OS IRUNMALÉS Parte 1
by tomeje
Sociedade Educacional Sul-Rio-Grandense FACULDADE PORTO-ALEGRENSE DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS E LETRAS – FAPA DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
Hendrix Alessandro Anzorena Silveira Turma 1221 Monografia apresentada a FAPA como requisito parcial à aprovação na disciplina de História Antiga II.
Orientadora: Profª Marise Hoff Failace
A Cultura Religiosa Dos Iorubás Do Surgimento à Diáspora
Porto Alegre 2004
Parte 1
OS IRUNMALÉS
Para os iorubás a existência transcorre simultaneamente em dois planos: no aiê e no orum. O aiê é o mundo material, palpável, onde vivem os ara-aiê, os seres naturais. Orum é o mundo imaterial, transcendente, onde vivem os ara-orum, os seres sobrenaturais.
Quanto ao orum, Juana dos Santos é insistente: (…) o espaço òrun compreende simultaneamente todo o do àiyé, terra e céu inclusos, e conseqüentemente todas as entidades sobrenaturais, quer elas sejam associadas ao ar, à terra ou às águas, e que todas são invocadas e surgem da terra. É assim que os àra-òrun são também chamados irúnmalè
(…) (SANTOS, 1986:72)
É no orum que se encontra Olodumaré (ou Olorum, Obá-orum, etc.), o deus supremo dos iorubás e detentor dos poderes que possibilitam e regulam toda a existência, tanto no orum como no aiê. Esses poderes foram transmitidos para os irunmalés, de acordo com suas funções.
Os irunmalés são divididos em dois grupos: os quatrocentos irunmalés da direita e os duzentos irunmalés da esquerda. Os números assinalados não significam, para os iorubás, números regulares, limitados, mas sim, que o número duzentos represente, simbolicamente, um número grande e o quatrocentos um número muito grande.
O sentido utilizado para “direita” e “esquerda” é muito profundo e exige um estudo pormenorizado que não caberia neste trabalho. A obra de Juana dos Santos é excepcional e indispensável para essa compreensão.
1.2.1. Os quatrocentos irunmalés da direita: os orixás funfun
Os quatrocentos irunmalés da direita são os orixás, não os orixás como são conhecidos no Brasil, mas sim um grupo mais restrito. Seriam os orixás funfun, ou orixás do branco, mais conhecidos no Brasil como Oxalás. Na África são chamados Orixanlá (grande orixá), Obatalá (rei do pano branco), ou ainda Obarixá (rei dos orixás). São divindades relacionadas à criação do mundo e dos homens. Um mito iorubá conta como se realizou essa façanha.
Olorum-Olodumaré encarregou Obatalá, o senhor do pano branco, de criar o mundo.
Para isso lhe entregou o “saco da criação”. Obatalá foi consultar Orunmilá, que lhe recomendou fazer oferendas para ter sucesso na missão. Mas obatalá não levou a serio as prescrições de Orunmilá, pois acreditava somente em seus próprios poderes.
Oduduá, o irmão mais novo, observava tudo atentamente e naquele dia também consultou Orunmilá. Orunmilá assegurou a Oduduá que, se ele oferecesse os sacrifícios prescritos, seria o chefe do mundo que estava para ser criado. Oduduá fez as oferendas.
Chegado o dia da criação do mundo, Obatalá se pôs a caminho até a fronteira do além onde Exu é o guardião e não fez as oferendas nesse lugar, como estava prescrito. Exu ficou muito magoado com a insolência e usou seus poderes para se vingar de Oxalá provocando-lhe uma grande sede. Obatalá aproximou-se de uma palmeira e tocou seu tronco com seu bastão fazendo jorrar vinho em abundância, que bebeu até embriagar-se, adormecendo na estrada, à sombra da palmeira de dendê. Quando se certificou do sono de Oxalá, Oduduá apanhou o saco da criação e foi a Olodumaré lhe contar o ocorrido. Olodumaré viu o saco da criação em poder de Oduduá e confiou a ele a criação do mundo.
