CASA PODEROSA DOS FILHOS DE YEMANJÁ

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sexta-feira, 14 de março de 2014

Antropologia do Candomblé





O que é o ser humano?

Elementos de uma antropologia religiosa a partir do Candomblé



Prof. Dr. Volney J. Berkenbrock[1]



Resumo

Na tradição do pensamento ocidental, as diversas ciências que lidam com o ser humano – da filosofia à psicologia, da teologia à medicina – são herdeiras de um conceito dualista: matéria-espírito; corpo-alma; físico-psíquico. O modo de pensar yorubano, que chegou ao Brasil pelos escravos, e sobreviveu , sobretudo na religião do Candomblé, tem um conceito diverso deste dualista O ser humano é multidimensional e se constitui a partir da relação harmônica entre as diversas dimensões. Quais são estas dimensões e como elas concorrem para a composição de um conceito de ser humano, serão o objeto das considerações desta contribuição.

Palavras-chave: Ser humano, Candomblé, Antropologia Religiosa.



1. Introdução

O que é o ser humano? Sem dúvida uma pergunta tão ampla que não nos atrevemos sequer pensar em responder satisfatoriamente. Mas todas as ciências que lidam com o ser humano têm subjacente algum conceito de ser humano. Neste, no dizer de Marcio Goldman, “largo campo cultural chamado de modo bastante simplificador de ‘ocidental’” (p. 24) subjaz uma compreensão dualista de ser humano: de alguma forma o ser humano é uma composição de matéria e espírito. Uma série de ciências se dedicam ao conhecimento e estudo da parte material do ser humano, enquanto outras são ciências do espírito. Assim, por exemplo, a filosofia, a teologia, a psicologia são áreas do conhecimento do espírito, da alma; já a medicina, a fisioterapia ou a biologia humana são áreas do conhecimento da materialidade, do corpo. Há inclusive uma certa compreensão subjacente de que nesta composição corpo-alma, matéria-espírito, físico-psíquico, ocorre (ou deve ocorrer) uma predominância do elemento alma/espírito/psíquico. A este âmbito caberia de certa forma o comando do corpo/matéria/físico. Assim, se um corpo pegar uma faca e matar um outro corpo, a responsabilidade cabe ao psíquico. E se se conseguir demonstrar não estar o elemento psíquico no pleno gozo de suas faculdades, este corpo que executou tal ato, é declarado livre de responsabilidade.

Nesta compreensão de ser humano composto de corpo e alma e onde teria a alma a condução da dupla, considera-se como possível que esta possa influenciar de tal forma o corpo, até adoecê-lo. São as chamadas somatizações ou doenças psicossomáticas.

Todas estas formas de conhecimento, de ciência, nos são tão familiares que esquecemos terem elas por detrás uma determinada compreensão de ser humano: um ser composto da dualidade físico-psíquico.  E esta compreensão está tão arraigada na forma de pensar de tantas ciências, que praticamente não se dá mais conta que em sua base está uma interpretação de ser humano. Toma-se a ideia de que o ser humano é um composto físico-psíquico como um dado e não mais como uma interpretação.

Ora, não é intenção nossa aqui contestar os conhecimentos das ciências que tem como pressuposto a ideia de ser humano como uma realidade físico-psíquica. Nossa intenção aqui é tão somente apontar para o fato de que por mais corrente (e importante) que seja esta compreensão, ela não é única e nem sem alternativa.

Nestas linhas vou tentar demonstrar que ao modo de pensar yorubano, veio no Brasil sobrevive – mesmo que fragmentariamente – na religião do Candomblé subjaz uma compreensão diversa de ser humano da daquela que entende ser este uma composição físico-psíquica. Digo que vou tentar e que esta sobrevivência é fragmentária, pois por um lado não há fontes assim tão claras à quais se possa recorrer como parâmetro desta compreensão e por outro lado a religião dos yorubanos que se reestruturou no Brasil na religião do Candomblé, assumiu também compreensões do meio cultural dualista ao qual ela se conformou. A proposta aqui é pensar, pois em elementos de uma antropologia teológica a partir do Candomblé: o que é o ser humano desde este ponto de vista?



2. Fazer o Santo: o processo de iniciação

No meio da religião do Candomblé geralmente não se pergunta a alguém se este é membro do Candomblé. Por vezes se pergunta se a pessoa é iniciada. Mas o mais das vezes se pergunta, no entanto se a pessoa é feita: Você é feito? Você fez a cabeça? Você é feito no santo? Também se pode usar a expressão ser uma pessoa raspada: Você é raspado? Você já raspou? Você é raspado no santo?

Estas expressões nativas revelam não apenas uma determinada lexicalidade, senão apontam também claramente para uma compreensão de pertença ou de entrada na religião dos orixás. A entrada para o Candomblé não se dá por um ato formal, nem por uma decisão, nem por uma experiência de conversão. Há um processo de fazer a pessoa.

