Por Mário Filho (Fágbóògùn)
Ando com o meu pavio cada vez mais curto. Quanto mais besteiras, idiotices, sandices, loucuras, absurdos, invencionices, charlatanismos, etc e quanto mais eu leio e ouço, mais esse pavio se encurta.
Daí eu me pergunto: o que está acontecendo para existir tantas besteiras, idiotices, sandices, loucuras, absurdos, invencionices, charlatanismos, etc? Confesso que não tenho uma resposta para dar, mas acredito que isso esteja acontecendo pela banalização do sagrado e pelo abandono da Tradição. Diariamente a Tradição é aviltada e esquecida, jogada no lixo como algo de “velhos” e “ultrapassados”. Sempre falo e escrevo as seguintes frases: “Sem a Tradição não há Iniciação”, “Fora da Tradição não há Iniciação” e “Sem a Tradição não há Salvação”, mas, porém, todavia, no entanto, contudo, entretanto, apesar disso, ainda assim, é meu dever, como Sacerdote, tentar esclarecer e evitar que isso se perpetue.
Além disso, há que pensarmos que enquanto há os pulhas que enganam, há os bobocas que são enganados. Como se diz por aí: “todos os dias nasce um trouxa e um esperto e eles vão se encontrar”. Ora, trouxa, neste mundo, todo mundo já foi, pelo menos uma vez; o duro é permanecer trouxa pelo resto da vida!
Contudo, onde quero chegar? O que quero dizer com essa introdução? É simples: quero evitar que as pessoas continuem sendo trouxas. Não se quer ou se deseja um monte de espertos, mas pessoas esclarecidas, de verdade!
Sabe-se que com a modernidade, o pensamento cartesiano de René Descartes (considerado o “pai” da filosofia moderna), o positivismo de Augusto Comte e o niilismo de Nietzsche, influenciaram e influenciam o modo como as ciências e a vida são vistas, influenciaram e influenciam, do mesmo modo e na mesma proporção, a visão das religiões e das religiosidades.
Vamos, então, fazer algumas análises sobre as três correntes de pensamento filosófico que citei:
- Cartesianismo: para Descartes (um teísta) um objeto só será analisado adequadamente pelo uso da razão, devendo-se decompor este objeto em partes isoladas e distintas, fragmentando-o e dividindo-o a fim de o compreender, estudar e criticar e, ao final, classificar as partes do objeto, “encaixotando-as” em categorias, colocando-as em ordem de importância hierárquica. Esta forma de pensamento nós vemos principalmente na Umbanda, que classifica, divide e estabelece as hierarquias do mundo espiritual, influência clara do espiritismo kardecista, sobejamente influenciado pelo pensamento cartesiano. Vemos, ainda, as classificações dos Exus, Caboclos, Orixás etc, na qual tudo deverá estar organizado hierarquicamente e nada pode estar fora disso. Tudo deverá ter seu lugar, arrumadinho, como se fosse numa bela estante de livros.
- Positivismo: para Comte o objeto em análise só poderia ser observado verdadeiramente pelo uso da experimentação, e de sua classificação a fim de obter os verdadeiros dados, tendo a ciência ou experimento científico como único recurso para investigação do objeto. O pensamento positivista é marcado pela ideia de que a humanidade avança de uma época bárbara e mística para outra civilizada e esclarecida, em melhoramentos contínuos. Esta teoria influenciou enormemente o espiritismo kardecista e a Teosofia de H. P. Blavatsky.
- Niilismo: para Nietzsche, expoente desta corrente filosófica, os valores e a moral são inúteis, afirmando que nada é real e que tudo o que existe é porque os seres humanos dizem que é. Nietzsche é inimigo de qualquer forma de religião, em especial do Cristianismo e do Budismo, chamando-os de religiões da decadência. Para Araldi (2008, p. 5) “o niilismo tem suas raízes na Antiguidade (em Sócrates, Platão e no cristianismo), devido a uma doença da vontade, fisiologicamente condicionada, a uma tendência negadora da vida que inventa o supra-sensível como um refúgio para sua incapacidade de viver”. Nietzsche desenvolve um pensamento no qual afirma que a democracia e a igualdade entre os seres humanos é uma falácia, sendo que o homem precisa evoluir para algo além do próprio homem. A teoria niilista influencia enormemente os círculos ocultistas do Séc. XIX e XX, especialmente Aleister Crowley, cuja obra é permeada de conceitos oriundos daquela teoria, além do pensamento satanista contemporâneo, este também extremamente influenciado pelo niilismo.
Assim, o evolucionismo mascarado nestas três correntes de pensamento filosófico vai apoiar a idéia de que “nada é verdadeiro, tudo é relativo”. Desta forma não haveria nenhum valor absoluto ou verdade, moral, beleza, religião, dogma; nada seria estável, apenas a evolução, esta sendo a única ideia absoluta. Ora isto é uma falácia: se nada é absoluto, a evolução também não o é! Assim, o evolucionismo não pode prosperar!
