CASA PODEROSA DOS FILHOS DE YEMANJÁ

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terça-feira, 26 de julho de 2011

Hipertrofia ritual das religiões afro-brasileiras


Hipertrofia ritual das religiões afro-brasileiras



Reginaldo Prandi
Universidade de São Paulo
Texto publicado em Novos Estudos Cebrap,
nº 56, março, pp. 77-88.


As religiões afro-brasileiras podem ser caracterizadas como religiões rituais cuja dimensão mágica supera em muito a dimensão que diz respeito aos aspectos morais, tanto que, num outro estudo, referi-me ao candomblé como uma religião aética, propriedade que, de certa forma, explica seu sucesso no mercado religioso de hoje (Prandi, 1991).

O candomblé e outras modalidades religiosas de origem africana não estão sozinhos quando atribuímos sua expansão recente ao seu caráter de agência prestadora de serviços mágicos.

O pentecostalismo e o neopentecostalismo congregam inúmeras denominações mais interessadas em resolver problemas pessoais por meio dos poderes sobrenaturais do que propriamente internalizar valores éticos (Mariano, 1999; Pierucci e Prandi, 1996).

O catolicismo, na sua bem-sucedida versão da Renovação Carismática, no percurso inverso do catolicismo das comunidades eclesiais de base, deixou de lado o interesse pelas questões sociais e preocupações de ordem solidária para centra-se no indivíduo e resolver, pela via mágica, suas eventuais terrenas aflições (Prandi, 1997).

A imensa gama de variantes esotéricas à disposição no mercado de serviços mágicos completa esse quadro em que a religião é cada vez menos ética, mais ritual e mais mágica, em que a religião é menos religião e mais magia, em que a religião é menos instituição agregadora e mais serviço, menos formação e mais consumo.

As religiões e seus templos de hoje são agências de ajuda sobrenatural e espaços de espetáculo e de lazer baseados ambos na expansão da emoção e fruição coletiva de sensações. São, sobretudo, instituições de filiação temporária que disputam entre si clientes e adeptos que, agora como clientes, devem igualmente pagar pelos favores religiosos, transformando as religiões naquilo que chamei de religião paga (Prandi, 1996).


Nesse quadro de falência ética das religiões no Brasil quero situar as religiões afro-brasileiras, mais especificamente o candomblé, buscando identificar alguns fatores que teriam contribuído para sua hipertrofia ritual e supervalorização do individualismo.

Chamo a atenção para o fato de que a maior parte das observações apresentadas para o candomblé vale hoje igualmente, em grau maior ou menor, para as diferentes modalidades que compõem as religiões afro-brasileiras, tanto em suas regiões de origem como naquelas em que se instalaram no curso do século XX.

Delas, certamente a umbanda é que apresenta ritual mais conciso e despojado, o que, entretanto, não corresponde a uma contrapartida ética mais robusta.

                                                  II
As religiões afro-brasileiras constituídas até o início deste século e aqui denominadas candomblé, xangô, tambor-de-mina e batuque reproduzem em muitos aspectos as religiões originais dos orixás, voduns e inquices africanos. Delas herdaram o panteão, aqui reorganizado, as línguas rituais, de significado esquecido, o ritos, as concepções e valores míticos.

A dimensão da religião mais ligada ao controle da moralidade, na África atendida pela celebração dos ancestrais, embora parcialmente reproduzido em cultos isolados e de certo modo independentes, perdeu no Brasil muito de sua importância original.

Os valores que orientam o comportamento dos seguidores na vida cotidiana não pressupõem o bem-estar comum do grupo, da sociedade ou da humanidade como categoria genérica.

As denominações mais recentes, como a umbanda, reelaboraram toda a parte ritual das religiões afro-brasileiras de que se originaram e incorporaram muito dos valores cristãos do kardecismo, adotando uma visão maniqueísta do mundo, não tendo desenvolvido nunca, contudo, um código de ética voltado para a orientação da moralidade dos fiéis em termos coletivos.

