CASA PODEROSA DOS FILHOS DE YEMANJÁ

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domingo, 28 de abril de 2013

Especial Candomblé - Só para iniciados




Na Bahia, os seguidores do candomblé lidam de diferentes formas com o interesse acadêmico por seus ritos secretos
Juliana Barreto Farias

11/11/2010


No início da década de 1970, o cineasta Geraldo Sarno registrou com detalhes a iniciação de uma filha de santo num terreiro de candomblé de Cachoeira, município do Recôncavo Baiano localizado a 110 quilômetros de Salvador. Pela primeira vez, imagens do transe, dos sacrifícios de animais e de outras obrigações religiosas eram exibidas para um amplo público. Mas nem todos gostaram do que viram ali. Especialmente o povo de santo da cidade. O motivo era um só: o documentário “Iaô” mostrava rituais que só eram revelados a uns poucos iniciados. Hoje, novos filmes, livros e pesquisas, inclusive de integrantes dos próprios candomblés locais, vêm apresentando ritos, histórias e velhos personagens dos terreiros. Mesmo assim, muita coisa continua um mistério.

Não é à toa que os grupos ainda mantêm essa atitude de reserva. Durante muitos anos, os terreiros sofreram com a repressão policial e a clandestinidade. “Além disso, o candomblé, como religião de iniciação, está baseado no segredo, em saberes que são gradativamente adquiridos e determinam a posição que cada pessoa ocupa na sua hierarquia”, assinala Luis Nicolau Parés, professor de Antropologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e autor do livro A formação do candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia. Mas o conteúdo desses segredos pode ser bem relativo e variável. Em algumas casas, não iniciadas não têm acesso a determinadas cantigas. Em outras, a um ebó (oferenda ou sacrifício oferecido a um orixá) ou a uma folha.

“São aberturas e resistências diferenciadas. O povo de santo de Salvador negocia a presença de pesquisadores desde os anos 1930 e tem criado mecanismos de autopreservação sofisticados, ocultando enquanto aparenta estar revelando. Já em Cachoeira, num contexto mais rural, há uma desconfiança dos mais velhos em relação aos de fora, sejam gringos ou da capital”, completa Parés. Para o historiador e antropólgo cachoeirano Luiz Claudio Nascimento Dias, filho de santo há mais de trinta anos, é muito raro um terreiro permitir que o pesquisador veja os rituais mais privativos, aqueles chamados de “fundamento do terreiro” ou “da nação”. “Mas é possível que lhe deem uma informação que permite, pelo menos, compreender o que ocorre lá dentro. Você pode não saber descrever etnograficamente, mas consegue interpretar”, diz.

Nos últimos anos, com a crescente exposição pública do candomblé e os incentivos a políticas de identidade e ao “turismo étnico”, as comunidades dos terreiros vêm se empenhando em elaborar suas próprias imagens e memórias. Nesse processo, começam a usar e abusar das mídias impressas e audiovisuais. Em Cachoeira, o Ponto de Cultura Rede Terreiro Cultural está reunindo depoimentos de ialorixás, babalorixás, ogãs (protetores do candomblé) e outros integrantes dos candomblés e de comunidades quilombolas da região. Só que os objetivos do grupo vão além do mero registro. A ideia é captá-los em seu cotidiano e ainda incentivá-los a produzir suas obras. “Isso é promoção de autoestima para uma mãe de santo, por exemplo, que poderá ver a dança de um orixá traduzida num filme com uma imagem de respeito. E não mais como uma apropriação midiática, um simulacro”, diz Lu Cachoeira, produtor cultural e um dos coordenadores da Rede. Até agora, já foram finalizados pequenos vídeos de cinco minutos para exibição em TVs públicas. Entre eles, um sobre Mãe Filhinha, em cuja casa foi filmado “Iaô”, de Geraldo Sarno. Mais adiante, a proposta é aproveitar todo o material já captado e transformá-lo em documentários mais longos. “Com isso, pretendemos estruturar um banco de registros audiovisuais fantástico, que poderá ser usado em estudos, por televisões, cineastas”, aposta o coordenador.

