CASA PODEROSA DOS FILHOS DE YEMANJÁ

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sábado, 29 de dezembro de 2012

OS PRECEITOS PRÁTICOS EM GERAL E OS DE HENRY FORD EM PARTICULAR



Deve o leitor ter notado que, em várias alturas deste volume, temos enchido os espaços entre os fins dos artigos e os das páginas com breves preceitos, máximas e considerações de diversa ordem, tendentes muitas a indicar, tanto quanto em nós coube fazê-lo, regras de vida para a realidade, distintas daquelas regras de vida que têm apenas um sentido moral ou educativo.

Apreciadas favoravelmente por muitos leitores, têm levantado em outros alguns reparos, assim como os tem levantado o tom por vezes leve ou irónico com que anotámos uma ou outra matéria.

Quanto ao tom humorístico de certos trechos e preceitos, não queremos defendê-lo senão com a explicação de que mais vale expor uma coisa com leveza do que com pedantismo. A verdade não vale menos dita com um sorriso do que dita com um ar severo, pela mesma razão que não pesa mais um argumento exposto em linguagem, erudita do que um argumento exposto em linguagem simples. E tudo uma questão de modo de dizer, e mais nada.

Mais interessante, porque mais complexo, é o problema que surge em torno da natureza, que a vários tem parecido crua e quase cínica, de alguns preceitos que aqui receberam o relevo da concisão e do itálico. Achamos por isso que nos cumpre, ao fechar este volume, dar do assunto uma breve explicação. E essa explicação servirá de motivo à apresentação de certos novos preceitos, cujo interesse particular participará do interesse geral que pretendemos dar a este artigo.

O homem supõe que é um animal racional. Pode ser que o seja e pode ser que o não seja: a psicologia científica contesta a importância e a preponderância da razão na vida individual. São, diz ela, os instintos, os hábitos, os sentimentos e as emoções que verdadeiramente guiam o homem; a razão não serve senão de interpretar para a vontade esses impulsos sub-racionais. Mas o facto é que a própria circunstância de o homem se considerar um ente essencialmente racional faz com que, ainda que de um modo indirecto, a razão assuma, na vida dele, uma importância verdadeira. Ora um dos empregos abstractos da razão é o de formar preceitos, máximas, ou normas intelectuais, para a condução, geral ou particular, da vida.

Os preceitos são de três ordens: podemos chamar-lhes (1) preceitos morais, (2) preceitos racionais, (3) preceitos práticos. 

Os preceitos morais expõem o que devemos fazer para ficarmos de bem com a nossa consciência. 

Os preceitos racionais expõem o que devemos fazer para ficarmos de bem com a nossa vida. Os preceitos práticos expõem o que devemos fazer para ficarmos de bem com as nossas ambições. 

Os primeiros são, como diz o nome que lhe demos, invariavelmente morais no que expõem.

Os segundos são simplesmente o que se pode chamar sensatos. 

Os terceiros são muitas vezes pouco morais e, até, pouco sensatos, por isso mesmo que a vida, na sua realidade prática, é frequentemente imoral, e não poucas vezes absurda.

Quatro exemplos explicarão os três casos. 

Exemplo de um preceito moral: Não faças aos outros o que não quiseres que eles te façam. Exemplo de um preceito racional: Conhece-te a ti mesmo. 

Exemplo de um preceito prático pouco moral: Se quiseres enganar alguém por intermédio de um enviado, engana primeiro esse enviado, porque então ele mentirá com convicção. Exemplo de um preceito pouco “sensato”: Quem não deixa nada ao acaso, pouco fará mal, mas fará muito pouco. 

O primeiro preceito é, em uma forma ou outra, de diversos sistemas religiosos. 

O segundo, inscrição num templo grego, é atribuído a um sábio da Grécia que provavelmente nunca existiu. 

Dos dois últimos, o primeiro é do florentino Guicciardini, e o segundo do inglês Halifax.