Tantos as religiões afro-brasileiras tradicionais como as variantes modernas parecem desinteressadas do controle ético de seus membros.


A religião dos orixás, dos voduns e dos inquices reconstituiu simbolicamente no Brasil do século passado a África que os negros africanos perderam com a escravidão, conforme já nos mostrou Bastide (1975), mas, embora fosse na origem uma religião de negros, a sociedade já era a brasileira, com instituições totalmente outras, sobretudo a família, uma sociedade que contava com o catolicismo como fonte decisiva de identidade e sociabilidade. Não era então possível ser brasileiro sem ser católico, mesmo que se fosse negro e mesmo que ser brasileiro fosse uma imposição (Prandi, 1999).

Assim, a religião africana no Brasil constitui-se como religião de negros católicos, que já haviam perdido a família africana, com seus clãs, genealogias e antepassados.

Embora os candomblés tenham reconstituído nas estruturas religiosas brasileiras e seus postos sacerdotais as hierarquias de poder e as regras de administração características da família e dos reinos africanos, uma parte decisiva da religião foi deixada para trás: a presença dos antepassados e de muitas entidades sobrenaturais que na África respondiam pelo controle moral dos homens e das mulheres.


Entre os povos sudaneses, que deram às religiões afro-brasileiras os principais elementos formadores, o rei de cada cidade era o magistrado supremo, a quem se devia a administração da justiça.

Mas eram várias a instituições que zelavam pela manutenção da moralidade, desde os conselhos familiares e dos clãs até as sociedades secretas de cunho religioso.

Entre os iorubás, pelo menos três dessas sociedades eram muito importantes, e ainda hoje lá sobrevivem, cobrindo cada uma extensos e diferentes territórios iorubanos: a sociedade Egungum, a sociedade Ogboni e a sociedade Orô, sendo as três sociedades exclusivamente masculinas.

Os egunguns são os antepassados da cidade, espíritos de antigos fundadores de troncos familiares, vilas e cidades (Babayemi, 1980).

Anualmente recebem oferendas e são celebrados num festival de mascarados que os representam e dançam pelas ruas da cidade, julgando pendências, resolvendo disputas, apontando infratores da ordem familiar e pública, condenando criminosos.

Diz Abraham que o egungum é "um inquisidor sobrenatural que vem para julgar a conduta doméstica do povo, especialmente as mulheres e os criminosos" (Abraham, 1981: 149-151).

O antepassado também julgava os acusados de feitiçaria, que podiam ser condenados à pena capital.

A sociedade Ogboni, muito enfraquecida pela administração colonial a partir do século XIX, era formada por chefes locais encarregados de resolver questões políticas e também morais.

A sociedade de Orô, temida entidade que habitava o interior de uma caverna mítica e cuja voz troava como o terrível rugido de um boi enfurecido, julgava feiticeiros, mulheres adúlteras, ladrões etc.

Os condenados eram levados durante a noite para um bosque e ali executados pelos sacerdotes de Orô.


O culto aos antepassados, egunguns, reproduziu-se na ilha de Itaparica (Braga, 1992), mas como modalidade religiosa circunscrita aos limites do terreiro, perdendo completamente suas características de instituição ética. Não dispondo de base territorial e muito menos comunitária em que pudesse exercer qualquer tipo de poder, formou-se nos moldes dos candomblés de orixás, como grupo de culto particular e independente dos demais candomblés, da população negra e da sociedade local, embora se mantivesse como culto secreto e estritamente masculino, preservando ritos e indumentária.

Os raros terreiros de egungum de Itaparica tiveram uma ou outra ramificação em Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, mas jamais alcançaram a importância dos candomblés de orixás e nem têm sobre estes qualquer poder real de controle moral.


Sobre o culto de Orô temos vagas notícias registradas no final do século passado (Rodrigues, 1935). Confundido com Gonocô, entidade possivelmente de origem tapa, Orô vivia nas matas da periferia de Salvador e seu castigo era impiedoso, mas com o passar do tempo acabou completamente esquecido.

