CASA PODEROSA DOS FILHOS DE YEMANJÁ

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quarta-feira, 12 de outubro de 2011

CRESCENDO ENTRE ORIXÁS




Crianças que praticam candomblé sentem orgulho de sua religião, mas na escola sofrem preconceito, envergonham-se e dizem que são católicas


Por Stela Guedes Caputo* - redacao@fazendomedia.com

Aos 4 anos ele precisava de uma almofada para poder alcançar o atabaque. Escondia a chupeta atrás das costas, vestia uma camisa branca e colocava o colar de Xangô, orixá do fogo, da justiça e de quem é filho. Ricardo Nery atualmente tem 18 anos, mas aos dois anos foi "suspenso", ou seja, apontado ogan por Iansã no terreiro de sua avó, Mãe Palmira de Iansã, o Ile Omo Oya Legi, em Mesquita. Paula Esteves, do mesmo terreiro, tem 20 anos e foi iniciada aos 2 anos de idade, passando a ser conhecida como Paulinha de Xangô. Hoje é iaebé, ou "a mãe que toma conta da casa", importante função no candomblé. Noam Moreira, 14 anos, é filho de Oxalá e ogan do Ile Omiojuaro, em Miguel Couto. Michele, 15 anos e Alessandra dos Santos, 11, anos (os nomes dessas irmãs são fictícios*), são equedes (cuidam dos orixás em terra), no Axé Opó Afonjá, em Coelho da Rocha, todos na Baixada Fluminense, periferia do Rio de Janeiro. Em toda comunidade-terreiro existem diversas crianças; a maioria é levada pelos pais ou responsável e, assim como os adultos, muitas são iniciadas, desempenham funções importantes, ocupam cargos na hierarquia do culto e manifestam orgulho de sua fé.


O Orixá decide - "Aprendi olhando", dizia Ricardo Nery ainda aos quatro anos, e que sempre bateu com incrível habilidade vários tipos de atabaques. Ricardo também ensina que é o orixá quem determina a função que a pessoa terá na religião. "Ou ele mostra no jogo de búzios ou desce no terreiro, durante uma festa para dizer seu destino no culto. O meu foi ser ogan. Não viro no santo. Tenho de conhecer os toques do candomblé para chamar os orixás. São muitos toques, mas nunca tive dificuldade", revela. E nunca teve mesmo. "Já aos dois anos ele tocava até adormecer e, quando alguém o levava para a cama, despertava e voltava correndo", confirma a orgulhosa avó, Mãe Palmira de Iansã. Amigos desde crianças, Ricardo e Paulinha de Xangô cresceram no mesmo terreiro e contam que a diversão predileta de ambos quando pequenos era "brincar de macumba". Já Paulinha "vira" no santo, desde os 14 anos. "Quando eu era pequena não virava porque tinha medo de morrer se deixasse Xangô entrar em mim. Depois abri espaço para ele e perdi o medo. Hoje, quando incorporo, ando pelo terreiro e Xangô também anda. Danço eu, dança Xangô, mas sei que é Xangô dentro de mim que me movimenta", explica Paulinha.


Filha de Iemanjá, orixá das águas do mar, Joyce dos Santos atualmente tem 21 anos, fez o santo com seis e sete anos e depois realizou sua "confirmação". Passou a ser ebome, o que significa que, se quisesse, desde os 13 anos já podia ser mãe-de-santo e abrir seu próprio terreiro. "Mas não é só fazer a obrigação dos sete anos que importa. O que vale é a vivência, e isso só vem com muito tempo na religião", diz Joyce, que também recebe Oxum, orixá das águas dos rios. "Desde criança era assim. Quando estou com Iemanjá sinto um calor intenso, terrível e parece que o chão vai se abrir. Quando é Oxum eu choro o tempo inteiro. Na hora da incorporação as duas brigam pela minha cabeça, mas quase sempre Iemanjá ganha", afirma.


Quizilas - Adulto ou criança, todo iniciado (feito no santo) convive com as quizilas (èèwó), que são certas proibições determinadas pelo orixá, "dono da cabeça" do filho ou filha-de-santo. Joyce, por exemplo, não pode comer peixe de pele nem lula. "Me empola toda, é quizila de Iemanjá. Se desobedecer minha vida anda para trás", garante. Já Ricardo não pode comer abóbora ou melão porque Iansã não gosta. Mas isso nunca foi complicado para ele. "Eu mesmo não gosto de abóbora ou melão. O problema é que as quizilas também se referem ao que podemos ou não vestir. Adoro rock, mas não posso usar roupa preta, nem camisa com aquelas caveiras porque tem quizila com o santo. Se usar, algo de ruim pode me acontecer", revela o adolescente que traz dois furos em cada orelha. Mas e quanto aos brincos, será que tem quizila com santo? "Com santo não", diz Ricardo. "A quizila dos brincos é com a minha avó. Tatuagem também quero fazer, mas não posso, tem quizila com ela", brinca o ogan.


Preconceitos - Falar com orgulho do candomblé às vezes se limita aos muros do terreiro. A maioria desses adolescentes já foi ou continua sendo vítima de preconceitos. "Quando eu era pequeno uma professora me chamou de filho do Diabo", lamenta Ricardo. O pior, contudo, começou em 1993, quando a Editora Gráfica Universal, do Grupo Universal do Reino de Deus, comprou as fotos de Paulinha, Ricardo, e de uma outra criança de candomblé que foram personagens de matéria publicada em um jornal carioca, em 1992.