Há de se fazer logo uma distinção: tratando-se de uma religião étnica em sua origem, não há no tocante ao conceito de pessoa no Candomblé uma distinção entre pessoa e fiel (membro da religião). O conceito para pessoa é aplicado para todas as pessoas e não apenas para os fieis, no sentido de membros de alguma comunidade do Candomblé. Mas como tradicionalmente este conceito universal – que valia para todos os membros da etnia – supunha que todos passariam pelo mesmo processo, há hoje uma diferenciação: se por um lado o conceito de pessoa se entende como universal, por outro lado o entendimento sobre o fazer a pessoa está ligado ao processo de iniciação na comunidade religiosa. O ser pessoa é uma construção que vai se dando ritualmente, num processo de iniciação. Não se trata de distinguir entre ser ou não ser pessoa, mas sim de uma compreensão dinâmica de construção, num processo como que permanente de vir a ser. Nesta compreensão de processo, ninguém nasce feito (pessoa feita): pessoa é uma construção. Para deixar ainda mais clara esta ideia, é preciso também destacar que não está aqui implícita uma ideia de incompletude, de que antes ou no início do processo se está diante de alguém menos pessoa do que alguém que esteja mais adiantado no processo de iniciação. A meu modo de ver, o processo de iniciação no Candomblé é visto como um caminho para uma cada vez melhor integração ou equilíbrio dos diversos elementos que constituem a pessoa e não um processo de constituição da pessoa. O caminho da iniciação religiosa é um caminho de integração das diversas dimensões que compõem o humano e não de constituição do humano propriamente dito. Recordo aqui a afirmação de M. Eliade, segundo o qual desde os “mais arcaicos níveis de cultura, viver como ser humano é em si um ato religioso, pois a alimentação, a vida sexual e o trabalho têm valor sacramental. Em outras palavras, ser – ou, antes, tornar-se – um homem significa ser ‘religioso’” (ELIADE, 2010, p. 13). Assim também no Candomblé, não se entende que o ser humano tenha uma dimensão religiosa, mas sim que o tornar-se uma pessoa humana é um caminho religioso. O religioso não é um elemento a mais, mais sim o âmbito dentro do qual a vida humana acontece e tem seu sentido.

A proposta de reflexão deste texto não é apontar, descrever ou analisar os ritos que compõem a iniciação no Candomblé. A proposta é pensar o conceito de ser humano presente neste sistema, ou seja, tentar mostrar elementos de uma antropologia religiosa (filosófico-teológica) na religião dos orixás e perceber que há ali uma compreensão de ser humano diversa daquela corrente no pensamento ocidental, que entende o ser humano de forma dualista como um composto matéria-espírito, corpo-alma, físico-psíquico.

Sem entrar na descrição dos ritos, aponto apenas para um momento do processo de iniciação que é o ritual da raspagem da cabeça: ficar sem cabelos, de cabeça totalmente raspada, nua, é um ato altamente simbólico para o nascimento. O iniciando está ali começando o processo de integração dos seus diversos elementos. Há, ritualmente, uma volta ao marco zero, ao ponto inicial a partir do qual os diversos elementos serão integrados. Esta construção ritual da pessoa através de seus diversos elementos só faz sentido dentro da lógica do pensamento deste sistema religioso, de tal forma que o processo de iniciação não se restringe ao cumprimento de uma série de ritos, mas diz respeito também a uma paulatina construção de um mundo de sentido, de um sistema de pensamento, de compreensão e apreensão do mundo. Iniciar-se neste sistema religioso não é apenas um processo de adesão a uma comunidade religiosa, é também um processo de adesão a uma teoria do conhecimento. E isto não é certamente característico somente para a religião dos orixás. De um modo geral, a adesão a uma comunidade religiosa é também a adesão a uma determinada teoria do conhecimento. Toda teoria do conhecimento é portadora de uma lógica operante, ou seja, de uma lógica que faz com que quem dela compartilhe veja sentido nas coisas que ali acontecem.

Iniciar-se no Candomblé é assumir uma determinada lógica de mundo, que irá conferir sentido aos acontecimentos deste mundo assumido, mostrando-se assim, pois, uma lógica operante. Isto fica muito claro, por exemplo, no contexto dos ritos, seja no Candomblé ou em qualquer outra religião: eles têm força de realização (tornar algo realidade) àqueles que desta lógica compartilham. Antes de adentrarmos à questão central da reflexão, a dos diversos elementos que compõem o conceito de ser humano no Candomblé, é necessário apontar para o fato de que esta compreensão de elementos tem por base uma compreensão de formas de existência: a existência genérica e a existência individualizada. Vamos apresentar rapidamente esta questão.



3. Existência genérica e existência individualizada

No sistema religioso yorubano, do qual se origina o Candomblé, conceito de pessoa ou ser humano – não vou fazer aqui nenhuma distinção entre estas duas expressões – é ancorado numa concepção mais ampla da existência: a ideia da existência genérica e da existência individualizada. Trata-se de duas formas de existência que acontecem por um lado de forma paralela e por outro de forma cambiante e dependente. De forma paralela no sentido de que se entende haver permanentemente duas formas de existência: a existência genérica é a que guarda o todo, a totalidade da existência e suas possibilidades; a existência individualizada é a existência nominada, particularizada, delimitada. De forma cambiante e dependente no sentido de que os elementos da existência podem estar ora em sua forma individualizada e por isso particularizada e nominada e ora em sua forma genérica, da totalidade, da possibilidade. Há de certa forma um vai-e-vem entre a forma genérica e a forma individualizada dos elementos que compõem a existência. Mas existência individualizada depende da existência genérica, nela ela tem sua origem; ela é uma existência descendente da genérica. A existência genérica é o sempre-possibilidade. Talvez se pudesse dizer que a relação entre a existência genérica e a existência individualizada é uma relação também pulsante: ora os elementos estão em sua forma genérica, ora em sua forma individualizada. Quem sabe a relação entre o rio e o oceano possa servir e exemplo, mesmo que precário, para a ideia da relação entre a existência individualizada e a genérica. No rio o elemento água está de forma delimitada, particularizada, nominada; já no oceano, para onde corre toda a água, ela não está mais de forma particularizada ou delimitada, mas continua sendo o elemento água, que poderá constituir-se novamente na forma de rio, forma delimitada e particularizada.