“Com quatrocentas mil correntes Oduduá fez uma só e por ela desceu até a superfície de ocum, o mar. Sobre as águas sem fim, abriu o saco da criação e deixou cair um montículo de terra. Soltou a galinha de cinco dedos e ela voou sobre o montículo, pondo-se a ciscá-lo. A galinha espalhou a terra na superfície da água. Oduduá exclamou na sua língua: ‘Ilê nfé!’, que é o mesmo que dizer ‘a terra se expande!’, frase que depois deu nome à cidade de Ifé, cidade que está exatamente no lugar onde Oduduá fez o mundo. Em seguida Oduduá apanhou o camaleão e fez com que ele caminhasse naquela superfície, demonstrando assim a firmeza do lugar. Obatalá continuava adormecido. Oduduá partiu para a Terra para ser seu dono”.6
Obatalá despertou e, tomando conhecimento do ocorrido, voltou até Olodumaré contando sua história. Olodumaré, para castigá-lo, proibiu-o de beber vinho-de-palma, ele e todos os seus descendentes. Mas Olodumaré deu outra missão a Obatalá: a criação de todos os seres vivos que habitariam a Terra. E assim Obatalá criou todos os seres vivos. Ele modelou em barro os seres humanos e o sopro de Olodumaré os animou. O mundo agora se completara e todos louvaram Obatalá
No próximo capítulo veremos que Oduduá é o ancestral dos reis iorubás.
“os orixás funfun seriam em número de cento e cinqüenta e quatro”. Estes orixás são cultuados, cada um, em uma cidade diferente, onde ele pode ser o padroeiro dessa cidade, ou um orixá secundário. Entretanto, mesmo não sendo o padroeiro da cidade ou comunidade, ele tem grande importância graças a sua relação com a criação, mantendo, assim, uma posição de destaque, possuindo um ritual próprio e sacerdotes próprios também.
Desenvolveram-se rituais muito semelhantes para estes orixás nas diferentes cidades em que se apresenta, o que nos leva a crer que, na verdade, estes orixás são os desdobramentos de um único orixá (Orixanlá) cultuados em diferentes locais, e não divindades diferentes.
Como divindades do branco, tudo o que for branco lhes pertence. Só se vestem com essa cor e seus pertences são marcados com pintas brancas. Os albinos, por terem a pele branca, são também consagrados a este orixá.
Com raríssimas exceções, estes orixás se apresentam como sendo muito velhos, lentos e sábios. Como todas as culturas antigas, existe também na África um grande respeito pelos mais idosos, graças a relação com a ancestralidade, cosmovisão que se evidencia na representação da maior divindade do panteão iorubá.
São representantes do poder fecundador masculino, sendo considerados os pais da humanidade. Também são considerados como pais dos duzentos irunmalés da esquerda.
Então concluímos que os orixás funfun são os grandes senhores deste mundo (aiê) e do outro também (orum).
Suas oferendas são constituídas por alimentos brancos ou claros. Os animais oferecidos em sacrifício são também de pelagem ou penugem branca. É muito utilizado como oferenda o igbin, um caracol grande muito comum na região.
Verger nos conta que, em Ifé, a Meca dos iorubás, são sacrificadas duas cabras para Orixanlá e Iemouô, sua única esposa – o que ressalta aqui é que os africanos são poligâmicos. A primeira cabra, após os procedimentos litúrgicos, é cozida e distribuída a todos os participantes, já a segunda sofre um tratamento diferente. “Antigamente era um ser humano que devia ser sacrificado”8, por isso evita-se tocar no animal que, após a imolação, é arrastado com uma forquilha e jogado no mato. Comer a carne desta cabra seria atrair para si uma maldição, e também seria antropofagia.
A cidade de Ejigbô, também tem um ritual específico para Orixanlá, aqui chamado de Orixá Oguian – Oxanguiã no Brasil. Este orixá é muito específico, pois, ao contrário dos outros orixás, que são velhos e serenos, este é jovem e guerreiro. Seu nome deriva de òrìsàjiyán, “orixá-comedor-de-inhame-pilado”, segundo a lenda este orixá tem um apetite descontrolado por esta iguaria chamada ian em iorubá. Foi ele quem inventou o pilão para facilitar o seu preparo. Ele também é o fundador da cidade de Ejigbô e ancestral dos reis locais que ostentam o título de Elejigbô, o “Senhor de Ejigbô”.
