultado pelo número dos que se iniciaram. Multiplico o resultado por 100. Isto me dá uma taxa que expressa a direção e a magnitude da mobilidade por nação, uma medida de decréscimo ou crescimento da nação através da adoção; em outras palavras, a medida da mudança de axé, sem considerar as mudanças intermediárias e o fato de que a permanência na nação de origem não é suficiente para indicar que não tenha havido mudança de axé no interior da mesma nação, o que acontece quando se passa para uma outra família-de-santo daquela nação. As taxas calculadas são as seguintes:


Nação                                                                        Taxa de mudança
Umbanda                                                                                  -89 %        
Angola                                                                                       -58%
Queto, efã, nagô                                                                     +27%
Queto                                                                                        +37 %
Queto-Gantois                                                          +500 %     


Os dados são eloqüentes ao demonstrar o alcance do prestigio conquistado pelo candomblé gueto em detrimento do candomblé angola, e incisivos ao apontar para a supremacia do gueto do Gantois, que é apenas uma das muitas casas de gueto, mas que é a casa de Menininha. Impossível deixar de lado o fato de que, neste período, Mãe Menininha era uma figura de reconhecimento nacional. Mesmo muito doente nos últimos 20 anos de vida, sua presença na televisão não era rara. Em 1984, em sua última aparição no vídeo do "Jornal Nacional", recostada na cama, as pernas doentes escondidas por uma colcha de renda, na parede um quadro com a estampa de João Paulo II, respondeu sorrindo à repórter que lhe perguntara se ela era católica: "Eu sou católica. Eu sou de orixá, eu sou de Oxum". O Brasil, havia mais de dez anos, aprendera a cantar: "...A Oxum mais bonita, hein, - tá no Gantois... Olorum quem mandou esta filha de Oxum tomar conta da gente. De tudo cuidar... Ah minha Mãe Menininha..." (Prandi, 1990).

A amostra desta pesquisa não é aleatória, não pode ser usada, portanto, para estimar parâmetros. Isto não significa, porém, que não possa ser usada para indicar tendências. Acredito que o candomblé que mais se toca em São Paulo é o angola, mas ele está muito mais presente no interior dos terreiros de umbanda, onde fica e se reproduz dissimuladamente. Mesmo nas casas de gueto, quando há toque freqüente de caboclo, usa-se iniciar o toque de caboclo com um xirê de orixás em angola para depois virar o toque para caboclo. Das 60 casas de candomblé estudadas, em menos de dez não se dá toques para caboclos. Na casa de Pai Idérito*, filho do Gantois e africanizado, não se toca para caboclo. Também não na casa de Sandra de Xangô*, na de seu filho Armando de Ogum*, na de seu neto Reinaldo de Oxalá*, na de Iassessu*, na de Aulo de Oxóssi*, todas envolvidas em um projeto de africanização iniciado há poucos anos, e que optou pela extinção do culto a entidades que não sejam iorubanas. Menos radicais que esses, muitos pais e mães hoje tocam, entretanto menos freqüentemente, para seus caboclos do que costumavam, mas aqui a influência pode vir sobretudo do soteropolitano Axé Opô Afonjá de Mãe Stela; que foi e segue sendo um terreiro-modelo do candomblé gueto para todo o pais. Todos estes participam, cada um a seu modo, de um processo intencional de dessincretização, afastando-se do calendário litúrgico católico e eliminando símbolos e práticas do catolicismo umbandizado. A trajetória da legitimidade vai se desviando da prática do catolicismo, instituição branca que deu disfarce à instituição negra num tempo em que esta era, de fato, só de negros. O candomblé de hoje pode perfeitamente continuar católico, mas já não precisa do catolicismo para ser reconhecido e se reconhecer como religião, agora religião não mais restrita a grupos negros.