Nos próprios preceitos portugueses populares, a que chamamos provérbios, encontramos estas três ordens de máximas. Um provérbio moral: Filho és e pai serás; conforme fizeres, assim acharás. Um provérbio racional: Fia-te na Virgem e não corras, e verás o tombo que levas. Exemplo de um provérbio prático: Quem o inimigo poupo, às mãos lhe morre. Ninguém poderá dizer que este último provérbio, que é uma espécie de recomendação do que podemos chamar o homicídio predefensivo, tenha vantagens morais sobre o preceito de Guicciardini, acima citado. É-lhe, aliás, inferior em utilidade, pois o preceito do florentino é universalmente verdadeiro, e o provérbio português é-o apenas em relação a certos inimigos, e a certas circunstâncias.

Estas considerações, que, assim ilustradas por exemplos, devem ser claras para todos, servir-nos-ão de base para o estudo do problema.
A sociedade é um sistema de egoísmos maleáveis, de concorrências intermitentes. Cada homem é, ao mesmo tempo, um ente individual e um ente social. Como indivíduo, distingue-se de todos os outros homens; e, porque se distingue, opõe-se-lhes. Como sociável, parece-se com todos os outros homens; e, porque se parece, agrega-se-lhes. A vida social do homem divide-se, pois, em duas partes: uma parte individual, em que é concorrente dos outros, e tem que estar na defensiva e na ofensiva perante eles; e uma parte social, em que é semelhante dos outros, e tem tão-somente que ser-lhe útil e agradável. Para estar na defensiva ou na ofensiva, tem ele que ver claramente o que os outros realmente são o que realmente fazem, e não o que deveriam ser ou o que seria bom que fizessem. Para lhes ser útil ou agradável, tem que consultar simplesmente a sua mera natureza de homens. 

A exacerbação, em qualquer homem, de um ou outro destes elementos leva à ruína integral desse homem, e portanto à própria frustração do intuito do elemento predominante, que, como é parte do homem, cai com a queda dele. Um indivíduo que conduza a sua vida em linhas de uma moral altíssima e pura acabará por ser intrujado por toda a gente — até pelos indivíduos que, sendo também morais,o são com menos altura e pureza. E o despeito, a amargura, a desilusão, que corroem a natureza moral, serão os resultados da sua experiência. Mas também um indivíduo, que conduza a sua vida em linhas de um embuste constante, acabará, ou na cadeia, onde há pouco que intrujar, ou por se tomar suspeito a todos e por isso já não poder intrujar ninguém.

Ora é por causa desta dupla natureza real do homem que se engendraram preceitos de dupla natureza — uns dirigidos à formação do homem moral ou social; outros tendentes à sua educação defensiva e ofensiva. Os preceitos que chamámos racionais ocupam um lugar intermédio; não se dirigem à formação da sociedade, nem à educação do egoísmo; são regras para uma vida harmónica e sossegada, que se não estorva a si, nem estorva os outros.

O que constitui, porém, a essência de um preceito é que, quer se dirija especialmente à formação do homem moral ou social quer se dirija especialmente à formação do homem individual ou egoísta, o preceito conta sempre com a existência da outra natureza do homem. Como a realidade tem dois elementos — o moral e o prático —, o preceito moral conta sempre com a existência do elemento prático, e o preceito prático conta sempre com a existência do elemento moral. O preceito moral, para ser verdadeiramente preceito, nunca esquece um certo limite. O preceito prático, para ser verdadeiramente preceito, nunca esquece uma certa regra. Nisto se distinguem os preceitos, propriamente ditos, das regras misticamente religiosas, por um lado, e das indicações cinicamente absurdas, por outro. O preceito, moral ou prático, está num ponto intermédio entre o Sermão da Montanha e o Manual do Perfeito Escroque.

Do preceito, a que chamámos racional, não é preciso acentuar este carácter médio, porque a própria definição, que dele demos, por si mesma o acentua.
Propusemo-nos estudar e explicar o preceito, a que chamamos prático — aquele que frequentemente parece imoral ou insensato. Estamos já, depois do breve estudo que fizemos, em estado de o definir.

