CASA PODEROSA DOS FILHOS DE YEMANJÁ

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sábado, 29 de dezembro de 2012

Projeto de Lei que proíbe a prática do Candomblé e sacrifícios de animais em rituais de religiosidade



Na cidade de Piracicaba/SP, a Câmara Municipal aprovou um projeto de Lei que proíbe a prática do Candomblé e sacrifícios de animais em rituais de religiosidade, penalizando com o pagamento de multas entre R$ 2.000,00 e 4.000,00 àqueles que descumprirem a suposta lei. 

Segundo Maurílio Ferreira da Silva, do Movimento Negro Unificado – Campinas/SP, comenta-se, em Piracicaba, que o referido projeto de lei é parte de um movimento denominado “ALIANÇA PARA A SUPREMACIA CRISTÔ, que objetiva levar esse projeto a outras cidades de São Paulo além de encaminhá-lo à Câmara Federal por meio de deputados dos PT, PDT, PP, PPS, PTB, PR, PMDB, PRB, PSDB, partidos nos quais se abrigam os vereadores que aprovaram o projeto por unanimidade.

Em Campina Grande/PB, aconteceu o mesmo, com a aprovação de um projeto de lei de autoria do vereador Olímpio Oliveira. Em Piracicaba e em Campina Grande, o projeto ainda não foi sancionado pelos respectivos prefeitos municipais. 

A justificativa dos parlamentares é a “garantia de vida e bons tratos para com os animais”.

Vamos, então, a alguns contra-argumentos. Primeiro, de ordem jurídica, o projeto é inconstitucional, pois fere ao Artigo 5º da Constituição Federal, no Inciso VI que diz ser “inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de cultos e a suas liturgias”. 

De modo que, o município pode ter autonomia na sua legislação, mas essa autonomia não pode se contrapor a lei maior.

Um segundo contra-argumento é ético, se baseia na noção de cidadania cultural, de convivência com as diferenças, de respeito às diversidades da experiência humana. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, após a catástrofe que se anunciou na primeira metade do Século XX, pensadores Pós-Modernos vem denunciando o paradigma da modernidade racional-instrumental, tido como excludente, de discurso único e de classificações dos seres humanos baseadas em critérios étnico-racial da Ciência Moderna. Contra isso, na segunda metade do referido século, ganhou força os movimentos sociais que primam pela diversidade e pela valorização das identidades marginalizadas durante a Modernidade. Mulheres, negros, gays, lésbicas, ambientalistas, hippies, foram às ruas, gritaram, resistiram e buscaram a construção de políticas afirmativas. 

O Paradigma Moderno “normalizou” um padrão de comportamento, o homem (macho), heterossexual, cristão, branco, burguês e europeu, “anormalizando” quem não se enquadrasse nesses critérios colonialistas/ocidentalizantes. Portanto, por que continuar, em pleno Século XXI, com a declaração de guerras religiosas contra as crenças de matrizes africanas e indígenas? Por que continuar o discurso colonialista de “satanização” do Outro, o não europeu cristão? Por que ainda essa insistência em um projeto de “aculturação”, de busca pela eliminação das práticas religiosas “estranhas” aos olhos das religiões hegemônicas? Que cidadania é essa que exclui, ao invés de contemplar todas as diferenças?

Terceiro contra-argumento, de ordem histórica. Sacrificar animais, oferecer alimentos, frutas, flores, vinhos e bebidas às divindades, faz parte das mais diversas e antigas religiões e religiosidades da história. No mito sumério do dilúvio, conta-se que Ziuzudra construiu um grande barco que resistira à inundação e a tempestade e, após o sacrifício de um animal, fez-se a reconstrução do mundo. Os hebreus, influenciados por esse mito, também falam de um sacrifício de animal em oferecimento a Deus, realizado por Noé, para a reconstrução do mundo pós-dilúvio. 

Os egípcios, para agradarem aos deuses e manter o cosmos, sacrificavam animais em oferendas. Os persas, acreditando na luta entre as divindades do “bem” e do “mal”, faziam o mesmo, objetivando auxiliar o triunfo das forças do “bem” durante o Juízo final. Após o sacrifício, a comida era partilhada entre os sacerdotes. 

