texto de Marco Aurélio Luz, extraído do livro Princesas Africanas, disponível para download no site da FRECAB.
A tradição nagô-yorubá ocupa papel
destacado na cultura brasileira. Para uma adequada aproximação e
entendimento da cultura africano-brasileira, temos de estar preparados
para uma leitura de símbolos. Para tanto, é preciso compreender o valor
da estética como parte intrínseca de uma comunicação de participação
direta, interdinâmica e intergrupal, que exige a presença de seus
integrantes num aqui e agora, e a maneira como a arte procede a
elaboração de conhecimentos.
A noção de odara, em língua yorubá expressa uma dimensão em que o bom e o belo são uma coisa só, o técnico e o estético são inseparáveis.
Na civilização tradicional africana,
especificamente na cultura nagô, o sagrado está integrado nas ações
cotidianas. A religião acompanha a vida; o aiyê, esse mundo, e o orun, o além, estão inter-relacionados pela noção de axé,
força circulante entre esses mundos de que trata a liturgia e que
movimenta a existência e garante o existir. A forma de vinculação
humana, a sociabilidade nesse contexto, se constitui pela linguagem
estética que o mais das vezes magnifica o sagrado, pois a religião, o religare, a pulsão ou o desejo de estar juntos, fortalecidos num corpo comunitário, forma o egbe,
a comunidade envolvida pelos valores sagrados transcendentes. Assim,
nesse contexto os códigos e repertórios compõem e expressam uma visão
sagrada de mundo.
Por exemplo, quando nas relações hierárquicas o mais novo pede bênção ao mais antigo, ele diz “otun ba mi”, o mais antigo pode responder, “eleda mi gbe iin o”, o meu orixá criador o proteja. Portanto, o poder individual do mais antigo, o seu axé, caracteriza-se por sua dimensão sagrada, transcendente, o seu eleda, fortalecido ao longo de sua trajetória sacerdotal.
Da mesma forma que a literatura — os itans, as histórias ou contos em geral pertencem ao sacerdócio oracular de ifá, ou erindinlogun; os orikis, poemas, e korin,
as cantigas, são combinação de versos com música percussiva em que os
toques ou ritmos classificam, significam e acompanham as ações rituais
—, a dança é composta de gestos que simbolizam os poderes e princípios
das entidades, bem como seus trajes, paramentos e emblemas. A culinária
litúrgica também simboliza as características de determinada entidade,
executada através da iya bassê, sacerdotisa que está preparada pela elaboração da comida ritual, iyanlé,
conforme as regras da tradição. Nesse contexto, cor, odor, sabor,
textura e composição ou apresentação simbolizam; e, para apreender os
significados, são chamados a atuar os cinco sentidos, tato, paladar,
olfato, visão e audição.
Na tradição religiosa nagô dois cultos
se complementam: o culto aos ancestres e ancestrais, e o culto aos
orixás, as forças cósmicas que governam a natureza do universo no qual
nos integramos.
Esculturas
Já houve quem aludisse à cultura tradicional africana como “floresta dos símbolos”. A própria noção de floresta, ibo,
se refere a um espaço sagrado onde habitam espíritos, inclusive
ancestrais, e onde ocorrem diversos ritos iniciáticos. As esculturas
obedecem às delimitações dos valores estéticos da arte, isto é, elas são
símbolos, representação de idéias, noções ou conceitos da tradição
cultural.
Elas estão presentes na decoração de
palácios ou fazem parte das instituições religiosas. Nesse caso elas têm
uma dimensão transcendente, pois se destacam do plano material para
atuar no espiritual. As esculturas podem estar presentes nos altares, ojubo, ou como parte dos paramentos que compõem as entidades nos festivais rituais.
A leitura dos símbolos se caracteriza
por vários planos. O primeiro, que já significa, diz respeito à
qualidade da matéria, ou substância, da escultura. Nós nos referiremos à
madeira, que faz parte do atributo de determinados orixás. Basta dizer
que, de acordo com a tradição, para cada ser humano que criava, Oxalá,
orixá que representa o princípio masculino mais antigo da criação,
criava uma árvore. Assim as árvores estão relacionadas à ancestralidade
masculina.