O candomblé é todo cheio de idas e vindas. Mudanças bruscas dão-se de uma hora para outra, elementos abandonados são pie repente introduzidos. E essas mudanças são de iniciativa e arbítrio do pai ou mãe-de-santo, que contudo, estrategicamente, sempre afirmará tratar-se de designo do orixá, que mostra seu desejo através do jogo de búzios, o qual só pode ser jogado e interpretado exatamente pelo pai ou mãe-de-santo, o chefe -da casa. Quem não gostar, que mude de casa, que mude de linhagem até.

Fazendo o cálculo do número de vezes que os sacerdotes-chefes desta amostra pesquisada mudaram de pai ou mãe-de-santo (ou por morte ou por ruptura, não importa), chegamos à média de 1,4. Isto sem considerar as mudanças indiretas resultantes de mudanças de axé por que já passaram o pai original, o pai adotivo, a avó etc. Quando um chefe-de-terreiro muda de axé, toda casa muda junto. Os que não concordam procuram outro axé ou então filiam-se ao próprio avô que o pai está deixando, ou ainda a um tio ou outro parente dentro da mesma família.

Wilson de Iemanjá*, por exemplo, foi feito no angola por Gitadê*, filho de Joãozinho. Wilson* saiu da casa de Gitadê*, tocou gueto durante cinco anos com a paternidade adotiva de Ojalarê*. Mas foi voltando ao angola, deixou o Ojalarê*, aproximou-se de seu irmão-de-santo de feitura, Guiamázi*. No dia 18 de fevereiro de 1989, foi a festa de sua obrigação de 14 anos, obrigação já conduzida pela mão de seu antigo irmão e hoje pai-de-santo Guiamázi*, ainda ligado a Gitadê*. Este, para deixar clara sua filiação, cantou uma cantiga de Obaluaiê, orixá de Gitadê*, no momento em que estava trazendo a Iemanjá de Wilson* para dentro do barracão. Em seguida, parou o toque e explicou para a platéia que cantou para Obaluaiê, à entrada de Iemanjá, porque "este é o santo de nosso pai, é em homenagem a ele".

Depois do rum (dança solo do orixá) na nação angola, Guiamázi* fez virar o toque para a nação gueto. Wilson* estava raspado, o que significa que o novo pai-de-santo entendia a obrigação como uma necessidade de "conserto" iniciático, talvez pelos cinco anos de convivência fora do axé e fora da nação. Mas mesmo isto não o desobrigava de tocar para aquela Iemanjá no angola e no queto.

Ainda que haja sempre muitas mudanças de axé, foi possível nesta pesquisa traçar, para a maior parte dos terreiros paulistas estudados, suas linhas genealógicas, que vão dar em um passado remoto, duma Bahia em que o candomblé estava nascendo. Nesse percurso, as famílias-de-santo vão se fazendo, desfazendo, refazendo-se.

A título de demonstração, mostro a seguir a teia de axés de urna iaô (filha-de-santo) de Iemanjá, cujo nome religioso é lá Bemin, e que um dia foi iniciada por Wanda de Oxum* e seu marido Gilberto de Exu*, já nossos conhecidos, e que depois tirou a mão dos que a iniciaram, tomando obrigação com Reinaldo de Oxalá*, que passou, assim, a ser seu pai.

A filha de Iemanjá e suas linhagens

I. A filha-de-santo lá Bemin (Mary Aparecida Ramacciotti) foi raspada por Wanda de Oxum* e por Gilberto*. Wanda* fora feita de Oxóssi por Joãozinho; Gilberto*, confirmado ogã por Diniz da Oxum, filho de Cristóvão, do terreiro do Oloroquê.. Wanda*, porém, foi reiniciada para Oxum por Waldomiro, o Baiano, que tendo sido um dia avo-de-santo de Gilberto*, passou a ser seu pai por obrigação. Como Waldomiro já tinha passado para o axé do Gantois, tanto Wanda* como Gilberto* passaram ipso facto à descendência de Menininha. Há, portanto, três origens aqui: 1) Goméia, angola, pela feitura de Wanda*; 2) Oloroquê, efã, pela iniciação de Gilberto* e de Waldomiro e 3) Gantois, queto, pela adoção de Waldomiro e adoções sucessivas de Wanda* e Gilberto*.