Há um mito criacional yorubano que ilustra bem esta relação da existência genérica com a existência individualizada. O mito é bastante longo, por isso vou aqui descrevê-lo de forma resumida[2]. Quando Olodumaré encarrega Oxalá de criar o mundo, este lhe dá o saco da criação. Oxalá, a caminho de sua tarefa, tem sede e bebe vinho de dendê. Com isso adormece e não perde o saco da criação. Este é recolhido por Olofin-Odudua, que o leva de volta Olodumaré e diz:

“A pessoa que fizeste nosso chefe, aquele a quem entregaste o poder de criar, bebe muito vinho de dendê. Ele perdeu o saco da criação. Eu o trouxe de volta!”

Olodumaré responde:
“Ah! Se assim é, tu que encontraste o saco da criação toma-o, vá criar o mundo!”

Então, Olofin-Odudua volta aos Imalés reunidos. Toma as quatrocentas mil correntes e, ainda no além amarra-as a uma estaca. Ele desce até a extremidade da última corrente, de onde vê uma substância estranha, de cor marrom. Esta substância forma um montículo na superfície da água. É terra!
A galinha de cinco garras voa e vai pousar sobre o montículo. Ela cisca a terra e a espalha sobre a superfície das águas. A terra se forma e vai se alargando cada vez mais. Odudua grita:
“Ilè nfè!” (a terra se expande), que veio a ser o nome da cidade santa de Ilê Ifé. Olofin-Odudua coloca o camaleão da oferenda sobre a terra. Ele anda sobre ela com passos cautelosos. Odudua só ousa descer porque está atado à ponta da corrente. A terra resiste e ele caminha. Seu olhar não pode alcançar os limites. Todos os outros Imalés ainda estão no além. Odudua os convida a descer sobre a terra (VERGER, p. 86-87).

O mito não se resume ao pequeno texto posto acima. Ele é muito mais extenso e cheio de detalhes que não comento aqui[3]. O detalhe aqui posto é para evidenciar a compreensão de que a existência individualizada é uma possibilidade que se expande a partir da existência genérica e dela descende. No momento em que aquela porção de terra pode ser nominada – Ilè nfè! – ela tornou-se a cidade, ou seja, a partir dali não é mais existência genérica, é existência individualizada. Mas terra, como existência genérica, continua ali, pois “seu olhar não pode alcançar os limites”.

Juana Elbein dos Santos, em sua obra “Os Nago e a Morte” vai trabalhar longamente esta compreensão de existência genérica – chamada de òrun – e existência individualizada – chamada de àiyé – bem como a relação entre estas formas de existência[4]. Para a autora, esta relação entre as duas formas de existência é claramente paralela: “O universo, cada um de seus elementos, todos os seres do àiyé, possuem seus ‘dobles’ no òrun, todos eles possuindo componentes de existência genérica e de existência individualizada” (SANTOS, p. 203). Mas ao mesmo tempo, segundo a mesma autora, a existência individualizada é descendente da existência genérica: “Cada entidade-descendente herda e evidencia aspectos coletivos de seus genitores ou de suas matérias de origem e se singulariza por uma combinação particular que a distingue e lhe confere uma unidade” (SANTOS, p. 200). Aparece nesta afirmação de Juana Elbein dos Santos mais um elemento importante para a compreensão de existência individualizada, e com isto, para a compreensão de pessoa humana: a ideia da combinação particular. As existências individualizadas descendem da existência genérica: o indivíduo é uma combinação particular, não absoluta, mas sim descendente.

O que forma e distingue a individualidade é a combinação de elementos, e não a existência deles. A individualidade é uma combinação circunstancial de elementos; a existência dos elementos é algo absoluto. Com isto, a existência individual é uma existência circunstancial e atual; a existência genérica é uma existência absoluta e permanente. Se isto vale para o todo da existência, queremos apontar aqui para a compreensão de ser humano que aqui aparece. No dizer de Juana Elbein dos Santos:

O ser humano, como todos os seres, é constituído por elementos coletivos, representações deslocadas das entidades genitoras, míticas ou divinas e ancestrais ou antepassados (de linhagem ou de família) e por uma combinação de elementos que constituem sua especificidade, ou seja, sua unidade individual (SANTOS, p. 203).

O início da individualidade é o início de uma determinada combinação de elementos e não o início absoluto da existência dos elementos que a compõem. Da mesma forma, o fim de uma individualidade não é consequentemente o fim absoluto da existência substantiva, mas sim o fim da existência combinatória. A existência genérica permanece como o sempre-possibilidade, a existência individualizada é sempre uma condição atual e circunstancial.

Como funciona, pois esta relação entre existência genérica e existência individualizada no que tange à compreensão de cada pessoa? É a isto que voltarei agora a reflexão.



4. O conceito de pessoa: elementos, relações e dimensões

No sistema de pensamento yorubano, a existência individualizada é circunstancial e atual, como acabamos de descrever. Para a compreensão de ser humano, isto significa dizer: pessoa não é (absoluto), pessoa acontece (constituição de elementos). A existência humana individualizada, a pessoa, é assim um fenômeno temporal (presente) e circunstancial (combinação). A pessoa humana como indivíduo acontece quando num determinado tempo e lugar onde acontece a relação de determinados elementos ou determinadas dimensões. De quais elementos se compõe uma pessoa, ou melhor, quais elementos precisam estar relacionados para que aconteça uma pessoa?

