Mãe Stella ao lado do reitor da Uneb, Lourisvaldo Valentim na cerimônia.
“Se nós não preservarmos a natureza viva, termina tudo” - Mãe Stella
(Entrevista concedida a Clécio Max - Jornal A Tarde)
Hoje decidi colocar aqui esta entrevista que foi concedida há doze anos atrás, pela zeladora do Ilê Axé Opô Afonjá, em São Gonçalo do Retiro - Maria Stella de Azevedo Santos - Iya Ode Kayode - Stella de Oxossi, ou Mãe Stella, como é mais conhecida e carinhosamente chamada pelos filhos, filhas-de-santo e amigos.
Na época ela completava 70 anos. A razão desta minha decisão prende-se com a actualidade que as suas palavras e os seus princípios ainda têm hoje em dia no Mundo do Candomblé. É também uma pequena e modesta homenagem àquela que eu considero uma das mais importantes Yalorixás de sempre na Bahia. Bisneta de Konigbágbé, o inesquecível, africano de Abanigéria, e dos Azevedo de Portugal, Mãe Stella nasceu em Salvador e ingressou no Candomblé aos 13 anos, tendo sido iniciada pelas mãos da tia Arcanja Soares de Azevedo. Aos 49 anos, assumiu o comando do Ilé Axé Opô Afonjá, substituindo Mãe Ondina. Foi a mais jovem mãe-de-santo a assumir o cargo, na Bahia. Mãe Stella deu continuidade à tradição da força do matriarcado no Opô Afonjá, onde as Yalorixás sempre foram figuras de destaque no culto afro-brasileiro. Formada em enfermagem pela antiga Escola de Saúde Pública da Bahia, está aposentada da profissão e dedica seu tempo ao terreiro. Foi a primeira Yalorixá a escrever livros e artigos sobre a cultura, as tradições e a essência da sua religião. “A história é nossa e nós temos que escrevê-la”, afirma Mãe Stella, que gerou polémica por se colocar contrária à prática do sincretismo religioso. Em conversa com o Lazer & Informação, a Yalorixá explica por que adoptou tal posição e fala sobre o relacionamento do Candomblé com a Igreja Católica, dentre outros assuntos.
Clécio Max - A Senhora é tida como a Yalorixá mais politizada que já reinou no Ilé Axé Opô Afonjá e gerou grande polémica quando se colocou contra o sincretismo, em 1983, durante a II Conferência Mundial da Tradição dos Orixás,em Salvador. O que mudou a partir daquele ano? Suas colocações ainda repercutem, especialmente no Candomblé?
Mãe Stella - Ainda repercutem, de modo geral. Mas aqui em casa mudou muita coisa. Nós conseguimos nos tornar independentes e colocar cada religião em seu lugar. A católica num lado, protestante em outro, e o orixá também no seu devido lugar.
C.M. - De que forma a prática do sincretismo prejudica o Candomblé?
Mãe Stella - O sincretismo é a fusão de duas religiões, uma mistura sem base que não corresponde a nada. Então não adianta dizer que tal caboclo corresponde a um santo, que tal orixá a outro santo, se não existe base que fundamente isso. As energias são diferentes. Nós nos apegamos muito ao sinal das energias, uma vez que cultuamos muito as forças elementais.
C.M. - Na época, a Senhora falou que plantava uma semente. No Ilé Axé Opô Afonjá ela vingou? E nos outros terreiros, o que aconteceu?
Mãe Stella - Vingou sim. Em outros terreiros isso também aconteceu, principalmente nos mais novos. Na verdade, eu acredito muito na juventude que sempre gosta de modificações, transformações, que na maioria das vezes são positivas. Daí eu acho que essa semente ainda está germinando em muitos outros terreiros, e tenho certeza que iremos colher bons frutos.
C.M. - Outra posição adoptada pela senhora, que também contou com o apoio de Yalorixás como Menininha do Gantois, Olga de Alaketo e Nicinha do Bogum, na mesma época, foi o combate à profanação do culto, criticando a exploração dos trajes, ornamentos e ritmos rituais do Candomblé durante o Carnaval de Salvador. Por quê?
Mãe Stella - O que se observava é que os espectáculos eram financiados por algumas pessoas que não tinham o mínimo conhecimento da pureza do Candomblé. Estavam fora da realidade e confundiam o Axé com plumas e paetês. Em 1993, voltei a defender, juntamente com representantes de outros terreiros, esta posição, quando surgiu a proposta de se utilizar o tema na decoração do Carnaval de Salvador.
C.M. - O sincretismo foi uma forma encontrada pelos escravos para desviar a atenção da Igreja, para evitar perseguições dos jesuítas e senhores de escravos, que eram contra a prática da religião que os negros trouxeram da Africa. O Candomblé também sofreu perseguição da Polícia.