Iá Bemin rompeu com seus pais de origem e tomou, obrigação com Reinaldo de Oxalá*, seu pai adotivo, portanto.

II. Reinaldo de Oxalá* foi iniciado no candomblé por Roberto de Oxóssi, filho de Aníbal de Oiá, por sua vez iniciado por Alvinho de Omulu. Mas foi das mãos de Dagno de Oxumarê que Aníbal recebeu o seu decá (título de senioridade), tendo depois dado sua obrigação de 21 anos com Mãe Juju de Oxum*. Aqui temos mais uma origem e outra que se repete: 4) Oloroquê, efã, pela feitura do avô de Reinaldo*; 5) Gantois, queto; 6) Portão da Muritiba, queto, que são as duas origens de Juju* e que, nesta etapa, entram na história iniciática da iaô de Iemanjá pela obrigação de seu avô-de-santo, por adoção, portanto.

III. Mas Reinaldo de Oxalá* desliga-se de seu pai-de-santo e toma obrigação com Armando de Ogum*.

Armando* foi iniciado por Aligoã de Xangô*, filha de Ajaoci de Nanã*; iniciado por Lendembê de Oxum Ipondá (Justino do Ocupê), feito nos anos 20 por Jidenã em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, onde três municípios vizinhos, Cachoeira, São Félix e Muritiba, formam um celeiro de casas antigas de gueto e de jeje-marrim. Quando Jidenã morreu, Lendembê tirou a mão de vume (mão do falecido) com alguém cujo nome se perdeu na memória, mas quando este de nome esquecido veio a falecer Lendembê tirou a mão de vume com Joãozinho da Goméia, ainda na Bahia. Nessa etapa, temos o reaparecimento de uma origem e o surgimento de outra: 7) Jidenã de Cachoeira, jeje, por iniciação; 8) Goméia, por adoção. Veja-se que, até aqui, a iaô de Iemanjá pode invocar sete axés de origem. Mas a história não acabou.

IV. Armando de Ogum*, atual avô-de-santo de Iá Bemin, tinha muito antes saído da casa de Aligoã*, tendo tomado a mão de Ojalarê*. Ojalarê* é filho-de-santo de Gelson da Oxum, Omilarê (Gelson Martins do Rego), feito no santo em Cachoeira por Jaime de Obá, filho de jeje Enoque. Com a morte de Enoque, Gelson passou para as mãos de Mãe Samba Diamongo (Edith Apolinária de Santana), angoleira saída do Terreiro de Manso Bandunguenque ou "Bate Folha", com quem ficou 25 anos. Com a morte de Samba, 1979, Omilarê deu obrigação no gueto com Nandaré, neta-de-santo de Aninha do Opô Afonjá e, com a morte daquela, com Seu Zequinha do Bate Folha, voltando assim ao seu velho axé angola. Temos, portanto, mais raízes à vista: 9) Enoque de Cachoeira, jeje, em linha direta; 10) Bate Folha, angola, por obrigação, em linha direta e em linha colateral; 11) Opô Afonjá, gueto, por obrigação e em linha colateral.

V. Armando de.Ogum* deixou a casa de Ojalarê* e deu obrigação com Sandra de Xangô*, de quem recebeu o decá, e com quem está até hoje. Sandra* fora feita em São Paulo por Luan, filha de Maria de Xangô, angola, neta-de-santo de Nanã de Aracaju. Mais tarde, Sandra* foi reiniciada por Nádia Adelodê, de Guarulhos, de uma linhagem colateral do Gantois. E depois Sandra* tomou obrigação com o africano Epega Onadelê, membro da Orunmila Youngsters of Indigene Faith of África, de Lagos, Nigéria. Temos então nessa etapa de descrição: 12) Nanã de Aracaju, angola, por feitura em linha direta; 13) Gantois, por obrigação, em linha colateral e 14) África contemporânea, por obrigação, linha direta.