Um preceito prático é uma regra de procedimento egoísta que não esquece a dupla natureza do homem nem o equilíbrio entre os seus dois elementos. Há assuntos ou circunstâncias em que, pela sua própria natureza, o elemento moral não figura; o preceito que se estabelece para esses será necessariamente imoral. Há assuntos ou circunstâncias em que, pela sua própria natureza, o elemento prático mal figura; o preceito que se estabeleça para esses será necessariamente moral. Há assuntos ou circunstâncias quase sempre anormais, em que, pela sua própria natureza, se deu uma rotura do equilíbrio usual das coisas; o preceito que se estabeleça para esses tem que recomendar que se faça, para equilibrar as coisas, uma rotura de equilíbrio em sentido contrário, resultando pois um preceito que parecerá insensato.

Estas explicações, que, embora lúcidas, são abstractas, concretizar-se-ão para o leitor nos novos exemplos, que vamos dar, de cada espécie de preceito prático que mencionámos.
Exemplos do preceito prático simples: Todos vêem o que pareces; poucos sabem o que és (Maquiavel). Nunca faças a alguém um favor à custa de outro; pois o primeiro provavelmente esquecerá o favor, mas o segundo com certeza não esquecerá a injúria (Guicciardini). A dissimulação é como a maioria das outras qualidades; é necessária, e é, ao mesmo tempo perigosa. Não a ter torna-nos desprezíveis; tê-la em excesso torna-nos suspeitos. Nada há, porém, de grande nesta qualidade, pois uma criada de quarto a possui ordinariamente em maior grau que qualquer príncipe (Halifax).

Exemplos do preceito prático necessariamente imoral: Ou evita fazer mal a alguém; ou, se decides fazer-lhe mal, faze-lhe então todo o mal que puderes. — É melhor matar um homem do que ameaçá-lo de morte, porque os mortos já não pensam em vingar-se. — Os homens são sempre mais prontos em retribuir injúrias do que favores, porque retribuir um favor é uma obrigação e retribuir uma injúria é um prazer. Todos estes primores de moral são de Maquiavel, que, deve notar-se, escreveu principalmente para políticos, e numa época de política subtil e agitada. Mas, salvo em circunstâncias sociais onde em absoluto não tenham cabimento, estes princípios são absolutamente verdadeiros.
Exemplo do preceito prático necessariamente moral: A honestidade é a melhor táctica (provérbio inglês).

Exemplos do preceito prático necessariamente “insensato”:
Nas grandes dificuldades, age sempre antes de pensares (anónimo). — O que não tem remédio, remediado está (provérbio português).

Com as explicações que demos, e os exemplos que acabamos de dar, deve o leitor ter ficado sabendo o que é essencialmente um preceito prático. E com esse conhecimento nos terá absolvido do pouco que lhe possa ter parecido cru ou cínico em qualquer das breves máximas que temos espalhado pelas bases das nossas páginas.
Cumprido isto, que era uma parte do que prometêramos fazer neste estudo, vamos cumprir a outra parte prometida. Vamos apresentar o último grupo de preceitos práticos que surgiu na publicidade. E mais que recente, é recentíssimo, o seu aparecimento. Devemos esses preceitos, de intuito primordialmente industrial, e, portanto, próprio desta Revista, ao grande fabricante americano, e milionário supremo do mundo, Henry Ford.
Os preceitos práticos mais úteis são, como é de esperar, obra, não dos homens inteligentes mais práticos, mas, o que é diferente, dos homens práticos mais inteligentes. Os grandes mestres do preceito prático foram políticos que reflectiram sobre a política. Tal foi Maquiavel, cujos preceitos iluminam principalmente o que há de vil e de mau em todos os homens; tal foi George Saville, Marquês de Halifax, cujas máximas ilustram sobretudo o que há de francamente humano em toda a gente.

De Henry Ford, mestre de indústria, haveria a esperar preceitos práticos que esclarecessem as condições essenciais das chefias modernas, pelo menos no campo particular da indústria e do comércio. A vida actual, porém, ou as pessoas que a vivem, tem, ao que parece, um carácter maior de hipocrisia que a Renascença italiana ou a Restauração inglesa. Os preceitos práticos de Henry Ford dão-nos o que parece ser o resultado de só aquela metade da sua experiência que lhe convém dizer-nos. Participam um pouco da atmosfera da Lei Seca. São-nos servidos com água.
Tais quais são, porém, vale a pena lê-los.