4.1 Elementos que – na relação – compõem uma pessoa

A existência de uma pessoa (existência individualizada) é consequência de uma combinação de diversos elementos. Descrevo aqui os elementos que combinados formam a existência individualizada ser humano. Esta descrição não segue nenhuma ordem de importância, mesmo porque, a meu modo de ver, não há a ideia de que algum elemento seja mais e outro menos importante na constituição individual. Todos são igualmente constitutivos.

a) O ori

A palavra que dizer cabeça, mas aqui não se trata da cabeça no sentido do membro do corpo, mas sim a cabeça no sentido de pensamento. Para facilitar a compreensão, podemos chamar de consciência, psique, ou – como é mais comum ser traduzido – inteligência. A inteligência é algo genérico (existe inteligência) e a individualização significa que uma porção de inteligência é tomada para constituir a inteligência individual. Cada indivíduo é portador da chamada ori-inú, que é uma porção determinada da inteligência (genérica), o que a faz única (inteligência individual).

Há uma série de mitos que falam da importância da origem do ori-inú para determinar o indivíduo. Numa espécie de representação espacial do ori genérico, fala-se em região de fogo ou calor, de ventos, de água, etc., vindo isto a ser determinante para o ori-inú (para o modo de ser concreto de uma inteligência individual). Há descrições míticas que falam também que o ori-inú é acompanhado de seu suporte, o àpéré, elemento que tem mais uma função ritual (o suporte). Há mais um elemento de diferenciação interessante que aparece em descrições da formação do ori-inú, que é a ideia de que este, ao passar o limiar da existência genérica para a existência individualizada, poderia escolher o seu odu (o seu destino). Ao escolher um destino, as cabeças também se distinguem, formando assim sua genuinidade individualizada. É igualmente digno de nota também o fato de a palavra ori também poder significar nascer. No rito da raspagem da cabeça que ocorre no processo de iniciação, faz-se uma pequena incisão no iniciando, significando esta uma espécie de nominação ou marcação do ori daquela pessoa. Há assim uma relação entre a marcação do ori e o seu nascimento como inteligência individualizada.

b) O ara

Ao ori junta-se ao corpo material que é em princípio uma porção de terra e água, modelado do barro, segundo os mitos. O ara, ou mais precisamente o ara-aiyé (corpo da materialidade) é parte da existência genérica terra e água: uma parte que, ao ser modelada, torna-se individualizada. Na concepção yorubana, a corporeidade material é formada a partir da lama. Uma porção de lama é modelada, fazendo o corpo. No momento que esta parte de terra molhada (de lama) é separada do todo lama, ela se encontra numa circunstância diferente, tendo assim uma forma individualizada, mesmo mantendo-se da mesma substância (lama) genérica.

Há um mito que narra que a entidade divina que fez a modelagem, Iku, ao tomar terra com água (lama), esta porção chorou (pingou água). Ao vê-la chorar por ter sido separada da lama “Olodumaré determinou a Iku que, por ter sido ele a apanhar a porção de lama, deveria recolocá-la em seu lugar a qualquer momento, e é por isso que Iku sempre nos leva de volta para a lama” (SANTOS, p. 107).

Talvez entre todos os elementos que compõem a pessoa, no elemento Ara, o corpo material, fique bastante clara a concepção da relação entre existência genérica e existência individualizada. O corpo, em sua materialidade, é uma composição circunstancial de elementos da terra e que – a qualquer momento – volta a fazer parte da existência genérica terra.

c) O èmi

Para que o corpo e a inteligência ganhem vida, é necessário que a eles se junte o èmi, a respiração, o hálito da vida. Talvez a melhor palavra para traduzir o conceito èmi seja vitalidade ou força vital ou vivacidade. Sem èmi, o corpo seria inerte. Este elemento é o determinante no Candomblé para se dizer que alguém está vivo: ele tem hálito, tem respiração.

O èmi é, segundo a mitologia, soprado sobre o corpo modelado de barro, por Olodumaré, o dispensador da existência. Narra o mito que após ter sido o corpo modelado da lama, “Olodumaré [...] foi ele mesmo quem lhe insuflou seu hálito” (SANTOS, p. 107). O èmi é parte do elèémi, que é o elemento genérico vento, ar, sopro. Diz-se que na hora da morte, o èmi é o último elemento a se separar do corpo. Enquanto houver èmi, há vida. Neste elemento fica igualmente clara a distinção entre existência genérica e a existência individualizada: a existência genérica é o elemento ar, mas quando este está no corpo de alguém, em sua respiração, ele se encontra em forma individualizada (èmi), fazendo com que a este corpo junte-se o elemento da vivacidade, do hálito da vida. Este hálito a vida só o é assim, existência individualizada, enquanto estiver na respiração. Fora deste momento, volta ele a ser parte da existência genérica ar.

Quem controla o vento é o orixá Oyá, também conhecido no Brasil por Yansã. Nos rituais fúnebres é o único orixá que pode se manifestar, estando assim também ritualmente presente a compreensão de que o èmi é o último elemento que separa vida e morte. O elemento èmi, o sopro, é também o que divide a materialidade da imaterialidade. É considerado um elemento intermediário, de intermediação entre òrun e àiyé.

d) O exu

Exu é a capacidade da comunicação, da relação, da linguagem. Um dos elementos mais ricos de todo o sistema de pensamento dos yorubanos, exu é uma figura complexa e com muitas qualidades. No que se refere à compreensão de pessoa, diz-se que quando ori-inú (a inteligência) deixa o òrun (a existência genérica), precisa passar pelo portão para a existência individualizada. Para poder fazer isto, é preciso fazer uma oferenda a exu e – ao mesmo tempo – recebe como acompanhante o seu exu-individual, o exu-bará.