A sociedade Ogboni, que implicava a existência do controle da administração de diferentes cidades, sobreviveu apenas na memória de poucos e em mitos de seus orixás patronos.


Uma outra importante sociedade iorubá de mascarados, esta controlada pelas mulheres, também não teve futuro no Brasil, a sociedade Gueledé.

A sociedade Gueledé de mulheres encarrega-se na África do culto às ancestrais femininas, assim como Egungum celebra os ancestrais masculinos (Lawal, 1996).

Também organiza os festivais anuais com danças de mascarados nas ruas. Mulheres de antigos candomblés da Bahia tentaram instituir entre nós a sociedade Gueledé, mas parece que disputas entre diferentes terreiros impediram a iniciativa de ir adiante. Restaram algumas máscara dessa época, que podem ser vistas em museus e coleções particulares.

Embora a sociedade Gueledé não tivesse a importância das que citei anteriormente em termos de controle da moralidade, sua não instituição completa o quadro de falência da reconstituição em solo brasileiro das instituições religiosas iorubás de organização coletiva encarregadas de agregar toda a população, zelar pelos bons costumes e punir os que se desviavam das normas, fossem eles, ladrões, assassinos, perjuros, incestuosos, adúlteros, traidores, desonestos, feiticeiros e outros indesejáveis sociais.


                                                      III


Quando aqui se constituiu a religião africana, o controle da moralidade pública dizia respeito às instituições policiais e jurídicas e ao catolicismo, que era a fonte axiológica máxima para o comportamento e tribunal supremo da intimidade e da consciência.

Como católicos e brasileiros, os negros que se reuniam nos candomblés de orixás, voduns, inquices e caboclos tinham suas ações em sociedade vigiadas e punidas pela igreja e pelo estado.

Em contrapartida, coube ao candomblé regular as relações de cada fiel com sua divindade, relações que são particulares, uma vez que cada humano está ligado por descendência mítica a uma divindade específica, numa pluralidade delas.

Ao sacerdote supremo do terreiro cabe então desvendar a filiação divina do fiel, oficiar os ritos que permitem estabelecer o pacto de interdependência entre o fiel e seu deus ou deusa, identificar os tabus do iniciado e prescrever periodicamente as oferendas que o fiel deve propiciar à sua divindade para que ela o recompense com saúde, vida longa, conforto material, sucesso profissional, reconhecimento social, felicidade familiar, amorosa e sexual. Nessas atividades vale-se do oráculo do jogo de búzios, que é prerrogativa exclusiva do chefe do terreiro.

Direitos e deveres, assim como lealdades e reciprocidades, são estabelecidos e cobrados na relação fiel-divindade, com as necessárias lealdades e pagamentos ao sacerdote-chefe e seu corpo hierárquico-institucional, isto é, a mãe-de-santo e seu terreiro, já que sem essa intermediação o acesso ao mundo sobrenatural não se realiza.


Embora atendendo a uma comunidade de culto, os candomblés formaram-se como empreendimentos individuais, dirigidos segundo a vontade de seus chefes fundadores e fazendo parte de seu patrimônio particular.

A mãe-de-santo, ou o pai, sempre foi a autoridade máxima do terreiro e todas as decisões, que, segundo a crença do candomblé expressam a vontade do orixá dono do terreiro, que é o mesmo da mãe ou pai-de-santo, são incontestáveis.

A mãe-de-santo é a mãe da família espiritual, a família-de-santo, e proprietária de fato da casa de culto e embora todo o grupo se estruture em hierarquias e cargos que dependem do tempo de iniciação, relações de parentesco e obrigações iniciáticas já cumpridas, a designação de filhos para postos de prestígio e a nomeação para funções rituais que implicam compartilhar do poder da mãe dependem única e exclusivamente da vontade da mãe-de-santo, que pode quebrar regras e expectativas e nomear pessoa de sua relação mais íntima, passando por cima de outros que suspostamente já estavam ritualmente preparados para o cargo em questão.