As fotos, conseguidas eticamente e com o consentimento das famílias das crianças, passaram a ser da agência do jornal carioca e, vendidas, foram usadas de maneira depreciativa no jornal Folha Universal. Não satisfeito, três anos depois, o bispo Edir Macedo publica a 13a edição (1996) do livro "Orixás, Caboclos e Guias - Deuses ou Demônios" (o Ministério Público Federal da Bahia entrou com Ação Civil Pública para pedir a suspensão da venda dessa obra). Na tiragem de 50 mil exemplares, outra vez as fotos de Paula e Ricardo aparecem, agora sob a legenda: "Essas crianças, por terem sido envolvidas com orixás, certamente não terão boas notas na escola e serão filhos-problemas na adolescência".


"Aí foi demais, todos nós sofremos muito", afirma Mãe Palmira, que processou a editora. "As pessoas nos apontavam na rua e nos chamavam de macumbeiro, mas de forma ruim, depreciativa", diz Paulinha de Xangô. "No terreiro em que me iniciei, em Jacarepaguá, fiz as curas, aquelas marquinhas no ombro. Nunca fui com camiseta de manga curta para a escola para não deixar aparecer. Também nunca fui com os colares, tenho vergonha", lamenta Joyce de Iemanjá. As irmãs Michele e Alessandra, do Axé Opó Afonjá, chegaram a freqüentar grupos jovens católicos e até fizeram Primeira Comunhão para se sentirem mais aceitas e escapar do preconceito. "Eu amo os orixás e amo minha religião. O que eu não entendo é que, se podemos respeitar a cultura dos outros, por que não podem respeitar a nossa?", questiona Ricardo Nery.


Lei de ensino religioso pode agravar preconceito

O problema da discriminação sofrida pelas religiões afro-descendentes é antigo e a implantação da Lei 3.459, em setembro de 2000, que estabeleceu o ensino religioso confessional na rede estadual do Rio de Janeiro, não ajuda a diminuí-lo. De acordo com Valéria Gomes, coordenadora de ensino religioso do Rio, dos 500 professores de ensino religioso aprovados no concurso realizado em janeiro de 2004, 68,2% são católicos, seguidos de 26,31% evangélicos (de diversas designações) e 5,26% de "outras religiões". Neste último grupo estão professores de umbanda (com cinco contratações); o espiritismo segundo Alan Kardek (três), a Igreja Messiânica (três) e um professor mórmon. A secretaria informou que nenhum professor de candomblé foi contratado porque não há registro de alunos que praticam candomblé.


Separados por credo - A meta, segundo Valéria, não é discriminar. "Queremos que professores católicos ensinem a alunos católicos e evangélicos a evangélicos, por exemplo. Mas as turmas ainda não estão separadas por credos; enquanto isso, nosso objetivo é passar valores", explica. Contudo, de 12 professores de ensino religioso entrevistados, nove revelam utilizar trechos da bíblia que sejam comuns para católicos e evangélicos no conteúdo pedagógico de sua disciplina. Muitos utilizam textos do padre Marcelo Rossi. Uma educadora entrevistada nega que o objetivo da lei seja converter alunos, mas revela: "No ano passado eu tinha uns oito alunos que eram ogans, mas acabaram entendendo que estavam errados e hoje não são mais", comemora. Os professores entrevistados também afirmam que, apesar da matrícula nesta disciplina ser facultativa, como as escolas não conseguem elaborar outras atividades para os alunos que não queiram cursá-la, a freqüência é quase total.


Críticas - Para o deputado estadual Carlos Minc (PV-RJ), a Lei do Ensino Religioso no Rio é espantosa e só existe de maneira confessional neste estado. O parlamentar afirma que já imaginava que crianças e adolescentes de outras religiões, inclusive as de candomblé, seriam ainda mais discriminadas. "Entramos com ação no Supremo Tribunal Federal.

O próximo governo pode aprovar outra lei anulando a atual. Todos estes professores são licenciados para ensinarem outras disciplinas do currículo e não serão prejudicados".

Para Minc, o Sindicato Estadual de Profissionais da Educação (SEPE) e todas as faculdades de educação deveriam "comprar essa briga" e trabalhar para que os professores sejam mais pluralistas.


A lei também não agradou a Palmira de Iansã e Beata de Yemanjá, conhecidas e respeitadas Mães-de-santo da Baixada Fluminense. "Se a escola quer se meter com religião, ela deve ensinar a história de todas as religiões e não discriminar ninguém", afirma Mãe Palmira.

 "Se a escola discrimina os alunos de candomblé, a escola não merece nenhum respeito", sentencia Beata de Yemanjá.


* Stela Guedes Caputo é jornalista e Doutora em Educação pela PUC-Rio. Defendeu tese com o tema "Educação nos terreiros e como a escola se relaciona com crianças que praticam candomblé", em julho de 2005.

Os nomes dos professores de ensino religioso foram preservados.

Os nomes das irmãs Michele e Alessandra são fictícios porque elas ocultam sua religião na escola para não serem discriminadas.




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