Nos últimos anos, vem sendo atacado constantemente por integrantes de seitas protestantes.
Como a senhora encara esse tipo de ataque de pastores e bispos protestantes, que insistem em associar a imagem do demónio ao Candomblé?
Mãe Stella - Essa gente que faz isso, em princípio, é desinformação e não tem consciência do que seja a base de religião nenhuma. Porque, quando você tem essa consciência e valoriza a sua religião, não precisa ficar atacando as outras. Eu até tenho pena deles, porque estão num desespero de causa muito grande.
C.M. - No Candomblé, ao contrário de outras religiões, a figura da mulher é predominante. Por que isso acontece?
Mãe Stella - É o matriarcado. Isso se deve ao fato de que, quando o Candomblé chegou no Brasil, essa prática que nós conhecemos teve início com três senhoras: Iya Detá, Iya Kala e Iya Naso, que fundaram o primeiro Candomblé de que se tem conhecimento, a actual Casa Branca, que funcionava na Barroquinha. Isso não quer dizer que o homem não tenha capacidade para ser um Babalorixá, é que a mulher é a figura da mãe, e, quando as pessoas entram num Candomblé, procuram um aconchego maior. A mulher tem a capacidade de oferecer mais carinho. É apenas isso. De repente tem o fato de as mulheres seguirem a tradição africana de que, na casa de Xangô ou no culto a Xangô, ele é o chefe, mas as mulheres predominam porque têm o título de Iya Naso: a mulher é o ayabá principal da casa de Xangô e é ela quem manda. Mas ambos têm a mesma capacidade.
C.M. - Mas também existem cerimónias que só podem ser praticadas por homens, a exemplo do culto aos Eguns (espíritos dos mortos), não é?
Mãe Stella - Aí já é outro departamento e não tem nada a ver com o orixá. Egum é culto aos ancestrais, aos mortos. Uma comunidade na qual só os homens têm um maior poder. Nessa ocasião só tem uma mulher que pode participar, que seria a Iya Gã.
C.M. - Qual a importância da preservação das reservas florestais para o Candomblé?
Mãe Stella - O material principal para a prática do Candomblé são as folhas. Se nós não preservarmos a natureza viva, termina tudo. Sem folha não há ritual, não há orixá. Para se fazer qualquer ritual, o primeiro elemento a ser utilizado são as folhas sagradas.
C.M. - O que é o “Projecto das Folhas Sagradas”?
Mãe Stella - É um projecto oriundo da Secretaria Municipal do Meio Ambiente, e o Secretário Juca Ferreira tem sido muito dinâmico nesse aspecto, não só no Ilé Axé Opô Afonjá como em outros terreiros. Ele tem lutado muito em prol da preservação da natureza, e o lugar onde mais se cultiva as folhas sagradas é num terreiro de Candomblé. O terreiro participa do projecto orientando em alguns aspectos e apresentando ideias.
C.M. - Em visita a Salvador, o Rei de Ketu, Ade Tutu, propôs a unificação dos cultos afros como forma de preservá-los. A senhora concorda com essa ideia?
Mãe Stella - Se todos os cultos são afros, não tem por que separá-los, independentemente da nação. Em algumas nações, os rituais são diferentes, mas a essência é a mesma. Hoje, as casas são muito amigas, se visitam e se ajudam mutuamente.
C.M. - Como anda a relação entre o Candomblé e a Igreja Católica?
Mãe Stella - O que nós pregamos sempre é o respeito mútuo. O importante é que não existam agressões. O entrosamento não tem muita importância, porque são religiões paralelas. O importante, volto a afirmar, é que exista o respeito. Existem pessoas que frequentam o terreiro e que vão à Igreja, e isso é normal. Quando falei da questão do sincretismo, me referia ao fato de não se misturar as obrigações. Como, por exemplo, fazer sua obrigação para o orixá e ir à Igreja porque sincretizou o orixá com um santo. Não sou contra a Igreja Católica, e sim contra o sincretismo. A nossa maior preocupação é que o ser humano se sinta bem, se realize. Se isso acontece frequentando as duas crenças, melhor para ele.
C.M. - E com relação ao terreiro do Ilé Axé Opô Afonjá, quais os planos da senhora?
Mãe Stella - Eu tenho tantos planos para o terreiro que eu morro, meus filhos crescem, os netos ficam adultos e, se eles forem realizados, serei o ancestral mais feliz do mundo. Um deles é conseguir, cada vez mais, conciliar o culto, a religião, com a educação e com a independência. Outros, é que cada omo orixá tenha a sua profissão, seja uma pessoa instruída, porque religião não é profissão e de religião não se vive. Ela é para se praticar. Outro plano é conseguir a integração real do Candomblé, com todo o povo do Candomblé entendendo o que é comunidade, unidade e praticando a religião por fé e vocação, que não queira aproveitar o orixá para acções imediatistas.
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