Na concepção de pessoa no Candomblé, a individualidade está ligada com a capacidade de comunicar-se, de mostrar-se, de se fazer perceber e entender. O exu-bará é a linguagem da individualidade, que faz com que cada pessoa consiga se expressar como tal e se faz entender (ou desentender) como pessoa. O elemento exu-bará é o elemento por excelência da expressão e da percepção da individualidade: pelo fato de cada ser humano ter em sua composição um exu-bará, ele consegue tanto se mostrar ao outros como indivíduo, como perceber a individualidade alheia. Ele é o elemento da distinção, que faz o eu e o outro se possibilitarem.

Elemento onipresente em todo o sistema de pensamento do Candomblé (e por isso, por sua complexidade, muitas vezes mal entendido), exu é o dinamizador. Na individualidade, ele é a capacidade de expressão, de interação, de compreensão, de percepção/apropriação do conhecimento, de transmissão do conhecimento, de relação, de procriação (por isso sua ligação com a sexualidade). No mito, é exu quem ensina a Oxum o jogo de búzios, o jogo para se entender as coisas, ou seja, o caminho do conhecimento. É pois altamente significativo que à capacidade da individualidade também esteja ligada a capacidade de discernimento, de conhecimento. Trata-se aqui de um elemento distinto da inteligência (o ori), pois em exu não se dá a inteligência, mas sim a distinção, o conhecimento.

 A exu se faz, antes de iniciar o xirê, a roda da dança aos orixás no Candomblé, uma oferenda: o padê de exu. Feita esta oferenda, foi posta em movimento (dinamizador) a possibilidade de comunicação (transe) entre os orixás e seus filhos.

e) O egum

Toda pessoa é também composta de duas ancestralidades (humana e divina). Por um lado a ancestralidade humana, através da qual toda pessoa é tanto um elo dos antepassados com o presente (no sentido da individualidade dos antepassados), como um elo da humanidade com a existência individual concreta (no sentido da existência cultural, dos costumes, das tradições, da linguagem, da culinária, das vestimentas, da música, etc.).

Esta ligação com a ancestralidade humana em cada pessoa é chamada de egum.  Cada pessoa tem egum. Os eguns são os mortos. Mas na compreensão cultural yorubana não está aqui tanto a ideia de defunto, mas a ideia da ancestralidade. Após a morte de um membro do Candomblé são feitos muitos rituais. O sepultamento é em si um ritual relativamente pequeno e marginal neste processo. O grande processo ritual após a morte de um membro do Candomblé, o chamado axexê, é destinado a liberar a existência individualizada e tudo o que a ela estava ligado para que todos os seus elementos passem novamente a ser parte da existência genérica. Se uma existência individualizada é uma existência descendente da existência genérica, o fim da existência individualizada significa uma ascendência dos elementos à existência genérica.

A ideia de que egum é um dos elementos a compor a pessoa humana, traz consigo uma compreensão do liame histórico com a coletividade humana da qual esta pessoa descende. Cada pessoa é uma pequena porção de continuidade de uma longa história de um acúmulo coletivo, presente agora nesta pessoa. À presença do elemento egum em cada pessoa, se liga tanto a ideia de semelhanças físicas, de traços de corporeidade (de aparência, de porte físico, de cor da pele, dos cabelos, de tamanho e forma física, de feições corporais) de um coletivo ancestral, presente agora na composição desta pessoa individualizada, como também a presença individualizada da tradição cultural: dos costumes culinários, da linguagem, dos tipos de vestimentas, dos costumes de música e dança, etc. O elemento egum é assim extremamente rico na composição da existência individualizada.

f) O orixá

A outra ancestralidade é a ancestralidade transcendente, sagrada, espiritual, divina se assim a quisermos chamar. É parte também de cada pessoa o elemento orixá. O conceito de orixá é bastante complexo e não cabe aqui entrar nesta discussão. Só queria lembrar aqui que o conceito orixá está ligado a força, a energia da natureza. Os orixás são as forças (as energias) que conduzem toda a existência. E a conduzem com inteligência, pois dentro da palavra orixá está a palavra ori, que quer dizer inteligência, como já vimos anteriormente.

Do ponto de vista religioso estas forças são personificadas, recebem nomes, mitos, ritos, etc. Imaginando as forças genéricas que conduzem a existência, cada pessoa é composta também de uma porção desta força, o que a faz ser uma força particularizada, específica, que é o orixá específico da pessoa. Assim se diz, na linguagem do Candomblé, que cada pessoa é filho/filha de um determinado orixá.

Na tradição brasileira aparece a ideia de que compõe a pessoa tanto um orixá principal, o chamado orixá de cabeça, o olori, e um orixá secundário, o chamado juntó. Esta compreensão parece ter sido aqui introduzida pelo fato de que muitos orixás cultuados na África não tiveram continuidade de culto no Brasil. Assim, para aumentar os tipos ou as variedades de forças da ancestralidade sagrada, parece que se criou a ideia de um orixá secundário ou da combinação de um orixá principal (de cabeça) com um orixá secundário (o junto). Por isso é comum no Candomblé se poder dizer que tal pessoa é “filho de... com...”, ou seja, do orixá tal (olori), com outro orixá (juntó).