No original — que está no último dos vários livros que Henry Ford vem lançando em explicação da sua vida e reclame dos seus carros — estão dispersos e incoordenados,. Lord Riddell deu-se ao trabalho de os coordenar e concentrar. E, pois, na redacção de Lord Riddell que vamos dar os nove mandamentos industriais do multimilionário americano.
Aí vão:
I. — Busca a simplicidade. Examina tudo constantemente, para ver se descobres como simplificá-lo. Não respeites o passado. O facto de que uma coisa se fez sempre de certa maneira não prova que não haja uma maneira melhor de a fazer.
II. — Não teorizes; faz experiências. O facto de as experiências passadas não terem dado resultado não quer dizer que o não darão as experiências futuras. Os peritos são escravos da tradição. É, pois, preferível entregar a investigação de novos projectos a pessoas enérgicas de inteligência lúcida. Elas que se sirvam dos peritos.
III. — O trabalho e a perfeição do trabalho tomam a precedência do dinheiro e do lucro.
IV. — Faz o trabalho de modo mais directo sem te importares com regras e leis, nem com as divisões vulgares da disciplina.
V. — Instala e mantém todas as máquinas no melhor estado possível e exige um asseio absoluto em toda a parte, para que um homem aprenda a respeitar a sua ferramenta, o seu ambiente, a sua própria pessoa.
VI. — Se puderes fabricar uma coisa, que tens que usar em grandes quantidades, a um preço inferior ao por que a compras, fabrica-a.
VII. — Sempre que for possível, substitui o homem pela máquina.
VIII. — O negócio não pertence ao patrão ou aos empregados, mas ao público.
IX. — O salário justo é o salário mais alto que o patrão pode pagar regularmente.
Estas regras — dissemo-lo e mantemo-lo — representam apenas metade da experiência industrial e comercial de Henry Ford. Da outra parte, que não deve ter contribuído pouco para o tomar o super-Rockefeller que é, não extrairá ele porventura nunca os mandamentos correspondentes. Contentemo-nos porém com estes, que, em sua espécie, são admiráveis. Contêm ensinamentos que a maioria dos nossos industriais poderia, sem quebra de amor-próprio, gravar na memória e na atenção.
Não comentaremos estes preceitos, que aliás, não requerem comentário. Só ao último deles — ou antes, a um seu derivado na política industrial recente de Ford — nos referiremos para fecho deste artigo.
Henry Ford acaba de criar em suas fabricas a semana de cinco dias. E acaba de propor à consideração do mundo, como exemplo a seguir, esta redução filantrópica do trabalho dos seus operários. Sucede, porém, que já se sabe que os fabricantes de outros carros baratos americanos estão entrando pelas vendas dos automóveis Ford; que, ao passo que durante anos Ford produzia mais de metade dos automóveis fabricados nos Estados Unidos, produz agora apenas cerca de trinta e cinco por cento do total; que as fábricas Ford se vêem portanto confrontadas com o problema da sobreprodução, forçadas a produzir apenas sessenta e cinco por cento da sua capacidade, e obrigadas pois a trabalhar só quarenta horas por semana...

De sorte que, ao proclamar ao mundo como novo lema económico e moral a semana dos cinco dias, Henry Ford, sem ter que inventar para si um novo preceito prático, se limitou a seguir aquele, que é admirável, do mestre Maquiavel: O que fazemos por necessidade, devemos fazer parecer que foi por vontade nossa que o fizemos.
25-6-1926
Páginas de Pensamento Político. Vol II. Fernando Pessoa. (Introdução, organização e notas de António Quadros.) Mem Martins: Europa-América, 1986.  - 121.
1ª Publ. In Revista de Comércio e Contabilidade, nº 4. Lisboa: 25-6-1926.


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