Tudo é muito pessoal, tudo deve atender aos interesses de quem manda e facilmente se observa a facilidade com que relações afetivas suplantam direitos formais. Desde a origem, o candomblé é uma religião personalista e individualista.


                                                  IV


O adepto do candomblé somente presta contas de suas ações à sua divindade particular, com a qual ele pode contar para ter uma vida livre de desgraças, perdas e frustrações.

Basta que ele cuide bem do orixá, fazendo suas oferendas nas épocas regulamentares, oferecendo-se a ele em transe nas cerimônias em que os orixás comparecem para dançar com sua comunidade de humanos e respeitando os tabus rituais.

São os tabus que definem o que o fiel não pode fazer e não são os mesmos para cada um, dependendo do orixá da pessoa e de seu odu, que é uma espécie de regência mítica originária, que acompanha o iniciado por toda a vida.

Os tabus são sobretudo proibições alimentares, também restringindo certos comportamentos que não incluem significativamente a relação com os outros, como, por exemplo, não tomar banho de mar, não subir em árvore, não usar roupa alheia, não raspar panela com faca.

Tudo o que não é tabu do orixá ou do odu é permitido, havendo muita flexibilidade, podendo os tabus ser substituídos por outros e mesmo pouco cobrados.


As noções de certo e errado, as pautas de direitos e deveres, as interdições, assim como as regras de lealdade e reciprocidade são moldadas na relação entre o seguidor e seu orixá, entre o filho humano e o pai divino.

Esta relação está acima de qualquer outra coisa e acredita-se que a personalidade do filho reflete a personalidade do orixá que é seu pai ou mãe no plano mítico, o que lhe atribui por herança uma gama de comportamentos e atitudes aceitos e justificados pelos mitos dos orixás e que contrastam muito com os modelos de conduta cristãos.

Não há um modelo geral válido para todos, pois depende-se sempre da origem mítica de cada um, sendo múltiplas as origens possíveis, uma vez que são muitos os orixás dos quais os homens e mulheres descendem. Na lógica politeísta do candomblé, não se pode esperar que filhos de orixás diferentes tenham os mesmo comportamentos, qualidades morais, desejos e aspirações.


Por outro lado, os mitos dos orixás "naturalizam" e aceitam comportamentos que implicam o envolvimento em atos como disputa, guerra, desavença, traição, suborno, corrupção, usurpação, falsificação, rapto, incesto, sedução, estupro, assédio sexual, roubo, destruição, assassinato, logro, fraude, fingimento etc.

Em qualquer desses atos, o ideal é sair-se como o ganhador, igualmente quando se é a vítima e algoz, o que valoriza qualidades como coragem, determinação e astúcia.

Estar sempre atento e preparado para o possível e iminente ataque que vem do outro é uma condição necessária para a vida neste mundo, naturalmente concebido como um território competitivo e conflituoso.

Mesmo no terreiro o cotidiano é encarado como espaço de disputa, no qual a afirmação das qualidades míticas herdadas é constantemente incentivada.

As contendas dentro e entre terreiros não somente são vividas, mas são apontadas como inteiramente esperadas.


Embora grande parte dos mitos tenha se perdido, muito de seu conteúdo foi preservado nos ritos que representam a saga dos orixás, sobretudo nas cerimônias públicas realizadas no barracão sob o olhar de uma platéia de devotos visitantes, curiosos e simpatizantes.

Assim, atitudes beligerantes, bem como as que indicam a sensualidade da conquista amorosa, por exemplo, são enfaticamente expressas na gestuália das dança dos orixás, quando o rito revive o mito.


                                               V


Com o passar das gerações, as línguas rituais do candomblé foram esquecidas.