Ao elemento orixá na pessoa está ligado o seu modo de pensar, o seu modo sagrado de ser e sentir a ligação com o divino, sagrado, transcendente. Há uma ideia de portar-se e comportar-se nesta ligação com o orixá. Na expressão do Candomblé, diz-se que a pessoa é filho ou filha de seu orixá e a isto correspondem determinados comportamentos. Assim, por exemplo, filhos de Oxalá são pessoas mais pacíficas e capazes de transmitir tranquilidade, filhos de Iemanjá são cuidadores por excelência, filhos de Oxum são dotados de grande capacidade estética e forte sensibilidade, etc.

4.2 Dimensões da composição relacional pessoa

Estes elementos dos quais se compõe uma pessoa são ritualmente reconhecidos e inclusive instalados. Assim, por exemplo, a incisão feita na cabeça raspada no ritual de iniciação, representa a abertura, a relação do ori com o orixá. O ritual de dar o nome que ocorre na saída de Iaô, é a manifestação do orixá individual, acompanhado de seu exu-bará (por isso ele se comunica). O corpo (ará) é marcado com sinais (incisões), reconhecendo-o ritualmente pertencente a este grupo, especificando assim claramente sua individualidade. Estes elementos todos, quando individualizados e em relação, compõem o ser humano. A cada um destes elementos e suas relações estão relacionados diversos ritos, de tal forma que eles presentificam ritualmente a realidade ser humano.

Ao mesmo tempo em que se pode perceber a pessoa como uma construção que acontece ritualmente, poder-se-ia refletir aqui também sobre a pessoa como um conjunto de dimensões. O ser humano é como que uma conjugação de dimensões da existência. Por isto, alguém feito, é uma pessoa por se conjugar ali a relação de dimensões constitutivas de pessoa humana. Cada elemento que compõe uma pessoa pode ser visto como ligado a uma determinada dimensão de pessoa. Assim, os elementos elencados e rapidamente explicados acima, podem ser também elencados como dimensões da individualidade humana. Vejamos rapidamente estas dimensões, na mesma ordem na qual foram apresentados os elementos e, novamente, sem que isto seja considerada uma ordem de importância.

a) Dimensão racional

O ser humano é um ser racional, isto é, dotado de inteligência, de capacidade de pensamento. O Ori é esta dimensão racional do ser humano. Se dizemos que a racionalidade é característica do humano, o Ori não representa a dimensão da racionalidade atribuída à espécie humana. Esta seria um elemento genérico. O Ori é a dimensão racional individual, a capacidade de racionalidade presente em cada qual. Por ser individualizada, o Ori difere de pessoa para pessoa. Cada pessoa tem certamente habilidades racionais diferenciadas e estas o fazem tomar decisões, conduzir o destino pessoal, fazer um caminho individualizado. À dimensão Ori se atribui no Candomblé não apenas diferenças no sentido de habilidades, mas também de Odu, de decisão sobre o destino.

b) Dimensão corporal

Todo o ser humano é também dotado de um corpo. O Ará é a dimensão corporal do ser humano. Cada corpo é uma composição individualizada, única. Não há corpos que se repetem. Cada corpo é indiscutivelmente único e isto em muitos sentidos. O Ará é, pois não apenas o corpo, mas de forma individualizada é a dimensão genuína de cada corpo. No sistema religioso do Candomblé, o corpo tem uma grande importância: é nele que se fazem os sinais da iniciação, é ele que faz a dança na roda do xirê e, o que é mais importante, o corpo é o receptáculo do orixá no momento do transe. E como cada orixá só entra em transe com o seu filho ou sua filha, fica aqui clara a importância da dimensão corporal em sua individualidade para o sistema religioso do Candomblé. Não há outro intermediador da experiência de transe senão o corpo, e este individualizado, conforme filho/filha e seu orixá pessoal. Não pode haver inclusive, na concepção do Candomblé, nenhuma representação deste corpo na relação do transe: este momento só pode ocorrer na condição da presentificação do corpo. O corpo do filho ou filha torna presente naquele momento a realidade orixá. Assim, a dimensão corporal tem também um papel religioso bastante central nos rituais.

c) Dimensão vital

O Emi é a dimensão vital do humano. Cada ser humano tem uma dimensão de vitalidade, de estar vivo como individualidade. Esta talvez seja a dimensão mais dramática para a realidade ser humano. A dimensão do Emi, do hálito, é muito tênue e pulsante. A manutenção desta dimensão é um ato contínuo de relação entre a dimensão individualiziada da existência humana pessoal (o inspirar do ar) e a existência genérica (o expirar do ar). No ato de inspirar – e assim manter o hálito da vida – e expirar, fazendo o ar voltar à dimensão genérica, se joga constantemente a relação da existência: circunstancial (e momentânea inclusive) no momento em que o ar está limitado aos pulmões de cada pessoa e sempre-possibilidade (absoluta) quando este é parte da atmosfera, a partir da qual cada pessoa poderá individualizá-lo. A ideia da oralidade no sistema religioso do Candomblé pode ser vista no fato de nele não haver nenhum escrito que tenha peso de sagrado, mas a questão central da oralidade no sistema religioso não está ligado a esta característica. A meu modo de ver, a centralidade da oralidade está ligada ao hálito da vida, na força da transmissão e relação religiosa pela voz (seja falada ou, principalmente, cantada). São para altamente simbólicos os momentos de rituais de iniciação, por exemplo, onde quem conduz a iniciação fala ao iniciando, ao seu ouvido. E fala muitas vezes após ter mascado o obi, com o hálito, pois, carregando a força vital deste elemento. Os próprios orixás servem-se da dimensão èmi quando querem comunicar algo ou, principalmente, determinar as diversas funções dentro de uma comunidade: é no momento da saída do transe, em situação de erê, que geralmente são feitas estas comunicações de funções. Diz-se no Candomblé: erê fala! É o hálito, o ar, o som por ele produzido que carrega a determinação do orixá, em estado de erê, dado que orixá não fala. Márcio Goldman lista o erê como um elemento constitutivo da composição humano, mas como ele é entendido no Candomblé como uma qualidade do orixá que se comunica, que fala, e uma qualidade do orixá individual, entendo ser mais adequado interpretar o erê como ligado a um elemento do ser humano, seja ao èmi, por conta do hálito, do falar, seja a exu, por conta da comunicação, seja ao orixá, por ser o erê entendido como uma qualidade do orixá, mas não uma qualidade genérica, pois “só há Erê ligado a orixás individuais: a cada fiel, seu Erê” (GOLDMAN, 37).

