XANGÔ O DEUS DA JUSTIÇA !
Familiares da ialorixá Mãe Gilda são vitoriosos e podem ganhar R$ 1,3 milhão em decisão da Justiça já considerada histórica
A decisão do juiz Clésio Rômulo Carrilho Rosa, da 17ª Vara Cível de Salvador tem tudo para fazer história no combate à intolerância religiosa. No dia 13 de janeiro deste ano, o magistrado assinou sentença que obriga a Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) a indenizar os familiares da ialorixá Gildásia dos Santos e Santos, a Mãe Gilda, em pouco mais de R$ 1,3 milhão, por danos morais. Em outubro de 1999, o jornal da igreja, Folha Universal, publicou uma foto de mãe Gilda numa matéria com o título “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”. A Iurd tem até o dia 30 de março para recorrer da decisão.
Além do pagamento da indenização, o juiz determina que a Iurd, que foi acionada conjuntamente com a Editora Gráfica Universal, publique na primeira página da Folha Universal e na capa do seu encarte Folha Dois o teor da decisão por dois números consecutivos. O descumprimento da decisão rende multa diária de R$ 5 mil.
A decisão é de primeira instância e ainda cabe recurso dos réus, mas já é considerada um grande passo na luta do culto africano contra a intolerância religiosa que vem perseguindo o candomblé e a umbanda nos últimos anos, inclusive, na Bahia, chamada de berço da cultura negra no Brasil.
“Essa não é uma vitória apenas da comunidade do Terreiro Axé Abassá de Ogum, mas de todo o povo do candomblé que sofre perseguição religiosa. Foram quatro anos de espera, de luta”, desabafa a ialorixá Jaciara Ribeiro dos Santos, filha e sucessora de Mãe Gilda no comando da Casa, que fica em Itapuã.
A primeira vitória no processo tem toda uma simbologia para a comunidade do Axé Abassá, pois eles entendem o ataque como estritamente ligado à perda da sua sacerdotisa. Três meses depois de ter sua foto divulgada pelo jornal evangélico, Mãe Gilda morreu por conta de um infarto fulminante.
“ Minha mãe era hipertensa, mas tinha uma vida saudável, se cuidava, fazia hidroginástica. Depois da matéria no jornal da Universal, ela ficou extremamente deprimida, pois muita gente chegou até a imaginar, ao ver o jornal, que ela tinha se convertido à Igreja Universal. Foi muito desgastante. Ela assinou a procuração para que os advogados entrassem com o processo no dia 20 de janeiro de 2000 e morreu no dia seguinte”, relata Jaciara.
Um projeto de autoria da vereadora de Salvador, Olívia Santana (PCdoB), transformou o dia 21 de janeiro, data da morte de Mãe Gilda, em Dia do Combate à Intolerância Religiosa.
IMPEACHMENT – A foto utilizada pela Iurd no jornal é uma reprodução da que ilustrou a matéria da revista Veja, de 26 de setembro de 1992, sobre manifestações pelo impeachment do então presidente Fernando Collor. Na matéria da Veja, Mãe Gilda aparece com suas roupas de sacerdotisa, tendo aos pés uma oferenda pelo afastamento do presidente.
A imagem de Mãe Gilda foi reproduzida numa matéria do jornal Folha Universal da Iurd, edição de 26 de setembro a 2 de outubro de 1999, rodeada por recortes que oferecem serviços de ajuda espiritual para resolver problemas. O texto diz que estava crescendo no Brasil um mercado de enganação.
Na foto utilizada pelo informativo, Mãe Gilda aparece com uma tarja preta nos olhos. A capa do jornal traz informações de que a sua circulação é nacional, com tiragem de mais de 1 milhão e 372 mil exemplares, exatamente o valor da indenização em reais que agora a sentença judicial obriga a Universal a pagar aos familiares de Mãe Gilda.
“Nós tínhamos em casa guardada a reportagem da Veja. Um dia andando aqui em Itapuã eu recebo o jornal da Universal e dou com a mesma foto numa reportagem extremamente ofensiva. Dois meses antes o terreiro já havia sido invadido por membros de uma outra igreja evangélica, ou seja, foi o segundo ataque consecutivo que minha mãe sofreu por causa da sua crença”, narra Jaciara. A partir deste dia Jaciara apoiou a mãe a mover uma ação judicial. Com a morte de Mãe Gilda ela assumiu o comando da batalha.
“Corri atrás, busquei apoio e consegui a ajuda valiosa do pessoal da ONG Koinonia, que nos deu toda a assessoria jurídica. Chegamos a ir até Brasília, numa caravana que reuniu mais de 400 pessoas. Fomos recebidos pelo presidente Lula e entregamos a ele um dossiê sobre a intolerância religiosa que volta e meia atinge um terreiro aqui na Bahia. Agora finalmente ganhamos a primeira batalha”, relata Jaciara.