Este orixá funfun é considerado o deus da cultura material, pois teria ensinado Ogum a lutar e a fazer as ferramentas de ferro, da mesma forma que o ensinou o cultivo da terra.
Orunmilá é outro dos orixás funfun que tem particularidades bem diferenciadas dos demais. Possui as mais altas posições no panteão iorubá. Orunmilá é o deus da adivinhação. Ele conhece todos os destinos dos homens. Um itan (mito) conta como ele adquiriu esse conhecimento.
Obatalá reuniu as matérias necessárias à criação do homem e mandou convocar seus irmãos orixás. Apenas Orunmilá apareceu por isso Obatalá o recompensou. Permitiu que apenas ele conhecesse os segredos da construção do homem. Revelou a Orunmilá todos os mistérios e os materiais usados na sua confecção.
Orunmilá tornou-se assim o pai do segredo, da magia e do conhecimento do futuro. Ele conhece as vontades de Obatalá e de todos os orixás envolvidos na vida dos humanos. Somente Orunmilá sabe de que modo foi feito cada homem, que venturas e que infortúnios foram usados na construção de seu destino.
O sacerdote de Orunmilá é denominado babalauô, o pai para tudo. Ele utiliza o oráculo de Ifá (Orunmilá) para conhecer o destino dos homens e mulheres que o procuram. Os iorubas não fazem viagens longas sem consultar antes o babalauô. Também o consultam para saber o sexo dos filhos antes de nascer, e qual o seu destino. Dependendo da resposta dada pelo oráculo, ele terá sua vida conduzida para se tornar um mercador, lavrador ou sacerdote, antes mesmo de seu nascimento.
Orunmilá é o “símbolo coletivo dos irunmalés”9, por isso não se manifesta em seus iniciados. Ele apenas comunica-se com eles através do oráculo, o jogo dos búzios.
1.2.2. Os duzentos irunmalés da esquerda: os eborás
Os duzentos irunmalés da esquerda são todas as outras divindades cultuadas pelos iorubás – Ogum, Oiá, Xangô, Oxumaré,… e Egum (ancestrais) – e são chamados de eborás.
Os eborás são divindades menores, intermediárias entre Olorum e os seres humanos. Alguns eborás são objetos de culto de toda uma cidade. Quando essa cidade tem um soberano, os eborás servem para reforçar a autoridade do líder, que pode ser um rei (Obá), um rico mercador (Balé) ou um chefe de aldeia.
Entretanto, a grande maioria dos eborás está intimamente ligado à noção de família.
A família numerosa, originária de um mesmo antepassado, que engloba os vivos e os mortos. O orixá (eborá) seria, em princípio, um ancestral divinizado, que, em vida, estabelecera vínculos que lhe garantiam um controle sobre certas forças da natureza, como o trovão, o vento, as águas doces ou salgadas, ou, então, assegurando-lhe a possibilidade de exercer certas atividades como a caça, o trabalho com metais ou, ainda, adquirindo o conhecimento das propriedades das plantas e de sua utilização. O poder, àse, do ancestral-orixá teria, após a sua morte, a faculdade de encarnar-se momentaneamente em um de seus descendentes durante um fenômeno de possessão por ele provocada.
Estes seres excepcionais não poderiam simplesmente morrer, mas sim, transcender a morte de forma que não sobrasse nem mesmo um corpo para ser enterrado. Esta é a grande diferença entre os eborás divindades e os eborás ancestrais.
Grosso modo, pode-se dividir o estudo dos eborás em pequenos grupos para melhor entendimento. Essa divisão se dá pelas similaridades de arquétipo e funções sociais dessas divindades.
1.2.2.1. Divindades da cultura material
Pode-se agrupar nessa categoria os eborás cujos cultos são indispensáveis para o bom andamento da vida cotidiana das pessoas. A agricultura foi a base da economia iorubá até meados do século XIX, quando descobriu-se petróleo na região. Desta feita divindades ligadas à agricultura tem grande destaque religioso.