Embora todos os ritos sejam cantados (são centenas de cantigas e rezas), somente palavras avulsas têm ainda conhecido seu significado e ninguém mais pode se comunicar na língua do candomblé, seja ela de origem iorubá, fon, quimbundo, quicongo etc., conquanto alguns grupos venham se esforçando no sentido de reaprender, na escola, a língua esquecida.


O etnólogo e babalaô nigeriano Wande Abimbola, não sem razão, atribui ao esquecimento da língua a ênfase ritual excessiva, que ele chama de "over-ritualization", que se observa nos países da diáspora, especialmente Brasil e Cuba (Abimbola, 1997: 114).

A perda do sentido das palavras e o conseqüente esquecimento da literatura oral teriam sido compensados pela complicação e elaboração excessiva dos ritos.

Como as inovações são da iniciativa de cada terreiro, foi se formando um enorme repertório que não é compartilhado por todos, aumentando os pontos de tensão entre as diferentes casas.


A ênfase crescente nos ritos foi acompanhada sempre de muita criatividade e certos exageros. Um desses exageros pode ser observado na prescrição de sacrifícios, como também sublinha Abimbola.

Assim, nos casos em que na Nigéria se costuma oferecer uma ave a um determinado orixá, aqui o número de animais pode chegar a uma dezena ou mais, pois além de oferecer a prenda àquele orixá, o devoto vê-se obrigado também a fazer oferenda ao orixá mensageiro, ao orixá do pai-de-santo, aos orixás patronos da casa etc., devendo pois sustentar com seus recursos um rito extremamente dispendioso e quase sempre fora do alcance de seu bolso, um luxo, diz Abimbola, que um africano não pode sustentar (Abimbola, 1997: 115).

O iniciado passa grande parte do tempo preocupado com a obtenção dos recursos materiais necessários à sua obrigação, o que inclui também os gastos com roupas, utensílios sagrados do orixá, dinheiro para a festa e para pagamento das espórtulas do pai ou mãe-de-santo, já que na maioria dos casos o chefe do terreiro vive de sua atividade sacerdotal.


Quando sua obrigação se concretizar e o fruto de sua dedicação, pelo menos na etapa final que quebra o sigilo iniciático, for exposto ao público na festa do barracão, todos os olhos estarão voltados para o apuro estético e o fausto da apresentação.

Ninguém estará preocupado com virtudes e sentimentos religiosos, pois a religiosidade aqui se expressa pela sua exterioridade, a forma embotando o conteúdo.


Com a crescente importância do rito, expandiu-se uma verdadeira indústria de artefatos sacros e se constituiu um diversificado conjunto de produtores e vendedores de artigos religiosos, nacionais e importados.

Objetos antes feitos por artesãos que pertenciam às comunidades de culto foram sendo substituídos por artigos produzidos industrialmente; comerciantes especializaram-se na importação de tecidos e roupas e na produção e distribuição de rendas e bordados.

Verdadeiros supermercados de artigos religiosos passaram a estar disponíveis nos mais diferentes pontos das grandes cidades.

O Mercadão de Madureira, no subúrbio do Rio de Janeiro, reúne dezenas de lojas especializadas, onde tudo pode ser comprado, desde tecidos, roupas, objetos de assentamento, contas, búzios, favas e sementes, velas, adereços, artigos de palha, louça, cerâmica e ferro, ingredientes para os pratos da cozinha dos orixás, até folhas e animais para sacrifício. Algumas lojas fazem em ferro, na hora, ferramentas de orixá de acordo com o gosto e o desenho do freguês.


Esse mercado de artigos religiosos põe à disposição do seguidor do candomblé uma oferta que se renova a cada onda da moda e faz dele um consumidor contumaz.