As árvores ocupam uma presença
importante no mundo sagrado: ramos e folhas podem representar filhos,
descendência, ancestralidade masculina que garante a continuidade da
vida por infindas gerações. Algumas são relacionadas ao culto aos
ancestrais masculinos, e também estão presentes na simbologia do orixá Xangô.
As esculturas componentes do panteão do orixá Xangô são de madeira. Ele é o alaafin, o senhor do palácio, o rei, patrono das dinastias, da realeza de Oyó, capital política da tradição, que protege as comunidades e garante sua expansão, com muitos filhos em sucessivas gerações.
Convém dizer ainda da importância do
grupo de escultores. Alguns são de famílias dedicadas a essa atividade
por várias gerações e, portanto, muito respeitados nas sociedades
tradicionais, não só pela técnica e estética adquirida ao longo dos
anos, mas também pelo conhecimento da simbologia.
Iya Ibeji, a Mãe dos Gêmeos e o poder feminino
Os
poderes e princípios femininos na tradição cultural nagô só se realizam
pelo processo de interação e complementação com os princípios
masculinos. Devemos acrescentar que o inverso também ocorre.
O mistério da continuidade ininterrupta da vida nesse mundo se processa pela concepção e gestação.
Os Ibeji, os gêmeos, literalmente nascidos dois, ibi+eji,
e mais os da gestação subseqüente, denominados Taiyo ou Tayewo, Kehinde
e Dou ou Eta-Òkò, fazem parte da constelação de entidades do panteão do
orixá Xangô e de sua relação com o orixá Oxum.
Oxum é Iya mi akoko, Mãe ancestral suprema, que representa os poderes de fecundidade e fertilidade feminina.
Na escultura Iya Ibeji, temos uma
recriação da simbologia da tradição referente ao mistério e poder
feminino que, através da maternidade, garantem a continuidade da vida. A
escultura de nossa autoria destaca a imagem de uma jovem mãe sentada,
com duas crianças apoiadas em suas coxas, uma à direita, outra à
esquerda. Seus braços se estendem às crianças em atitude de apoio. As
crianças, por sua vez — uma com a mão direita, outra com a mão esquerda —
seguram os seios pronunciados, representação da propriedade do poder
feminino de transformar seu corpo em alimento e alento aos
recém-nascidos. Com a outra mão, cada criança segura um abebe,
emblema em forma ovalada, parecendo um leque com espelho, simbolizando a
vaidade feminina, mas que expressa, sobretudo, o poder de fertilidade
feminina, útero, ventre fecundado.
Outro abebe se destaca também na imagem esculpida de um ovoventre fecundado, caracterizando a continuidade das gestações. Contornando esse abebe,
pequenas partículas de luminescências douradas aludem ao ouro, metal de
infinda durabilidade, e de cor característica da entidade.
Abaixo, contornando a escultura, a
imagem de águas correntes, símbolo do poder da fertilidade feminina,
alusão ao corrimento sanguíneo dos ciclos menstruais que conotam o
insondável mistério da feminilidade.
A audição do som ritmado das águas correntes indica que Oxum é a entidade patrona da música. O ijexá é
seu ritmo por excelência. Uma célebre história narra a competição entre
Oxum e Obá pala predileção de Xangô, envolvendo a orelha como símbolo
de feminilidade, aqui combinada com a culinária. Na escultura, brincos
pendentes nas orelhas ressaltam esse aspecto. Na parte de trás da
escultura, destaca-se a figura de dois pássaros. Os pássaros e os
grandes pássaros, assim como os peixes, fazem parte da simbologia das
Iya-mi, nossas mães ancestrais. Penas ou escamas representam filhos
descendentes desprendidos do corpo do pássaro mítico.
Uma história conta que no início dos tempos, Olorun,
Deus, enviou sete pássaros ao mundo. Três pousaram na árvore do bem,
três na árvore do mal, e um costuma voar de uma para outra árvore.
Na escultura, os pássaros ancestrais voltados para o poente são guardiões do mistério e do poder feminino.
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Marco Aurélio Luz é
Doutor em Comunicação, escultor e escritor, autor do livro “Agadá:
dinâmica da civilização africana brasileira”, dentre outros.
*imagens retiradas do livro Princesas Africanas