O que mais chama a atenção é a universal proibição do sangue.
“O sangue”, escreve Lépine (1982, p. 33), “é um poderoso veículo do axé, que deverá restituir aos orixás a força que despendem neste mundo e à qual devemos a existência”.
Na matança, sangra-se o animal até a última gota.
É através do sangue que, na cerimónia de assentamento, se estabelece a ligação entre a cabeça do iniciado, partes do seu corpo, e a pedra na qual o orixá se faz presente, do mesmo modo que a água, fonte e origem da vida, é repetidamente vertida em todas as cerimónias propiciatórias e iniciáticas, por representar a fluida substancia de toda criação, o derramamento do sangue dos animais de dois ou quatro pés expressa a própria essência do sacrifício, pois junto com o sangue corre a vida.
A água é origem, o sangue, circulação.
As trocas reparadoras de axé incluem forçosamente, portanto, a realização do sacrifício.
Nessa perspectiva, fica obvia a necessidade de proibir-se a ingestão de sangue (sob qualquer forma que seja, e nisso podemos incluir os miúdos, a fressura, sangue “compactado”por assim dizer) aos filhos de tudo quanto é orixá.
É substancia por demais poderosa para ser ingerida em situações profanas.
Filho de santo jamais pode comer o que o santo dele come?
Ou pode?
em que circunstâncias?
Entre muitas, as respostas de S.M.E. são bastante esclarecedoras: “Tudo o que o orixá come faz bem ao filho, tanto que quando ele oferece a comida tem que comer junto, para que ele não se ofenda. Mas às vezes, fora do ilê orixá, é tabu“.
Ou seja, o filho deve e não deve comer.
Nessa informação, fica claro que a interdição está ligada à situação, ou melhor dizendo, parece que o próprio da proibição é delimitar dois espaços, rigorosamente separados, que o momento do ritual permite juntar, e até mesmo, tornar permeáveis.
É pela mediação do ritual, repetido inúmeras vezes no decorrer do tempo, que se abre o espaço sagrado.
Na vida cotidiana do filho de santo, é proibido desfrutar as mesmas comidas que alimentam o orixá. Se desobedecer, “faz mal”.
Na casa do orixá, a ingestão de comidas votivas é não apenas permitida, mas sim obrigatória.
É imprescindível participar do banquete sagrado.
Se, naquele momento, o filho não comer do mesmo material de que sua cabeça é feita, o orixá oferecer-se-á.
Ou, como já ouvi dizer, na hora da oferenda, “a gente precisa comer, que é para ele ver que não tem veneno”. esse comentário aparentemente jocoso é bastante elucidativo.
Não é somente o ilê orixá, espaço sagrado e portanto preservado, que garante a não nocividade da comida de santo para o iniciado, é também o adepto que, por sua vez, se torna fiador, junto ao orixá, da excelência da comida que lhe é oferecida.
Comer alimentos sagrados como bem sabiam os sacerdotes hebreus, é assegurar a sacralização do próprio corpo.
No ilê orixá, o iniciado participa do banquete dos deuses, nutre-se do mesmo material de que é feita a sua cabeça, reforça a sua identidade como parente de determinada divindade.
Fora do espaço sagrado, é-lhe proibido ingerir essas mesmas substâncias.
Mas o seu corpo também é um espaço, que pelo cumprimento dos preceitos é constantemente mantido em condições de se tornar receptáculo da divindade. Por isso tem de abster-se de ingerir comidas rejeitadas pelo seu orixá, e até mesmo aproximar-se delas.
Quebrar quizila, nessa perspectiva, é praticamente uma autodestruição.
Faz mal.
A pessoa adoece.
Mas, ao mesmo tempo, pode-se aplicar à construção do corpo a mesma visão dialéctica que se foi afirmado com tanta nitidez em relação à construção do mundo.
Aqui também a transgressão destrói e reforça limites, de modo realmente tangível, porque passam pelo corpo, e simbólico também, pois redundam na afirmação de identidade mítica.
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