Mas, o que tudo isso tem a ver com o que estou discutindo? Bem, não podemos negar, em nenhuma hipótese, a influência que o espiritismo kardecista exerceu e exerce nas manifestações religiosas afro-brasileiras. O espiritismo kardecista é, por excelência, evolucionista, sendo que a premissa básica e fundamental do espiritismo está ancorada na crença “da imortalidade da alma e na evolução espiritual” (AURELIANO, 2011, p. 31) e, de acordo com Alan Kardec, “todos os espíritos foram criados por Deus imperfeitos e a todos foi dado o livre-arbítrio para fazerem as escolhas necessárias a sua evolução espiritual” (id., ibid.).
Alan Kardec abusa da boa vontade de seus leitores! Como é possível a ele acusar Deus de fazer imperfeita a Sua criação por Seu bel-prazer? Então, segundo Kardec, podemos pensar que Deus, em um dia em que não tinha o que fazer, pensou assim: “Vou criar seres imperfeitos, para que eles evoluam à perfeição!” Deus, então, criou deliberadamente espíritos imperfeitos? Para quê? Ora, poupem-me!
Esta noção de evolucionismo presente na obra de Kardec, especialmente a evolução espiritual, está relacionada, além das teorias presentes em algumas religiões orientais, tais como o hinduísmo e o budismo (apesar de haver diferenças doutrinais e teológicas gritantes e até antagônicas entre elas e o espiritismo), às “teorias evolucionistas que marcaram as ciências naturais e humanas na segunda metade do século XIX” (id., p. 32), especialmente as doutrinas positivista e cartesiana. “Assim, a negação do sobrenatural e da magia como formas de explicação para as manifestações dos espíritos, a exclusão do sagrado e dos ritos na conformação da prática da doutrina e o uso de experimentos para comprovar a comunicação com o mundo dos mortos seriam meios de fazer do espiritismo uma forma de conhecimento, destinada ao estudo das relações entre o mundo físico visível e o invisível, pautada no raciocínio lógico” (id., p. 33). Nada mais racional e positivista, não é mesmo? Assim, pela influência que as religiões afro-brasileiras sofrem do espiritismo, os seguidores dessas religiões acabam por criar teorias que se enquadram no pensamento positivista e cartesiano no qual o espiritismo kardecista se estriba.
Outra questão que não podemos nos esquecer é a influência que o ocultismo (abrangendo todo o movimento ocultista dos Séc. XVIII ao XX) e a teosofia de H. P. Blavatsky exerceram em religiões afro-brasileiras. Vemos, por exemplo, teorias do Marquês Saint-Yves d’Alveydre e de seu mestre Fabre d’Olivet, do abade Eliphas Levi e do médico Papus, entre outros, sendo adaptadas por alguns segmentos umbandistas, passando a fazer parte da doutrina destes segmentos. Outra influência que certos cultos afro-brasileiros sofreu foi da teurgia e da goetia, esta especialmente desenvolvida pelo poeta Aleister Crowley.
Assim, tudo ficou um balaio de gatos, sem levar em conta aquilo que a Tradição original, que deu início aos cultos afro-brasileiros, pregava, tornando-se esta Tradição algo ultrapassado e que teria que evoluir com o enxerto de inúmeras e estranhas teorias, totalmente diversas ao sentido original que aqueles cultos possuíam. Podemos observar, hoje, a Gnose de Samael Aun Weor e a teoria dos Mestres Ascensionados de H. P. Blavatsky (como a famosa chama violeta atribuída ao Conde de Saint Germain) se transformar em material doutrinário umbandista, por exemplo, havendo um rompimento total com aquilo que era proposto pelos primeiros praticantes dos cultos e religiões afro-brasileiras.
Sempre ouço: “Ah, as coisas evoluem” e isso me arrepia, irrita e apavora! Como assim!? As coisas evoluem!? O que isto quer dizer!? Respondo: nada, pois a Tradição é Tradição e não nos compete mudá-la ou contradizê-la, mas seguí-la. Se não concordamos com algo desta Tradição a qual seguimos, devemos abandoná-la, devemos deixá-la de lado e sermos honestos conosco mesmos e com os outros e, principalmente, com a própria Tradição.
Exemplifico: se você é do Candomblé e não admite o sacrifício, palavra que vem da junção de duas palavras latinas sacrum (divino, sagrado) e officium (dever, serviço, cortesia, ocupação), ou seja, um “dever sagrado” com o qual não concorda, você deve abandonar o Candomblé.
A mesma situação se deve à Kimbanda, se você não concorda com o sacrifício de animais não continue nela. Em ambos os casos você pode, muito bem, ir para a Umbanda que não sacrifica animais (em que pese haver algumas linhas de Umbanda que sacrificam animais, como a Omoloko). Assim, você estará sendo verdadeiro e não abandonando a Tradição.