A mitologia grega também nos mostra exemplos similares. Em suma: o sacrifício de animais, as orações, as festas públicas, os diversos rituais, variando de acordo com as diversas sociedades e culturas antigas, eram oferecidos às divindades como forma de agradá-los, de buscar a “perfeição do cosmos”, a continuidade da felicidade no além-túmulo e no combate a forças “maléficas”, sempre tidas como perturbadoras da ordem. São apenas exemplos rápidos de algumas religiões mais antigas, que poderão ser aumentados se formos buscar as sociedades pré-colombianas e africanas. 

Entretanto, esses breves exemplos nos permitem mostrar que as práticas de sacrifícios de animais são tão antigas quanto à própria história e fazem parte do patrimônio cultural dos seres humanos. Na Idade Média e Moderna, essas práticas são “diabolizadas” pelo Cristianismo associadas, discursivamente, às superstições, bruxaria, magia, o que fez valer o acionar da máquina da Inquisição.
O povo do santo sacrifica animais, oferece alimentos, bebidas, cigarro, oferecendo aos orixás, exus, pombas-gira, caboclo, mestre, preto velho, o corte de animais e o oferecimento de alimentos e bebidas variam de acordo com cada entidade e ocorre, geralmente, nas festas dos santos ou nos toque de jurema. 

É uma prática herdada dos ensinamentos trazidos nas caravelas pelos escravos africanos, porém, combatida pelas ordens religiosas, a exemplo dos Jesuítas aqui no Brasil. Marginalizada e “demonizada” pelo projeto cristão de colonização, conforme nos mostra, com larga competência, a historiadora Laura de Mello e Souza. 

No Império e na República, a repressão e o preconceito continuou como no caso de invasão de terreiros pela polícia na época do governo Vargas.
Diante do exposto, percebe-se o quanto os projetos votados, atualmente, em Piracicaba e Campina Grande são: juridicamente, inconstitucional; politicamente, antiético para com a diversidade humana; e historicamente, retroativo, indo ao encontro das práticas repressivas e criminalizantes do passado, esquecendo o legado cultural positivo das alteridades no tempo/espaço.

Quanto à justificativa, acho que é uma bela cartada política de parlamentares afeitos ao paradigma judaico-cristão, que, utilizam o discurso do “protecionismo” aos animais para violentar, simbolicamente, os humanos. 

A propósito, gostaria de citar um internauta de Piracicaba: “Acabem c/ o Rodeio anual que há aí, chega de ‘sertanojo’ e judiação de bois. Fechem as churrascarias, ninguém vai morrer se não comer medalhão c/ bacon. Fechem a Esalq, que usa cobaias animais. 

Por fim, fechem as fazendas de gado de corte (já escrevi como animais morrem sob tortura), que tem de monte na região. Se puderem, fechem a cidade, que é um grande desperdício de água e luz (tenho família aí, sei como é)” A questão é a seguinte: não será mais o combate ao Candomblé e a Umbanda do que a proteção aos animais que esses projetos almejam? 

Por que, se a justificativa for essa, de fato, é preciso fechar matadouros e restaurantes, vigiar cardápios, fechar grandes e pequenas fazendas que se destinam ao criatório para abastecer o mercado de carnes, proibir vaquejadas, proibir sacrifício de galinhas para os pavilhões das festas de padroeiros, proibir que padres recebam doações e façam leilões de bodes e carneiros em festas religiosas… E haja projetos de lei!
Por que não se legisla combatendo a corrupção que permeia as religiões e punindo seus praticantes? 

Por que não se legisla por uma educação que prime pela convivência humana com as diferenças? 

Por que, juntamente, com os animais, não se legisla em favor dos humanos? 

Será que esses vereadores vão deixar de comer carne, de usar sapato de couro, de comer uma galinha de capoeira no final de semana? 

Ou a dor da morte é diferente, entre o morrer para o mercado e o consumo privado e o morrer durante rituais religiosos?

José Luciano de Queiroz é professor da Universidade Federal de Campina Grande e Doutor em História


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