Os paramentos dos orixás compostos de saias, calçolões, laços e faixas, mais as coroas, capacetes, braceletes, peitorais, tornozeleiras, além das insígnias de mão, como espadas, arcos e flechas, cetros, bastões, leques, espelhos, espanta-moscas, tudo isso é produzido de acordo com a moda da época. Notadamente no Rio de Janeiro e São Paulo, onde os profissionais que ditam a moda no candomblé são em geral os mesmos produtores estéticos das escolas de samba, não é difícil perceber como o desfile de carnaval antecipa as preferências em desenho e material que vestirão e adornarão os orixás em transe nos barracões de candomblé naquele ano.


A relação de interdependência entre religião, mercado consumidor e espetáculo limita cada vez mais a atenção, o interesse e a concepção de religião do devoto do orixá, orientando o foco de sua percepção para o rito, que aparece como sinônimo pleno de religião.

De fato, quando algo na vida do devoto não dá certo, quando incidentes inesperados lhe trazem sofrimento e dor, quando suas expectativas não se realizam, acredita ele que algum erro foi cometido na realização do rito, freqüentemente atribuindo a culpa à mãe-de-santo que, por ignorância ou má-fé, não teria sabido aplicar as fórmulas corretas. Não lhe ocorre imputar a desdita a seu merecimento, à qualidade de sua intenção, à sua fé e esperança, como se dá, em contraposição, em religiões em que a dimensão moral é preponderante.

A oferenda, a obrigação, o rito funciona ex opere operato.

Uma vez realizado corretamente, o ritual deve proporcionar os fins pretendidos, independentemente de intenções e atitudes envolvidas no rito, seja da parte do ofertante seja da parte do oficiante.

É preciso, pois, conhecer e realizar corretamente o rito.

Se não der certo, deve ser corrigido.


A hipertrofia ritual reflete-se na super-valorização da representação cênica das assim chamadas cerimônias de barracão, quando os seguidores, em transe de seus orixás e outras divindades e entidades, dançam, caracteristicamente paramentados, aos som das cantigas rituais acompanhadas pelo ritmo de atabaques, agogôs e xequerês, para uma platéia de crentes, clientes e curiosos.

Dançam ao som de cânticos, cujas palavras tiveram seu significado perdido nos caminhos da diáspora, para uma platéia de curiosos que ali estão para usufruir da celebração religiosa como espetáculo de exótica estética, e também para uma platéia de crentes pertencentes a outros terreiros e famílias-de-santo que estão ali para avaliar, criticar e muito raramente elogiar a organização cerimonial e a beleza das danças, roupas e adereços.

Que estão ali também para usufruir do candomblé como lazer.

É um lema que quem oferece festa deve oferecer a melhor festa, reunião que se conclui com um quase sempre muito generoso e concorrido banquete ritual preparado com o produto do sacrifício.


Tudo isso implica, certamente, competição, imitação e exercício da capacidade de invenção e criatividade.

Freqüentar um local como o mercado de Madureira, o que para muitos representa momentos de lazer e sociabilidade, propicia o contato com a moda com seus objetos sugestivos recém-craidos e novas matérias primas interessantes, de modo que cada um pode elaborar pessoalmente seus próprios artefatos e arranjos, num exercício infindável de reelaboração e enriquecimento material do rito.


                                                 VI


Ao reproduzir originalmente no terreiro a estrutura da família poligínica africana, o candomblé adotou padrões de incesto severos, impedindo casamento e relações sexuais entre os membros de um terreiro, que na verdade representa uma família extensa.

Também a mãe-de-santo estava impedida de iniciar, por exemplo, seus filhos carnais, o que obrigava o terreiro a estabelecer laços iniciáticos com outros terreiros, reforçando as relações de reciprocidade entre as diferentes casas de culto.

Igualmente, o cônjuge de uma iniciado deveria ser iniciado pela mãe ou pai de outra casa, já que no plano religioso, se ambos fossem iniciados pela mesma mão, passariam a ser irmãos.

A disputa ferrenha entre as casas-de-santo, a falta de confiança entre os líderes, a ambição dos chefes no sentido de ter cada vez mais e mais filhos-de-santo enfraqueceram e mudaram os tabus de parentesco, passando-se, por exemplo, a se considerar irmãos apenas aqueles cuja cabeça pertence ao mesmo orixá, mesmo assim podendo-se mudar um deles para se evitar relações entre irmãos.