Mas esses “autores-atores” também têm que encarar as lógicas internas de transmissão do conhecimento. Luiz Claudio Nascimento Dias, ou Cacau Nascimento, como é mais conhecido, desde o final da década de 1970 frequenta e pesquisa os terreiros do Recôncavo Baiano. “Na verdade, quando me tornei um membro do candomblé, fiquei esse tempo todo mais preocupado em conhecer a história de Seu Nezinho do Portão, de Tio Anacleto, de Tia Didi, de como aquele terreiro se formou ou o significado do que está sendo cantado do que em aprender o andamento ritual. Hoje, dentro de um terreiro, sei mais falar sobre sua origem do que dizer como ali se canta para o orixá”. Nesse percurso, Cacau foi fazendo entrevistas com líderes e personalidades das casas de Cachoeira e São Félix, como guaiaku Luiza ou o ogã Boboso, juntando fotografias antigas e vídeos de cerimônias em seu terreiro, o Ilê Lebanekum, onde sua mulher e sua sogra são ialorixás. Nem por isso ele parece ter dúvidas quanto aos aspectos mais ocultos de sua religião. “Eu tenho uma autocensura. Na hora, penso: ‘não posso falar isso’. Às vezes chego a me sentir culpado por estar revelando uma coisa que me pediram para não revelar. Mas tenho facilidade de chegar, interpretar e dizer o que você quiser sobre candomblé, sem entrar nos aspectos mais internos”, conta o pesquisador, reconhecido como uma “espécie de consultor dos terreiros de Cachoeira”.

Embora não seja um iniciado, o antropólogo espanhol Luiz Nicolau Parés também adotou uma “autocensura etnográfica” em suas andanças pelos candomblés baianos. Seguindo conselhos do fotógrafo e pesquisador francês Pierre Verger (1902-1996), sempre procurou ser “bem-educado”, ou seja, comportar-se conforme as regras e expectativas do grupo e, na medida do possível, evitar fazer perguntas, já que assim poderia “denunciar sua ignorância”. No momento de passar as observações para o papel, os cuidados continuaram. “Aquilo que me disseram para não ser revelado, eu respeitei. Ora, posso ter cometido erros ou, para algum leitor, ter ido além do permissível. Nos casos em que isso me foi comunicado, pois fui visitar as casas depois da publicação, eu corrigi na segunda edição”, afirma. No fim das contas, a obra obteve uma reação bem positiva em Cachoeira. Para surpresa de Parés, foi considerada uma iniciativa que valorizou a cultura religiosa e a história local, e ainda contribuiu para aumentar o prestigio e a autoestima das comunidades.

De fato, o interesse por essas memórias está cada vez mais evidente nas ruas da cidade. “Outro dia, fizemos o registro num terreiro de Dona Lira. Durante as filmagens, as pessoas manifestadas com o santo aparecem de uma maneira tranquila, não têm qualquer inibição. Mas depois querem se ver como espetáculo também. Quando passo nas ruas, elas falam: ‘Ô Lu, e aquele material? Como eu faço para ver? Ter uma cópia?’. A gente quer fazer o filme. A população, ver o registro”, conta Lu Cachoeira. No Ilê Lebanekum, um cinegrafista eventual costuma varar as madrugadas filmando as festas. No dia seguinte, retorna ao terreiro trazendo o material gravado. “Todo mundo bota esteira no salão e senta para assistir ao que aconteceu naquela noite. O povo todo chora lembrando. E os vídeos depois ainda circulam entre as pessoas”, garante Cacau Nascimento. 

Com ou sem mistério, as comunidades de candomblé de Cachoeira contam suas histórias, abrem suas portas (mas sem escancarar) para pesquisadores e cineastas, e também começam a criar seus memoriais, homenageando mães e pais fundadores. Em tempos de proliferação de igrejas evangélicas e seitas eletrônicas, essas estratégias só contribuem para “levantar” os terreiros e garantir sua preservação.

FONTE:http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/especial-candomble-so-para-iniciados


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