Outro problema, oriundo do abandono da Tradição é a proliferação de “Sacerdotes” e “Sacerdotisas” auto-declarados, que não passaram pela experiência e formação de um lugar de culto afro-brasileiro, que não possuem a preparação adequada e que resolvem abrir sua Casa, mesmo não tendo nenhuma condição para isso. Como não têm experiência, nem mesmo base para exercerem o sacerdócio, começam a enxertar coisas (principalmente de livros de outros enxertadores, nos quais se baseiam). Como inserem assuntos que agradam ao público ignorante e malemolente, este passa a seguí-lo, tendo-o como pessoa “iluminada” e capaz de conduzi-los por um caminho espiritual. Ledo engano! São cegos conduzidos por outro cego (sem nem uma bengalinha para ajudar!J)!
Muito pior são aqueles que se acreditam “avatares” e “mestres”, que se arvoram de um conhecimento iniciático que não possuem, pois não passaram por nenhum rito iniciatório e se propõem a introduzir pessoas naquilo em que não foram iniciados. Acreditam, piamente, que possuem uma “autorização do astral” para fazerem o que bem entendem. Isto é um acinte, que afronta totalmente a Tradição. Neste sentido, vamos ver o que diz alguns mandamentos de Ifá (um dos sistemas filosófico-religiosos mais completos do mundo) dizem sobre o assunto (extraídos do Odú Ìká-Òfún):
1º. Não digam o que não sabem!
Interpretação: Um sacerdote não deve enganar ao seu semelhante acenando com conhecimentos que não possui. E jamais dizer o que não sabe, ou seja, passar ensinamentos incorretos ou que não tenham sido transmitidos pelos seus mestres e mais velhos ou adquiridos de formas legítimas. É necessário o conhecimento verdadeiro para a prática da verdadeira religião. Quem abusa da confiança do próximo, enganando-o e manipulando-o através da ignorância religiosa, sofrerá graves conseqüências pelos seus atos. A natureza se incumbirá de cobrar os erros cometidos e isto se refletirá em sua descendência consangüínea e espiritual.
2º. Não façam ritos que não saibam fazer!
Interpretação: Não se podem realizar rituais sem que se tenha investidura e conhecimento básico para realizá-los. Não se pode fazer aquilo que não sabe ou que não aprendeu.
(…)
12º. Não desrespeitem os mais velhos, a sabedoria está com eles.
Interpretação: Deve-se respeitar e tratar muito bem aos mais velhos, principalmente os mais antigos nos cultos e religiões afro-brasileiras. O respeito aos mais velhos é um dos principais fundamentos de uma religião onde, reconhecidamente, antiguidade é posto. Faltar-lhes com o devido respeito e atenção é como lhes retirar o bastão em que se apóiam. Aquele que sabe respeitar, acatar e amar aos seus mais velhos, sem dúvida receberá o mesmo tratamento quando também caminhar apoiado no seu próprio bastão.
Os mais velhos, pelas experiências vividas, representam verdadeiros mananciais de sabedoria onde cada um deve procurar beber um pouco, saciando a sede de saber. São livros sagrados, cujas páginas devem ser lidas com paciência e carinho. Religiões que, durante séculos incontáveis, tiveram seus fundamentos transmitidos oralmente, valorizam sobremaneira, aqueles que são depositários destes conhecimentos. Um velho, por mais obtuso que possa parecer à primeira vista, sempre terá algo, obtido nos longos anos vividos, a ensinar. Devemos lembrar sempre que, se antigüidade é posto, saber é poder!
Como se pode ver, o afastamento da Tradição e do tradicional enfraquece a tudo e a todos. Se, por algum motivo, você não concorda com algo que se pratica em sua Casa espiritual ou que se faça em seus ritos e cerimônias, saia, encontre outro lugar tradicional, diga-se, para continuar seu trabalho.
O que não se pode fazer é sair e inventar o seu próprio sistema e considerá-lo melhor e mais “evoluido” que o anterior e começar uma vida sacerdotal sem nenhum preparo para tanto.
Diplomas de Sacerdote não habilitam ninguém a exercer o Sacerdócio. Somente anos de experiência e dedicação a/em uma Casa de tradição, aprendendo no dia a dia, habilitará alguém a ser, de verdade, um Sacerdote. Não seja mais um desses tantos pseudos Sacerdotes que existem por aí!
Referências bibliográficas:
ARALDI, C. L.. Para uma caracterização do niilismo na obra tardia de Nietzsche. São Paulo: FFLCH/USP, Grupos de Estudos Nietzsche, Cadernos Nietzsche nº 5, p. 75-94, 1998.
AURELIANO, Waleska de Araújo. Espiritualidade, saúde e as artes de cura no contemporâneo. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, 2011.
fonte:http://cefeco.wordpress.com/tag/orixa/
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