As regras do tabu hoje não representam impedimento categórico, havendo muita flexibilidade para alterar as regras caso a caso, de acordo com os interesses do terreiro e de seu chefe.

Praticamente todas as relações são admitidas dentro de um mesmo grupo de culto, sendo muitos os artifício aceitos para burlar as interdições.


O candomblé costuma ser apresentado como religião libertária, sobretudo no que diz respeito à sexualidade.

Já no final dos anos trinta, os relatos de campo da antropóloga americana Ruth Landes (1967) sublinhavam as liberdades de escolha sexual de homens e mulheres dos terreiros de Salvador, não parecendo haver restrições sobre a conduta sexual, seja ela referida a preferências hetero ou homessexual.

Num segmento social caracterizado pela grande presença de famílias parciais ou incompletas, em que a mulher era a chefe e provedora, as relações conjugais estáveis não eram a norma e a preocupação com valores morais associados à manutenção da família monogâmica estável estava longe da realidade.

Numa época em que os valores sociais que regulavam a vida em família e a vida sexual eram muito estritos, valores como vida sexual exclusivamente no casamento não faziam sentido para a população que se ligava ao candomblé.

O alargamento de possibilidade de escolha de parceiros sexuais, inclusive homossexuais, deve ter minado completamente os tabus do incesto que, originalmente, proibiam relações entre os filhos-de-santo de uma mesma casa (já que eram irmãos entre si), entre pais e seus iniciados etc. Logo os tabus religiosos estavam reduzidos à ingestão de alimentos e pequenas ações.


Embora se faça muita crítica ao comportamento moral do outro, sempre na forma de fofoca e maledicência, o candomblé não dispõe de nenhum mecanismo formal de censura, aceitando em seus corpo de iniciados qualquer pessoa, mesmo quando se trata de indivíduos cuja conduta moral, sexual ou não, os torna indesejáveisl para outras religiões, que só os aceitam quando são capazes de mudá-los.

Exemplo emblemático está estampado numa reportagem da Revista da Folha de 29 de setembro de 1999, em que sete pais-de-santo, fotografados em grupo com suas roupas litúrgicas afro-brasileiras, vêm a público para expor sua homossexualidade e falar da liberdade sexual no candomblé, liberdade que se justifica por meio de comparações, nem sempre fiéis, com ações e atitudes das próprias divindades narradas pelos mitos dos orixás às vezes de fonte duvidosa.

De fato, o candomblé é capaz de justificar as opções e condutas não somente de ordem sexual, mas qualquer outra.

Não se cultiva, de todo modo, um modelo de conduta geral recomendado para todos; a diferença é aceita plenamente e cada um responde por aquilo que é.

A pauta de ações a ser cumprida obriga o filho-de-santo a cuidar do seu orixá, a quem deve alimentar, vestir e apresentar em festa. Se tais ações estritamente rituais forem cumpridas nos períodos das obrigações devidas ao orixá, cada um é livre para ser e fazer o que quiser.


                                                   VII


Em meados do século XX, quando deixou de ser uma religião exclusiva de negros e se abriu para todos, o candomblé já se mostrava como religião ritual e mágica, em parte dependente, em termos financeiros e de prestígio social, de um mercado de serviços mágicos para uma clientela sem laços religiosos com a comunidade de culto.

A abertura para os segmentos não negros da população e sua expansão para o Sudeste e posterior propagação por todo o País só fez acentuar esta faceta do candomblé.

O pai-de-santo passou definitivamente a se apresentar como o feiticeiro competente, capaz de fazer e desfazer qualquer magia em benefício do cliente pagante.