E assim, a filha de Iemanjá, Iá Bemin, é hoje filha-de-santo de Reinaldo de Oxalá*, gueto africanizado, neta de Armando de Ogum*, gueto africanizado, bisneta de Sandra de Xangô*, gueto africanizado, trisneta de apega, descendente iorubano do primeiro templo do deus Orunmilá, o dono do oráculo, criador dos 16 Odus que governam a vida e que permitem a decifração do destino. Ela mudou de axé uma vez, mas, no percurso de sua linhagem, podemos contar sete mudanças, as quais nos dão o número de doze mudanças em cadeia, de 1920 até este momento.

A iaô de Iemanjá pode dizer que tem axé da África atual, do Gantois, do Oloroquê, do Portão da Muritiba, da Goméia, do jeje de Cachoeira, do Bate Folha, de Nanã de Aracaju e do Opô Afonjá. Através dos axés do Gantois e do Opô Afonjá ela pode remeter sua origem à Casa Branca do Engenho Velho, fundante do gueto, e daí até a velha África, que marca os tempos da construção da religião dos orixás pelos africanos escravos, forros e livres no Brasil dos séculos passados.

Ela é branca, como brancos são o seu pai, seu avô e sua bisavó-de-santo. Mas sua africanidade é garantida tanto por aquelas origens passadas como por este esforço presente de religação religiosa com o continente negro. Fecha-se assim o círculo, até que novas rupturas e alianças venham a acontecer. Embora ela possa sentir-se parte de qualquer dessas famílias originárias, caberá a ela valorizar algumas, esconder outras e duvidar das demais. Poderá, inclusive, refazer sua rede em diferentes momentos. No candomblé, nem mesmo os deuses têm uma única origem com aceitação consensual. Nesse sentido, pode-se inclusive dizer que o mito segundo o qual Iemanjá é mãe dos demais orixás, com exceção dos orixás da criação, confio os Oxalás, é falso, uma vez que esse mito, generalizado no Brasil e em Cuba, nunca existiu na África, tendo sido resultante de um engano de registro etnográfico cometido na África pelo coronel Ellis. Nina Rodrigues tomou o mito como verdadeiro, embora não tenha encontrado sinal dele na Bahia, e o publicou. Foi imediatamente republicado em Cuba por Fernando Ortiz. Hoje em dia, há quem acredita ser Iemanjá a mãe dos orixás e há quem negue isso; não existe uma única história, uma só versão. E isto aplica-se ao candomblé como um todo, quer se trate de mito, de rito ou de organização sacerdotal.

O candomblé não passa registro em cartório. E mesmo quando o faz, não o leva muito a sério. Basta que nos lembremos de que a Federação Baiana do Culto Afro-brasileiro, controlada pelos terreiros gueto de maior prestígio da Bahia, entregou à sua mãe Sílvia de Oxalá* do Aché Ilê Obá paulistano o diploma de ialorixá, para, meses depois, durante o IV Encontro Nacional da Tradição e Cultura dos Orixás, que se realizava nas dependências do Opô Afonjá, em Salvador, com delegações de diversas partes do pais, insinuar que diploma não era raiz nem atestado, o que foi decisivo para derrubar Mãe Sílvia* da presidência da representação paulista. A presidência da delegação de São Paulo foi então assumida por um triunvirato composto de representantes de casas paulistas mais antigas e iniciados havia muito mais tempo que os então poucos anos de Mãe Sílvia*. Um par de anos depois deste incidente, em maio de 1990, o jovem terreiro da jovem Mãe Silvia* foi tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico de São Paulo (Condephaat) – a tradição negada pelos membros mais ativos do povo-de-santo foi atribuída através da via oficial. Quem poderá dizer agora que o Axé Ilê Obá, o terreiro do falecido pai Caio Aranha, de desconhecidas origens religiosas segundo a regra do candomblé, o terreiro cuja construção tombada pelo Patrimônio data de 1974 e cuja atual ialorixá não tinha os anos mínimos de senioridade ao assumir o cargo de sacerdotisa-chefe, quem poderá dizer que não é tradicional? Que não tem legitimidade? Que não tem origem, quando já é oficialmente considerado uma origem em si mesmo, numa metrópole onde a tradição tem a data de ontem?