d) Dimensão comunicativo-relacional

Esta dimensão é expressa na concepção de ser humano com a ideia de que cada pessoa tem um Exu-bará, que é o Exu pessoal. Não há aqui nem grande necessidade de explicações: parece que é muito clara a existência de uma dimensão comunicativo-relacional na composição de cada ser humano. Sem esta, o outro não o perceberia como tal. Mostra-se presente, pois a ideia da construção da individualidade como diferenciação do outro. Exu é a dimensão diferenciação individualidade-alteridade: um eu só é possível quando em confronto ou diferenciação com um tu. E isto é Exu-bará, a dimensão comunicativo-relacional de cada pessoa frente à outra.

e) Dimensão histórica, da tradição

Ao falar que cada pessoa tem um Egum, se está mostrando que em cada pessoa há uma dimensão histórica: cada pessoa carrega em si o elo da história dos seus antepassados, das tradições, da cultura, da linguagem, dos ritos, etc. Pelo Egum fica claro que cada qual não é um indivíduo separado na história. A existência de um ser humano individualizado é concomitantemente a existência de um elo com a história passada e futura. Esta é a dimensão Egum. Cada qual só é possível como elemento dentro de uma tradição, que ele individualmente presentifica. Cada pessoa é a presentificação individualizada da história que o precede: e isto sob muitos pontos de vista, tanto por exemplo da genética familiar, na cada indivíduo carrega centenas de milhares informações de seus antepassados, como por exemplo da tradição, onde cada indivíduo carrega individualmente informações muitas da tradição: o idioma que cada qual aprende e carrega consigo, as múltiplas formas de manifestação que se pode chamar coletivamente aspectos culturais, mas também ideias de valores, de objetivos e assim por diante. Egum, que concentra do indivíduo a dimensão histórica e da tradição, é um elemento que pode ser interpretado de forma multifacetária no sistema religioso e comunitário dos yorubanos.

f) Dimensão transcendente

Diz Mircea Eliade que o ser humano, como ser religioso, se percebe um ser aberto: “A existência do homo religiosus, sobretudo do primitivo, é ‘aberta’ para o mundo; vivendo, o homem religioso nunca está sozinho, pois vive nele uma parte do mundo” (ELIADE, 1999, p. 136). Cada ato não se encerra a si mesmo. Ser humano (perceber-se como humano) é um ato transcendente: de percepção de uma dimensão além indivíduo. Esta dimensão, simplificadamente, é expressa no Candomblé ao dizer que cada pessoa tem um orixá. Ele é a dimensão que faz perceber a transcendência na individualidade.  Se a existência individualizada é circunstancial, combinatória e momentânea, ela carrega consigo a capacidade de apontar para além de si, para algo que ultrapassa esta limitação. E esta dimensão transcendente é justamente a dimensão orixá. No sistema religioso dos yorubanos se entende que existência individualizada carrega em si, como que uma mão estendida para a transcendência. Se a existência individualizada é descendente, há nela a dimensão ascendente. Na linguagem coloquial do Candomblé, ao se falar, por exemplo de cantigas para o encerramento fim do momento do transe, muitas vezes se diz: “cantar para subir”. Se o orixá individual desceu naquele instante, o subir é o caminho da volta, da ascendência como possibilidade presente também na existência individualizada. Por isso, como dito acima, se por um lado a existência genérica e a existência individualizada são entendidas como paralelas, por outro lado há também uma compreensão de vai-e-vem. É a dimensão orixá.

Concluindo esta pequena apresentação dos elementos que compõem uma pessoa humana na compreensão do Candomblé, pode-se repetir que pessoa acontece, pois quando da individualização e do encontro destes elementos: ori-ara-èmi-exu-egum-orixá. Ser humano acontece, pois no encontro, na relação destes elementos individualizados, no nó destas dimensões. E quando a relação destes elementos ocorre de forma harmônica e equilibrada, aí há axé.



5. Morte e vida

Até agora nestas linhas refletimos sobre os elementos que compõem a pessoa humana no modo de pensar yorubano. Gostaria de encerrar esta reflexão com algumas observações sobre o fato de que se há uma determinada compreensão de composição do ser humano, há nesta mesma compreensão também uma ideia de encerramento ou fim do ser humano. Ou seja, a compreensão de ser humano é também ensejo para algumas linhas sobre a relação entre vida e morte do ser humano.

Dizíamos anteriormente que ser humano é uma construção, a existência individualizada é circunstancial, mas não absoluta. Se os diversos elementos que compõem a existência individualizada descendem de sua forma genérica para uma existência descendente na individualidade, estes podem ascender novamente à existência genérica com o fim da composição individualizada. Nesta maneira de compreensão, a morte é vista como um processo que atinge a composição pessoa, enquanto forma circunstancial de existência combinatória, mas não de seus elementos. Estes tem a sua continuidade na existência genérica, voltam pois à condição do sempre-possibilidade.

