CASA PODEROSA DOS FILHOS DE YEMANJÁ

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sexta-feira, 11 de abril de 2014

DOSSIÊ – SOCIOLOGIA DA DESIGUALDADE






Roger Bastide e a moderna sociologia da arte

 Fernando Antonio Pinheiro Filho


Por volta da metade dos anos de 1940, Roger Bastide parece sentir a necessidade de contribuir para a construção dos fundamentos de uma Sociologia da arte que se expressa em seu livro de 1945, Arte e sociedade, e no presente artigo. Não por coincidência, no período pós-guerra ele intermeia suas atividades de docência e pesquisa no Brasil, como professor de sociologia na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP (onde permanece entre 1938 e 1954), com estadas anuais na França, que o põem em contato com a produção local recente. O interesse pelo tema da arte remete, assim, a uma dupla inserção em mundos intelectuais diversos, como se a discussão dos problemas da Sociologia da arte tivessem o condão de, pontualmente que seja, sincronizar os tempos do que se faz na França (e na Europa) e no Brasil, a partir de uma intervenção que acena para dois dos mundos que convivem em Bastide e que reforça sua posição em ambos. Assim, o texto elabora um balanço do estado dos estudos sociológicos sobre a arte que serve de lastro para a divulgação de uma perspectiva própria e enuncia a consolidação da disciplina como momento do processo de especialização no interior da sociologia. Se os temas são interdependentes, o primeiro ganha mais sentido no diálogo com a produção européia e o segundo volta-se mais diretamente para as circunstâncias do desenvolvimento da Sociologia em São Paulo.

Quanto ao primeiro ponto, Bastide procura evitar a relação de exterioridade entre arte e sociedade postulada (ainda que não explicitamente) pela maioria de seus antecessores, que consiste em pensar os termos como realidades distintas cujos pontos de contato caberia explicar. Contra essa tendência dominante tanto nos trabalhos inspirados pelo marxismo como na história da arte com preocupações sociologizantes, serve-se de uma concepção relacional da sociedade que contorna o essencialismo e lhe permite não pensar a obra a partir do social nem o contrário, mas tomar diretamente a arte como sociedade, segundo a expressão de Nathalie Heinich1, encetando a pesquisa das inter-relações entre produtores, mediadores, consumidores e instituições que contribuem para fazer existir o que chamamos de arte. De outro lado, a insistência na necessidade de especialização remete ao programa então vigente na USP, que consistia numa clivagem entre as cadeiras de Sociologia I e Sociologia II, obedecendo à divisão entre Sociologia geral e sociologias especiais, conforme a proposta de organização do ensino da disciplina defendida por Paul Arbousse-Bastide2. Promover essa divisão do trabalho intelectual é ainda uma oportunidade para desenvolver uma linha de pesquisa própria que incluía no debate sociológico sobre a arte questões como a crença, o gosto, os valores, a moda – já indicados no texto. Bastide procurava articular as questões teóricas ligadas ao desenvolvimento da Sociologia francesa com pesquisas empíricas que expressam sua ligação com a realidade brasileira. A consolidação da Sociologia da arte não se desenvolve plenamente, por razões que não cabe discutir aqui. Mas, além de seus estudos sobre temas brasileiros como a literatura, a poesia negra, o barroco ou a estética do candomblé, Bastide inspirou, apenas para tomar um exemplo significativo, o importante trabalho de Gilda de Mello e Souza, O espírito das roupas, na origem tese orientada por ele e defendida em 1950. Note-se ainda que o novo campo explorado por ele tem ressonâncias com o domínio da religião, para cuja especialização já contribuíra. A remissão ao conceito de fato social total de Marcel Mauss, mobilizado por Bastide, ajuda a compreender seu interesse não só pelos aspectos religiosos da arte – situada por ele no domínio das crenças, vale sublinhar –, mas também pelos aspectos estéticos da religião.

Os três anos que separam o livro de 1945 deste artigo operam uma depuração nas concepções do autor: se a proposta ora desenvolvida já estava presente antes, o artigo faz um resumo seletivo do livro na direção da transição de uma sociologia estética para uma sociologia da estética, a despeito da permanência da primeira expressão no texto. Concretamente, isso significa ultrapassar a mera consideração dos aspectos "anestéticos" da arte, conforme a expressão de Charles Lalo, cujo trabalho serve de apoio a Bastide; ou seja, não lhe basta pregar a desautonomização da arte conjugando a fatura das obras com algum tipo de condicionante externo, mas pensá-la integralmente como coisa social. Aliada aos aspectos já comentados, a passagem contribui para a surpreendente virtude antecipatória e a atualidade das concepções do autor, refratadas em boa parte do que se realiza hoje na área, inclusive no Brasil.





Fernando Antonio Pinheiro Filho é professor do Departamento de Sociologia da USP. 
1 Ver a esse respeito Nathalie Heinich, Sociologie de l'art, Paris, Éditions La Découverte, 2004. 
2 A esse respeito, consultar o relatório de Arbousse-Bastide, "Condições e organização do ensino da sociologia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras". Sua posição, inspirada pela clivagem temática do Année Sociologique, é a que prevalece contra aquela assumida por Claude Lévi-Strauss, que defende uma vociologia que tomasse como objeto os fenômenos da cultura, igualmente inspirada em Durkheim.Fonte: Anuário da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, n. 1, 1934-1935. Agradeço a Luiz Carlos Jackson pelos esclarecimentos a esse respeito.

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