De todo modo, a filha de Iemanjá, cuja teia de axés estamos perseguindo, é parente-de-santo (ruptura não apaga o passado, aprende-se no candomblé) dos chefes de 30 dos 60 terreiros estudados (ver BOX).

Podemos assim verificar que a filha-de-santo lá Bemin tem algum grau de parentesco com os pais e mães-de-santo que chefiam metade dos 60 terreiros paulistas estudados nessa pesquisa. Ela faz parte da segunda e da terceira geração de iniciados em São Paulo. A cada nova ruptura e novos laços que se dão no meio do povo-de-santo, mais amplo ficará o espectro dessa teia de axés.

Certamente essa filha-de-santo desconhece tudo isso. Nem teria ela procurado uma casa para se iniciar, e depois outra para se refiliar, com base nas origens religiosas desses terreiros. Ela está ainda muito distante do ponto a partir do qual um sacerdote ou uma sacerdotisa do candomblé começa a se preocupar com questões de origem e legitimidade.

Em maio de 1989, Reinaldo de Oxalá*, o pai-de-santo de Iá Bemin, iniciou-se para Oxum com o nigeriano de Abeocutá, Adesina Sikiru Salami, residente em São Paulo desde 1983. Nossa iaô de Iemanjá está agora muito mais perto da África.

Origem, publicidade e legitimidade

No candomblé, a idéia de legitimidade deriva da origem religiosa da casa que, por sua vez, depende de um reconhecimento público dos terreiros fundantes das linhagens, reconhecimento este que trabalha com critérios de seleção atribuídos pelo mundo exterior ao terreiro.

Os terreiros "fundantes" são, em princípio, os antigos e originais. Mas isto não basta. É preciso que esses terreiros – dentre muitos outros tão antigos e originais quanto eles – tenham atraído a atenção dos que transitam nos espaços públicos da sociedade, e que na Bahia e no Recife das três primeiras décadas de nosso século foram – e ainda continuam a ser – as academias de ciência, as artes, a imprensa, o "mundo culto", digamos.

É interessante como toda uma linhagem considerada bastarda pode, a qualquer momento, vir a fazer parte daquelas consideradas as mais legítimas. Muitos pais e mães-de-santo de São Paulo, que vêm passando por um processo de mobilidade social ascendente, aprendem três coisas: ou provam sua filiação original, ou se filiam por "obrigação" a um terreiro de linhagem prestigiada, ou lutam para ser "fundantes" de seus próprios axés.

O reconhecimento de um axé ocorre quando parte de seus múltiplos segmentos ganha notoriedade fora do espaço do terreiro.

As fontes de legitimação podem ser: o interesse acadêmico despertado, ó carisma do pai ou mãe-de-santo, o sucesso do sacerdote no mercado religioso, sua visibilidade na mídia. Não são quatro alternativas. Hoje, são quatro condições necessárias, mas ainda assim não suficientes. Um pai-de-santo precisa ter filhos-de-santo, muitos filhos-de-santo, sem os quais ele é incapaz de rotinizar e reabastecer constantemente sua aura sacerdotal, filhos sobre os quais exerce sua dominação, realiza seu talento estético e exercita sua majestade. Esse pai-de-santo tem que estar, ao mesmo tempo, voltado para dentro e para fora do terreiro.

A maior parte dos pais e mães-de-santo não tem percepção alguma do que seria essa legitimidade, tampouco a têm os iaôs, em sua esmagadora maioria. São mães e pais-de-santo desconhecidos, o que não desmerece seu papel religioso. Na verdade, enquanto esses pais e mães-de-santo atendem a uma clientela e a um grupo de fiéis desinteressados da vida pública, não faz sentido algum a noção de legitimidade pela origem.

