As quizilas têm por objetivo principal evitar que a (o) filha (o) de santo se exponha a influências maléficas, ou seja, descreve-se como sendo de natureza essencialmente profilática.
"Os outros seres podem carregar consigo más influências e (a filha de santo) não deve deixar ninguém se sentar ou se deitar em sua esteira ou cama. Não terminará o que outra pessoa começou; não pode fechar o que alguém abriu e evita deixar gavetas, caixas ou malas abertas. Não come o resto dos outros, não usa suas roupas, não come nem bebe em recipientes já usados por alguém. Não recolhe lixo com as mãos; não recolhe lixo que outra pessoa varreu. Cuida para que ninguém passe o braço, a mão ou um objeto qualquer em cima de sua cabeça, pois é lá que está seu orixá" (Cossard-Binon 1981, p.134).
Como se vê, a vida da iaô é inteiramente ritmada por preceitos e proibições. Tem de proteger-se, mas deve também cuidar de nada fazer que possa dilapidar a força sagrada, axé, que impregna todos os objetos consagrados e, entre eles, seu próprio corpo. Daí a preocupação com banhos, com a maneira de vestir-se, e, notavelmente, alimentar-se.
Nesse ponto, Cossard-Binon assinala, e, o autor define por "transgressão incentivada", pois não se ensina à iniciada quais as proibições que deve respeitar. Espera-se que a iaô incorra em erro, para, em seguida, repreendê-la. "As pessoas mais antigas do candomblé sentem um certo prazer em interrogar maliciosamente as jovens iaô para saber se comem este ou aquele alimento consagrado a seus orixás. Se elas respondem que não respeitaram as proibições, as mais antigas não deixam de comentar suas respostas com ironia". (ib., p.135). Como a iniciada jamais deve fazer perguntas, fato também assinalado pela mesma autora, o mais provável é que cometa inúmeras transgressões. No caso citado por Cossard-Binon, são "as mais velhas" que se encarregam de verificar a observância das quizilas e censurar as faltas. Além do prazer malicioso que qualquer pessoa - até fora do terreiro - sente em apontar erros alheios, parece que, no caso do candomblé, emerge outra dimensão. As mais velhas são depositárias do saber, seu poder provém da longa convivência com o sagrado, e através delas é todo o valor da tradição ancestral que se afirma. Nessa perspectiva, o não esclarecimento dos neófitos parece até justificar-se. Pois o saber ancestral deve ser aprendido aos poucos, devagar, não constitui simples aquisição de informações, mas é modo de ser. A aprendizagem das regras caminha junto com o amadurecimento do adepto. Do mesmo modo, somente a continua convivência com o terreiro permite ao observador de campo perceber as sutis filigranas que articulam todo jogo, comparações, na vida cotidiana da casa de santo.
Um outro tópico também muito importante levantado por Costa Lima, "o tabu do incesto na família de santo"(1977). Sabe-se, desde as observações de Bastide(1978), que os membros de uma família unida por laços míticos e rituais. Deste modo, a exogamia é a regra, pois qualquer relação sexual entre membros da comunidade seria considerada como incesto.
Para ilustrar apenas essa regra, "os noviços do mesmo 'barco' são 'irmãos e irmãs de esteira', unidos por laços particularmente estreitos. A interdição estende-se também aos membros de outros 'barcos', por serem todos filhos da mesma Mãe. Aos ogãs e ekedi, tampouco é ilícita a união entre si ou com os demais sacerdotes e sacerdotisas. Com efeito, cada ogã é considerado por todos os filhos ou filhas da casa como pai. Não se pode unir à ialorixá pelos seguintes motivos: se o dono de sua cabeça for o mesmo da mãe de santo, o ogã passa a ser considerado como seu pai, se o dono da cabeça for diferente, o ogã é então considerado como um dos filhos da ialorixá. O mesmo sistema aplica-se às relações entre ogã e ekedi". (Augras, 1983, p. 203), e assim por diante.
Assinala o autor que, na vida cotidiana, não é muito fácil distinguir proibições rituais de normas éticas, ou, melhor dizendo, os aspectos rituais parecem mediar a articulação das regras éticas de conduta. A maneira como a comunidade costuma lidar com a transgressão desse tabu específico é bastante reveladora das regras implícitas de comportamento que norteiam as estratégias do grupo. "O certo fazer é não fazer. Mas se a pessoa tem um caso com um irmão de santo, a gente procura explicar de uma maneira que se entenda dentro da lei da seita" ( Costa Lima, 1977, p. 168). em certos casos, a transgressão é sancionada pela expulsão pura e simples dos culpados. De acordo com o autor, contudo, essa sanção automática, quase mecânica, constitui a exceção. O que costuma acontecer é o complexo desencadeamento de um processo de reinserção do transgressor no sistema, com o paralelo acréscimo da força sagrada. Diz um informante de Costa Lima: "O santo pode achar que um homem de Ogum(filho de Ogum) pode se casar com uma mulher que também é filha de Ogum - porque isto pode trazer benefícios para sua filha. Neste caso, é o próprio santo que suspende a quizila". E também "O santo permite se quiser, ou impede se quiser". (Costa Lima,1977, p.173, grifo do autor).