Os rituais de iniciação marcam a construção da pessoa como individualidade. Pelos ritos de iniciação alguém é feito no santo. A feitura é um processo ritual. Da mesma forma que acontece ritualmente o fazimento da pessoa, acontece no Candomblé também o seu desfazimento. Assim, aos rituais de iniciação se contrapõem os rituais do axexê (ritos feitos após a morte de um membro do Candomblé). Enquanto na iniciação de vai construindo ritualmente a pessoa, com os ritos que envolvem os seus diversos elementos, nos ritos do axexê se vai encaminhando os elementos que compõem a existência individualizada novamente para a existência genérica. À necessidade do fazimento ritual, corresponde a necessidade do desfazimento – também ritual – da composição individualizada.

Sem alongar-me aqui nos rituais do axexê, dou apenas alguns exemplos: quando da morte de um filho da casa, os elementos constitutivos de sua iniciação são ritualmente retirados de seus espaços e transferidos para o espaço destinado aos eguns. Estes elementos são assim ritualmente ancestralizados. Se um filho ou filha da casa vem a falecer e seu babá ou yá ainda vive é necessário que se façam os rituais para retirar a mão de sua cabeça. Pela mão do pai ou mãe-de-santo foi fixada a relação entre o ori (a cabeça do iniciado) e seu orixá, justamente no ritual da raspagem da cabeça. É preciso retirar a mão que fixou esta relação para que tanto o ori quanto o orixá individualizados sejam liberados para a existência genérica. Os rituais de axexê tem uma importância tal numa comunidade de Candomblé, que geralmente enquanto não se encerrarem estes rituais não se faz nenhum outro ritual na casa. Fazer outro ritual na casa com a presença de elementos ligados à existência individualizada de alguém que faleceu, seria de certa maneira prender ainda estes elementos na existência individualizada, não os liberando para a ascendência à existência genérica. Terminados os rituais do axexê, a ordem está novamente estabelecida: a existência individualizada encerrou a sua existência combinatória e os elementos que compunham esta combinação ascenderam à condição de existência genérica, ao sempre-possibilidade. Desta forma se pode dizer que a existência é eterna, mas não o indivíduo.



6. Conclusão

Estas reflexões acima postas tiveram como ensejo tentar demonstrar que o conceito de ser humano advindo da tradição yorubana é diverso do conceito presente na tradição ocidental. Na tradição ocidental o ser humano é entendido de forma dualista, composto pelos elementos corpo e alma ou matéria e espírito. Já para a compreensão presente no Candomblé, o ser humano é pensado como uma síntese ou uma composição relacional de pelo menos seis elementos, e ser humano acontece quando estes elementos estão em relação. E quando há uma relação harmônica, equilibrada destes elementos, entende-se um ser humano ter energia, tem força, tem axé.

Temos que admitir que esta compreensão de ser humano como composição relacional de elementos possibilita uma compreensão antropológica interessante. Abre-se aqui uma gama de possibilidades para se pensar de outra forma uma antropologia filosófica, uma antropologia teológica ou, para sairmos de expressões já muito ocupadas na tradição ocidental, poderíamos falar aqui de uma outra antropologia religiosa.

Interessante e diverso seria ainda pensar na possibilidade de estar esta antropologia religiosa yorubana na base de outras ciências como a psicologia, a filosofia, a medicina. Mas isto seria base para outra reflexão. Fiquemos, por enquanto, somente nesta tentativa de apontar para o fato de que há no Candomblé uma tradição de pensamento que tem por base uma ideia de ser humano como uma composição complexa elementos ou entende o ser humano como uma realidade multidimensional.



Referências bibliográficas

BERKENBROCK, Volney José. Elementos para uma “Teologia da Criação” nas religiões afro-brasileiras. Em: MÜLLER, Ivo (org.). Perspectivas para uma nova Teologia da Criação. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 245-262.

ELIADE, Mircea. História das Crenças e das Ideias Religiosas, Vol. I. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2010.

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

GOLDMAN, Márcio. A construção ritual da pessoa: a possessão no Candomblé. Religião e Sociedade, 12/1, 1985, p. 22-53.

SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nago e a Morte. Petrópolis: Vozes, 2002.

VERGER, Pierre Fatumbi. Lendas Africanas dos Orixás. Salvador: Corrupio 1997.




[1] Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, MG.
[2] Este mito criacional foi recolhido e publicado já por diversos pesquisadores, com versões levemente diferentes. Para ler uma versão completa deste mito, confira P. F. VERGER, Lendas Africanas dos Orixás, Corrupio, Salvador 1997, p. 83-87.
[3] Para uma interpretação mais detalhada deste mito, bem como de uma compreensão de criação no Candomblé, veja: BERKENBROCK, V. J. Elementos para uma “Teologia da Criação” nas religiões afro-brasileiras. Em MÜLLER, I., Perspectivas para uma nova Teologia da Criação. Petrópolis: Vozes 2003, p. 245-262.
[4] Esta temática da existência individualizada e da existência genérica é tratada especialmente nos capítulos VII (p. 130-181), IX (p. 200-219) e X (p. 220-235). Cf. SANTOS, J. E. Os Nago e a Morte. Petrópolis: Vozes 2002.

FONTE: http://volney-berkenbrock.com/site/index.php?option=com_content&view=article&id=163:antropologia-do-candomble&catid=54:religioes-afro-brasileiras-umbanda-e-candomble&Itemid=84


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