O sacerdócio no candomblé também é um meio de mobilidade social ascendente – como foi o clero católico para muitas famílias pobres com projetos de ascensão para seus filhos e como o é toda e qualquer liderança religiosa. Assim, aqueles que começam a ser bem-sucedidos socialmente (o que implica clientela) tendem a se envolver na busca de prestigio que pressupõe uma pureza original, a qual vem do passado (a África através da Bahia) ou do presente (a África ela mesma, a de hoje). No processo de legitimação que foi se firmando em São Paulo desde o final dos anos 70, a maioria dos sacerdotes que se deixa envolver nesse. processo é forçada a peregrinar à África, dar obrigações e tomar cargo nos templos (paupérrimos, aliás) da Nigéria e do Benin, repetindo a saga de Martiniano do Bonfim, da Bahia, e de Adão, do Recife, entre outros "grandes" dos anos 30.

Isto é africanizar. Mas africanizar não significa nem ser negro, nem desejar sê-lo e, muito menos, viver como os africanos. Dos nossos 60 terreiros, 27 são chefiados por brancos. Destes, nove ostentam títulos religiosos conquistados em um ou mais templos nos países africanos que contêm os povos iorubanos.

Africanizar significa também a intelectualização, o acesso à leitura sagrada contendo os poemas oraculares de Ifá, a reorganização do culto conforme modelos ou com elementos trazidos da África contemporânea (processo em que o culto dos caboclos é talvez o ponto mais vulnerável, mais conflituoso); implica o aparecimento do sacerdote na sociedade metropolitana como alguém capaz de superar uma identidade com o baiano pobre, ignorante e preconceituosamente discriminado.

Cada um, a partir da África e fora do circuito dominante do candomblé baiano, reconstrói seu terreiro selecionando os aspectos que lhe pareçam mais convenientes ou interessantes. Nesse sentido, africanização é bricolagem. Não é a volta ao original primitivo, mas a ampliação do espectro de possibilidades religiosas para uma sociedade moderna, em que a religião é também serviço e, como serviço, se apresenta no mercado religioso, de múltiplas ofertas, como dotada de originalidade, competência e eficiência. Se seguirmos os passos daqueles que mudam de um axé para outro, veremos com expressiva freqüência a busca de um novo terreiro que seja capaz de superar o anterior em termos de sua publicidade, fama, prestígio. Assim, mudança de axé, mudança de linhagem, significa também a procura de maior legitimidade para a opção religiosa e, junto com isto, um esforço de mobilidade ascendente que é mobilidade social.

A africanização como processo de religamento do candomblé à África contemporânea é uma forma que este novo candomblé de São Paulo encontrou para se libertar do velho e original candomblé baiano e até mesmo supera-lo, criando sua própria originalidade, legitimidade. Necessita-se de uma medida nova de importância e prestígio, e que não pode ser a antigüidade. Para completar esse movimento de autonomização em relação às velhas e tradicionais casas da Bahia, o candomblé de São Paulo tem assim necessariamente de reinventar-se também como tradição. Nesse sentido, o tombamento do nada tradicional Axé Ilê Obá pelo Condephaat é escancaradamente emblemático.

(Recebido para publicação em agosto de 1990)

Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).


ANEXO (Box)

-Abdias de Oxóssi*, que vem originalmente do Bate Folha, é seu tio em terceiro grau;

- Ada de Obaluaiê*, feita por Alvinho e adotada por Baiano (que teria lhe dado, a seu pedido, a obrigação em efã e não em gueto), é sua tia duas vezes em primeiro e segundo

- Adilson de Ogum* (falecido em 6/10/89) foi seu tio também, pois ele era filho de Toloquê, que é filha de Joãozinho e depois de Baiano;

- Aligoã de Xangô* é sua avó pela feitura de Armando*, seu atual avô adotivo;