Vale dizer: o que importa não é a cega obediência aos preceitos, o fundamental é atender à vontade dos deuses. À medida que é o próprio orixá que promove a transgressão, ele, mais uma vez, afirma seu poder. De novo, comprova-se a imprescindibilidade da transgressão como elemento essencial de confirmação do caráter arbitrário e ilógico do poder dos deuses.
Cada terreiro compõe uma unidade fechada sobre si própria, com suas regras, suas tradições, e procura zelar pela manutenção das mesmas com um mínimo de interferências externas. Deste modo, preceitos e interdições sofrem inúmeras variações, pois não estão ligados apenas às características de cada orixá - que são mais ou menos "universais", como se verá adiante - mas também se originam das diversas idiossincrasias de cada membro da comunidade. Diz: S.M.E., mãe de santo de nação Ketu, com muita preocupação pela ortodoxia de origem africana: "Aqui no Brasil, o euó vem de muitos lugares. Já na África, ele é localizado, étnico, tribal, familiar. Nem sempre é ligado ao culto, seja de orixá ou antepassados. Por isso, sempre o que é de família, ou nação, serve para todos. O que determina, para um iniciado, seu euó, é o odu de nascimento. Depois de iniciado, na saída do orunko, o filho joga, na frente do povo, para determinar seu odu, sua personalidade e seus euó.Cada odu tem seus euó particulares. Não só quanto à comida vestimenta, atitudes, casamento, profissões. Aqui em casa o euó é usado de maneira africana, por causa de meu pai, mas ainda respeito resquício de euó de minha mãe". Ocorre que a informante foi iniciada primeiro em casa de célebre mãe de santo de nação Angola e encaminhou-se mais tarde para a nação Ketu, tendo hoje um sacerdote nigeriano como seu pai de santo. Apesar de toda sua ortodoxia, não pode deixar de atender às regras e proibições de sua casa de origem, por fazerem parte de sua própria historia. Há, portanto, proibições que são herdadas, de acordo com as raízes do pai ou mãe de santo.
Há também quizilas individuais. Estas quizilas são sempre tiradas pelos orixás ou pelos odus. Existe também euó criado pela própria pessoa, quando muito supersticiosa. Na minha vivencia pessoal de terreiro, confesso que jamais consegui deslindar o que poderia ser criação individual do que era apresentado como quizila determinada pelo próprio orixá ou odu. É possível, no entanto, que tais criações, no decorrer do tempo, passem a ser incorporadas no acervo de proibições da casa, particularmente no caso de pessoas antigas e, conseqüentemente, respeitadas. Em compensação, o que se observa, na vida cotidiana da comunidade, é o progressivo ajustamento do filho de santo às quizilas que lhe foram indicadas. "Nos quarenta dias (contados a partir da iniciação) verifico cuidadosamente os alimentos do orixá da pessoa", declara S.M.E., "se comer e não fizer mal, então vá em frente". Outros informantes esclareceram tratar-se de uma verdadeira aprendizagem por ensaio e erro. "A gente vai testando, se passar mal, aí sabe que é quizila mesmo". Parece que o filho de santo vai negociando constantemente suas possibilidades de ação e seus limites. Novamente encontramos o "jeitinho", como mecanismo intrínseco de lidar com o sagrado.
As proibições, alias, não são apresentadas como estáveis. Vão mudando de acordo com o status do iniciado, ao longo de sua vida sacerdotal. Isso é particularmente notável em relação às interdições que chamamos de profiláticas, já que, acompanhando ritos de passagem, têm por objetivo preservar o iniciado de contatos ou situações perigosas.
Após realizar o primeiro bori, o filho de uma casa tradicional de Ketu recebe as seguintes recomendações: "durante três meses, não entrar em hospital, nem cemitério, praia só depois de seis meses, evitar sol e sereno, manter abstinência sexual por 21 dias, e, por um mês, não cortar o cabelo, não beber, nem entrar em pagode(S.C.M.).
Pessoa recém-iniciada, enquanto usar o Kelê, colar que "significa a sujeição absoluta do iniciado ao orixá e obediência total à mãe ou pai de santo que fez a cabeça"(Cacciatore, 1977, p. 163), deverá, conforme informação de nação ijexá, usar roupa branca sempre, cobrir a cabeça com pano branco quando na rua, estar em casa às 12, 18 e 24 horas, tomar banho de abô semanal, dormir em esteira, não ter relações sexuais, não comer à mesa, não sentar em lugares que os outros sentam, só na esteira, não comer sal às sextas-feiras, não passar em cemitérios nem hospital, e usar contra-egun", proibições às quais as casas de jeje acrescentam a recomendação singular de não olhar no espelho, nem olhar no olho das pessoas".
Não obtivemos explicação para essa interdição mas não se pode deixar de lembra que, em várias culturas, o espelho é considerado como algo ligado à morte e à irrupção da alteridade.
Fonte: http://www.alaketu.com.br
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