A carreira sacerdotal transformou-se numa perspectiva profissional aberta a muitos jovens pobres e sem escolaridade em busca de mobilidade social, uma vez que, com sete anos de iniciação (às vezes menos e muito menos) qualquer pessoa pode legitimamente se estabelecer como mãe ou pai-de-santo, iniciar filhos e angariar clientela.

A aceitação plena do homossexualismo fez do candomblé talvez a única opção religiosa possível para muitos jovens discriminados pelas outras religiões e demais instituições socais, sobretudo no caso do probre sem perspectiva de mobilidade.

A história de muitos pais-de-santo revela terem alcançado um sucesso ocupacional com um grau de ascensão social que dificilmente teriam logrado se não fossem as oportunidades oferecidas pela religião dos orixás, constituindo-se para os jovens seguidores como modelos de sacerdotes bem-sucedidos, independentemente de serem ou não modelos de virtude.

O valor da ostentação, que parece tão caro a muitas culturas africanas, ganha relevo especial, devendo o pai-de-santo apresentar-se em público com roupas vistosas e caras, preferencialmente importadas de países africanos, com a cabeça envolta em torços de tecidos espalhafatosos, trazendo na mão emblemas da realeza tradicional, num conjunto de estética própria, que o identifica imediatamente com o candomblé a partir de estereótipos fartamente explorados pela televisão.


Podendo contar com uma sólida oferta de produtos rituais que ampliam a riqueza e a diversidade do rito como espetáculo que busca o reconhecimento alheio, o pai-de-santo dispõe ainda, no mercado interno dos serviços religiosos, de músicos aptos à realização dos toques e cantos indispensáveis às celebrações públicas, os quais trabalham por remuneração.

O pai-de-santo não está sozinho à frente de sua comunidade, mas conta com a ajuda importante dessas ofertas, que podem ser mais ou menos demandadas, dependendo da própria capacidade do pai de prover seus próprios ritos sem a presença de auxiliares contratados.


Além do fato de o tempo iniciático mínimo mostrar-se curto para um aprendizado mais detido dos fundamentos e práticas religiosas, mesmo porque em geral um iniciado divide seu tempo de iniciação com seu tempo de trabalho na vida profana, a maioria das atividades do aprendizado sacerdotal concentra-se na produção e na realização da festa, e em muitos casos o período de treinamento regulamentar de sete anos é reduzido em favor dos interesses de iniciados ansiosos em se estabelecer por conta própria como chefes de terreiro.

As casas-de-santo raramente desenvolvem atividades de desenvolvimento intelectual e moral de seus quadros, mantendo-se sempre um falso clima de mistério, segredo e reserva sobre questões de doutrina, doutrina pouco ensinada e discutida e fartamente ignorada por pais e mães que não tiveram tempo, interesse ou oportuniade de aprender, desconhecendo-se, por exemplo, as concepções de nascimento, morte e reencarnação que são fundamentais na religião dos orixás.


Aos fatores que favorecem a hipertrofia ritual junta-se pois a concepção corrente que se tem da profissão de pai-de-santo como sendo um feiticeiro agora socialmente legitimado pelo consumo esotérico e midiático, que trabalha por dinheiro para resolver os problemas de quem dele precisar, como qualquer outro profissional do bem-estar do indivíduo.

Para se situar bem no mercado de muitos competidores, terá este profissional que se fazer visível, bem visível.

Nada melhor, para alcançar a publicidade, que esmerar-se no rito, sobretudo quando não se tem o treino necessário para se impor pela presença intelectual nem o carisma para se afirmar como líder espiritual.

Como sói acontecer, em graus variados, também com os novos sacerdotes do catolicismo carismático, do neopentecostalismo e de tantos e tantos credos disponíveis no mercado mágico contemporâneo.




Referências bibliográficas


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REVISTA DA FOLHA. "A bênção, painho: pais-de-santo falam sobre homosse-xualidade". São Paulo, nº 382, pp. 36-37, 29 de agosto de 1999.


RODRIGUES, Nina. O animismo fetichista dos negros baianos. 2ª edição. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1935.


 

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