- Ajaoci de Nanã* é pai de Aligoã*, avô de Armando*, por conseguinte, seu bisavô;

- Armando de Ogum* é seu avô adotivo;

- Aulo de Oxóssi* é primo distante por suas origens angola que vem de Manodê* e par sua adoção (contestada por alguns) pelo Opô Aganju que é dissidência do Opô Afonjá baiano;

- Cidinha de Iansã*, adotada por Kajaidê* é um parente distante par adoções sucessivas que os ligam ao Gantois;

- Deusinha de Ogum*, filha de Alvinho, é sua tia-avó, por adoção;

- Doda de Ossaim* também é seu parente, já que é filho adotivo de Kajaidê*;

- Francisco de Oxum*, filho de Merucá*, é parente bem distante;

- Gabriel da Oxum*, descendente em linha direta de Maria Neném, é seu parente distante por antigos laços das famílias do angola, embora ambos sejam queto;

- Gilberto de Exu* é seu pai original e parente distante pela filiação a Baiano;

- Wanda de Oxum* é sua mãe original e parente também por parte da linhagem indireta do Gantois que passa por Baiano;

- Isabel de Omulu*, mãe carnal e irmã-de-santo de Wanda*, é sua tia de santo, por parte da linhagem da Goméia;

- Gitadê* é seu tio direto e parente distante por parte da Goméia;

- Guiamázi*, filho de Gitadê, é seu primo em primeiro grau;

- Idérito de Oxalá* é parente distante, pelo Gantois;

- João Carlos de Ogum*, filho de Alvinho, é seu tio-avô;

- José Mauro de Oxóssi*, filho de Alvinho, é também seu tio-avô;

- José Mendes* é seu parente pelo Portão de Muritiba;

- Juju de Oxum* é sua bisavó, por adoção;

- Kajaidê* é parente distante pelos lados do Gantois;

- Manodê* é sua tia-trisavó, par adoção, por parte de seu avô adotivo;

- Matamba*, irmão adotivo de Ojalarê*, é seu tio-bisavô por adoção;

- Meruca* é parente muito distante;

- Ojalarê* é seu bisavô, por adoção de Armando*;

- Pérsio de Xangô* é seu,parente através de Juju*, de quem ele é irmão, pelo Portão da Muritiba e pelo Gantois;

- Quilombo* é seu tio, pela Goméia;

- Reinaldo de Oxalá* é seu pai adotivo;

- Sandra de Xangô* é sua atual bisavó adotiva;

- Tonhão de Ogum*, filho de Pérsio*,é seu, primo por adoção pelas linhas do Gantois é do Portão de Muritiba;
- Wilson de Iemanjá*, filho de Gitadê* e depois irmão e filho adotivo de Guiamázi*, é seu primo em primeiro grau pela linha direta da Goméia.



NOTAS

1 - A palavra nação, no candomblé, expressa uma modalidade de rito em que, apesar dos sincretismos, perdas e adoções que se deram no Brasil, e mesmo na África de onde procediam os negros, um tronco lingüístico e elementos culturais de alguma etnia vieram a prevalecer (Lima, 1984, pp. 11-26).

2 - Para uma visão dos diferentes arranjos que compõem uma dada "nação" de candomblé, recomendo uma leitura de Lima, 1984 (gueto, angola, jeje e de caboclo, na Bahia); Moda e Lima, 1985 (xangô pernambucano); Ferretti, 1985 e Femetti, 1986 (tambor de, mina ou jeje-mina, do Maranhão); Corrêa, 1988 (batuque gaúcho).

3 - Chamo-os de terreiros de "mais prestígio" pelo simples fato de serem, ainda hoje, os mais lembrados por aqueles que circulavam, naquela época, nos meios do povo-de-santo no Rio de Janeiro.