Grande artífice da natureza, Ogum é o eborá que personifica o homem pré-histórico.
Ele é um dos pouquíssimos eborás cultuados por quase todo o território iorubá.
Ogum é desbravador, conquistador, guerreiro feroz e destemido. Foi o deus Orixá
Oguian quem lhe ensinou a lutar e a trabalhar com o ferro e com a agricultura. Mas foi Ogum quem entregou os segredos dessa cultura aos homens. Por isso ele é chamado de Ogum Alagbedé, o ferreiro. Ele confeccionava as ferramentas para poder cultivar a terra de formaque também ficou conhecido como o deus da agricultura, daí a importância desse eborá paratodos os povos de língua iorubá.
Segundo a mitologia iorubá, é o filho primogênito de Oduduá, fundador dos iorubás.
É considerado o mais ativo entre todos os eborás. Aliado poderoso, guerreiro feroz,
Ogum é líder, centralizador de poder e hábil estrategista.
A caça também é motivo para cultos específicos, pois esses povos viviam em florestas e caçar era um fator importante na economia de subsistência, assim como a pesca e a criação de animais (caprinos e ovinos).
Odé é o deus dos caçadores iorubás. Pede-se sua proteção quando o caçador se embrenha na floresta em busca do alimento. O povo iorubá é constituído por varias etnias que falam a mesma língua e possuem uma cultura semelhante, assim existem vários deuses da caça que estão diretamente relacionados às famílias que os cultuam ou às cidades.
Então temos: Oxossi em Queto, onde esse deus foi rei, recebendo o título de Alaketu; Ijá em Oió; Oré ou Oreluerê em Ifé; Otin em Inixá; Erinlé e Ibualama em Ilobu na região de Ijexá; Logunedé é o filho de Erinlé e Oxum Ipondá, seu culto tem lugar na cidade de Ilexá, também na região de Ijexá.
1.2.2.2. Divindades da saúde
Claro que toda civilização antiga possuía um ou mais deuses responsáveis, exclusivamente, pela saúde de seu povo. Entre os iorubás não foi diferente e percebemos dois eborás bem distintos, que não têm nada em comum a não ser o fato de serem cultuados esperando-se a saúde física e, subseqüentemente, a manutenção da vida.
Ossânim é a divindade das plantas medicinais e litúrgicas. Segundo Verger (1997:122) “o nome das plantas, sua utilização e as palavras (ofò), cuja força desperta seus poderes, são os elementos mais secretos do ritual no culto aos deuses iorubás”. Ele vive na floresta em companhia de Aroni, um anãozinho com uma perna só, que fuma constantemente um cachimbo feito de caracol.
Ossânim tem um sacerdote próprio denominado olossânim, senhor de Ossânim. É também chamado de Onixegum, curandeiro. Em Ifé, é Elisijé que ocupa o lugar de curandeiro.
Um fator importante é que os olossânim não entram em transe de possessão, eles adquirem a ciência do uso das plantas após uma longa aprendizagem.
O eborá Xapanã conhece os segredos da vida e da morte, por isso ele é chamado de Omolu, filho do senhor, ou Obaluaiê, rei dono da terra. É a divindade das pestes, da varíola, das doenças de pele. Tem o poder de afastar as doenças, mas também pode trazê-las.
Cobre-se com um manto de palha da cabeça aos pés, pois sua pele é coberta de chagas e feridas. Carrega consigo um cetro, semelhante a uma vassoura que se chama xaxará, feito de palitos de dendezeiro bordado com palha-da-costa e muitos búzios.
O vínculo de seu nome com as doenças faz deste Orixá o protetor da saúde daqueles que o cultuam e faz com que seja constantemente procurado para resolver problemas ligados a esta área. A origem desse eborá está ligado ao oeste, mais precisamente o Daomé, onde esse deus é cultuado sob o nome de Sakpatá. Assim como os iorubás, os daomeanos evitavam chamá-lo assim, preferindo invocá-lo como Ainon, que, como Xapanã entre os iorubás, significa Senhor da Terra.
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