A ONG que deu a assessoria para o processo, a Koinonia, palavra que significa “comunhão”, foi criada há dez anos e trabalha em parceria com a Associação dos Advogados dos Trabalhadores Rurais (AATR-BA). “O trabalho com os terreiros começou na área ambiental e daí foi percebida a necessidade que eles tinham no campo jurídico, para regularização de áreas, organização jurídica para os seus trabalhos sociais”, explica a advogada Helga de Almeida.
Religião
Sentença judicial é pioneira na Bahia
A sentença, que dá ganho de causa aos herdeiros de Mãe Gilda no processo por danos morais movido contra a Iurd, faz história na Bahia como pioneira num caso que remete à intolerância religiosa. No Brasil, já foi deferida uma sentença para um fato semelhante, mas em valores muito menores, no interior de São Paulo.
Nos últimos anos tem crescido em Salvador o número de ataques de algumas correntes evangélicas ao culto afro. Curioso é que a própria família de Mãe Gilda é um exemplo de convivência pacífica entre crenças religiosas diferentes. Dos seus seis filhos, dois são membros da Igreja Batista.
“E esses meus dois irmãos têm me dado todo o apoio. Eles fizeram uma opção diferente, mas nem por isso desrespeitam a crença dos outros. A indenização não paga a vida de minha mãe, não é a questão principal, mas com certeza será usada em favor da causa porque temos lutado todos esses anos. A reparação da imagem de minha mãe é a reparação de uma série de outras agressões contra os afro-brasileiros e uma advertência a que evitemos a intolerância e busquemos a paz, o direito e a fraternidade”, destaca Jaciara.
Para o ogan e chefe do Departamento de Antropologia da Ufba, Ordep Serra, a sentença judicial é para ser comemorada em larga escala. “Dificilmente essa sentença será mudada, o que é um grande ganho para a Justiça da Bahia, pois um caso como esse afronta todos os brasileiros e não só os baianos. A intolerância religiosa no Brasil tem que ser freada, pois é tão perigosa como o crime organizado”, salienta o professor.
De acordo com Ordep, os ataques ao chamado povo-de-santo é uma prática claramente racista e que vai de encontro ao princípio constitucional da liberdade religiosa.
“Esses ataques vêm de empresas eclesiais que fazem do ataque aos cultos afros uma auto propaganda explorando o racismo difuso na sociedade brasileira. É uma estratégia em busca de adeptos, dinheiro e poder”, aponta o professor.
O promotor de justiça Lidivaldo Reaiche Raimundo Brito, titular da Promotoria de Cidadania e Combate ao Racismo, ressalta a decisão judicial como uma importante vitória contra a discriminação religiosa. “O Ministério Público da Bahia já moveu seis processos contra pessoas que cometem discriminação religiosa”, relata o promotor.
Dentre os casos que o MP apura estão citados pastores de outras correntes evangélicas, inclusive os que invadiram o terreiro de Mãe Gilda e também um padre católico. A Iurd já foi acionada pela Promotoria devido a produção do Programa Ponto de Luz, onde eram feitos ataques aos cultos afros. “Conseguimos, inclusive, que a Justiça ordenasse a suspensão dos ataques e a mudança do horário do programa para as 23 horas”, aponta Brito.
NADA A DECLARAR – A TARDE entrou em contato com o departamento jurídico da Iurd em São Paulo. A informação lá recebida é que, como não dispõem de assessoria de imprensa, eles não estavam autorizados a dar qualquer declaração sobre o caso. O telefone da Editora Gráfica Universal é desautorizado a ser fornecido pelo serviço de informações da empresa telefônica paulista.
Religião
Entenda o caso
Em 1999, a edição nº 39 da Folha Universal (26 de setembro a 2 de outubro) traz uma matéria com o título “Macumbeiros Charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”. A reportagem traz uma reprodução de uma imagem de Gildásia dos Santos e Santos, a Mãe Gilda, ialorixá do terreiro Axé Abassá de Ogum. A foto havia sido publicada pela revista Veja em 1992, numa matéria sobre as manifestações a favor do impeachment do então presidente Collor de Mello. A imagem da Folha Universal trazia uma taxa preta sob os olhos de Mãe Gilda.
Em 21 de janeiro de 2000, um dia após assinar a procuração para que os advogados acionassem a Igreja Universal por danos morais e à imagem, Mãe Gilda morre devido a um infarto fulminante. O processo é levado à frente por sua filha e sucessora no comando do terreiro, a ialorixá Jaciara Ribeiro.
Em 13 de janeiro de 2004, o juiz Clésio Rômulo Carrilho Rosa assina sentença determinando que a Igreja Universal e a editora da Folha Universal, a Editora Gráfica Universal, pague indenização à família de Mãe Gilda no valor de R$ 1.372.000,00 (Um milhão, trezentos e setenta e dois mil reais), além de publicar a sentença na capa e encarte do jornal por duas tiragens consecutivas. A decisão ainda cabe recurso.
Associação de Advogados
de Trabalhadores Rurais
no Estado da Bahia
A Tarde, 20 de março de 2003 - Religião
CLEIDIANA RAMOS
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