4 - A pesquisa sobre o candomblé no Rio de Janeiro é bastante limitada De uma enormidade de terreiros importantes na história do candomblé no Rio, apenas dois mereceram estudos detidos, o da Goméia (Cossard-Binon, sal.) e o Opô Afonjá (Augras e Santos, 1983). Há uma certa disputa sobre qual dos dois Opô Afonjá, o do Rio ou o de Salvador, teria sido fundado primeiro por Mãe Aninha.

5 - Há informações interessantes sobre os baianos fundadores dessas casas, no Rio, em depoimentos e comunicações publicadas no livro organizado por Lima (1984). A primeira referência a Joãozinho da Goméia que encontrei na literatura está em Landes (1967, p. 230), que também se refere a Ciríaco e Bernardino do Bate Folha. Ruth Landes os conheceu em 1938, em Salvador.

6 - Este trabalho obriga-me a citar algumas dezenas de nomes de pais e mães-de-santo. No presente texto, todo nome acompanhado de um asterisco indica tratar-se de sacerdote chefe de terreiro localizado na área metropolitana de São Paulo e que foi incluído na pesquisa. Para simplificar, uso aqui apenas o nome pelo qual eles são popularmente conhecidos, mas seus nomes civis e o nome, endereço e nação de seus terneiros podem ser encontrados no artigo "Deuses Tribais de São Paulo" (Prandi e Gonçalves, 1989a). No caso de sacerdotes que não compõem a amostra de São Paulo, procurei fornecer o nome civil, sempre que me foi possível descobri-lo.

7 - Barco de iaôs é o conjunto de iniciados recolhidos e raspados numa mesma leva. Um barco de iaôs pode ter desde um noviço até vinte ou mais. Em São Paulo, dois ou três são considerados um bom número por muitos pais-de-santo. Um barco grande tem a vantagem de cotização das despesas da festa que encerra a feitura, mas exige instalações espaçosas no terreiro. Em cada barco estabelece-se uma hierarquia, na qual o primeiro a entrar no roncó (clausura) e a ser posteriormente raspado e apresentado ao público na "festa do nome" tem precedência ritual sobre o segundo, que tem precedência sobre o terceiro e assim por diante. Há nomes para os postos na hierarquia do barco. O primeiro é chamado dofono, o segundo, dofonitinho, o terceiro, forno, e, sucessivamente, fomutinho, gamo, gamotinho, domo, domutinha, vito e, o décimo, vitutinho. É comum alguém se referir a outro dizendo: "Ela é minha dofona; ele é o gamo do quarto barco de meu pai". Também é freqüente a incorporação do nome da ordem de barco no nome do iniciado, como é o caso de Tata Fomutinho. O dofono do primeiro barco de uma casa é também chamado rombono. Ver Lima, 1984, pp. 66-76.

8 - Por estranha ironia, a popularidade e o reconhecimento público de pais e mães-de-santo costumam vir à tona na ocasião de seus enterros. Como aconteceu com Aninha e Senhora do Opô Afonjá, com Adão do Recife, com Menininha Uma pesquisa em antigos jornais atesta como esses sacerdotes e sacerdotisas vão para as primeiras páginas dos jornais locais ao morrer, no caso de Menininha, para a televisão por todo o país. Quando Nanã faleceu, os jornais de Aracaju puseram o fato nas manchetes principais da primeira página. E é também interessante que, a cada falecimento de uma dessas grandes personalidades públicas do candomblé, alguém escreverá que o candomblé está no fim. Isto vem desde os anos 30 (ver Fernandes, 1937).

9 - Ver Cavalcanti, 1935. Mãe Das Dores aparece citada a seguir em Fernandes, 1937; Lima, 1937; Motta, 1980; Segato, 1984; Carvalho, 1984 e 1987, Brandão, 1986; Prandi e Gonçalves, 1989a e 1989b. Em 1980, Mãe Maria Das Dores já transferira seu terreiro para São Paulo. Em todos esses títulos referidos, o citado Pai Adão e seu terreiro de Iemanjá, onde Mãe das Dores foi por muito tempo, segundo o costume pernambucano, mãe-de-santo coadjutora, são os protagonistas primeiros.


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