CASA PODEROSA DOS FILHOS DE YEMANJÁ

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sexta-feira, 6 de maio de 2011

* FLORESTA DAS HARPIAS


FLORESTA DAS HARPIAS.
2º RECINTO, 7º CÍRCULO.
INFERNO, IN.




Um horizonte que some no infinito. Ainda ao longe começam a delinear-se, em contraste com a luminosidade – modesta – do céu, árvores secas, agrupadas, formando uma floresta que poderia ser encontrada em qualquer parte da Europa no inverno. Dois homens em pé no centro (para a esquerda de quem vê), parecem conversar. Tais descrições representam o aspecto figurativo do quadro, pois permanecem no sentido ontológico de suas formas: por exemplo, a representação do homem no quadro está em função de representar pura e simplesmente o homem, não foge ao seu significado universal. Sendo assim, tal informação chega ao receptor como “informação semântica”.


Mas basta atentarmos as figuras mais próximas (em transição para o 1º plano) que vemos os troncos secos das árvores re-configurarem seus traços duros e delinearem formas humanas, como que “plantadas” por toda a extensão do monte. Assim como à frente dos dois viajantes, recostado em uma pedra, encontra-se o que parece ser uma das “árvores-homem” recém formada. Temos então a junção de dois ícones para a construção de um novo signo, para o qual, como vemos, não se pode estabelecer um significado convencional. Requer, portanto, do espectador, um certo raciocínio para que a informação seja assimilada, pois se classifica como uma “informação estética”, fruto da criatividade e objetivos do autor da “obra fonte”.


A forma como a junção homem-árvore é retratada na imagem: posição retorcida dos corpos, próprio de uma árvore; a rigidez proposta pela matéria “madeira” – que é, por sua vez, fruto da criação do desenhista que ilustrou algo que fora criado primeiramente em forma de texto – causa uma sensação, que varia de receptor para receptor, mas é recebido, conscientemente ou inconscientemente, que tais corpos “construídos” na obra pictórica estão sofrendo, ou seja, a forma constrói-se como índice de sofrimento. Mesmo que a representação – por si só – não permita ao receptor saber a causa, ou contexto. Este é o caminho semiótico (primeiridade, secundidade, terceiridade) que a informação percorre: da sensação ao contexto.


Há, ainda, no canto inferior esquerdo (do receptor), uma criatura alada, que não poderia ser identificada sem um repertório adequado por parte do receptor, é “composta” de ícones universais: cabeça e colo de uma mulher; asas; garras. Mas não é criação do autor do texto, ou do desenhista e sim uma referência mitológica, e por isso, mais carregado de significado. Trata-se de uma Harpia, “que, em tempos remotos induziram os troianos a abandonarem as ilhas Estrófades, anunciando-lhes perigos os mais cruéis”*. Sem um repertório, o observador do desenho não identifica que a criatura no canto inferior esquerdo é uma Harpia, e assim, não há possibilidades de compreender que as formas homem-árvore presas ali estão sendo torturadas pelas Harpias. Portanto, a presença da criatura mitológica ali é de natureza estética. Ela não precisa estar dilacerando alguma das “árvores-homens”, basta estar representada no canto do quadro, para que o significado se estabeleça.


Se somente olharmos para a imagem, temos a primeiridade (sensação); secundidade (criação de imagens através do que foi colhido pelos sentidos – no caso visão – e confrontá-los com o repertório), mas se não se tem o “repertório”, fica-se no estranhamento, ou seja, não se é capaz de passar da secundidade. E até este ponto do texto tentou-se não se contextualizar, ao máximo possível, a imagem, justamente para se poder aferir estes aspectos pré-simbólicos.


Trata-se de uma das passagens da Divina Comédia, Dante Alighieri. Passagem na qual as personagens principais: Virgílio e o próprio Dante passam pela “floresta das Harpias” (segundo recinto do círculo sétimo do Inferno, onde são punidos aqueles que cometeram violência contra si. Os suicidas são transformados em árvores. Ficam neste estágio intermediário para sempre, enquanto as Harpias os atordoam com seus lancinantes gritos e os ferem constantemente). O desenho foi feito pelo pintor, escultor e desenhista francês Gustav Doré (1832 - 1883), que ficou famoso por desenhar obras como “Gargantua” de Rabelais, “Contos” de Balzac, “Dom Quixote” de Cervantes, “Paraíso Perdido” de Milton, “O Corvo” de Edgar Allan Poe, a “Bíblia”, e “A Divina Comédia” (obra em questão), de Dante Alighieri.


O que vemos então é um pintor francês representando, com base na arte de sua época, uma obra escrita quase 550 anos antes, por um italiano? Não, o que se vê na imagem analisada é uma ponte reflexiva entre duas épocas, duas sociedades, duas visões de mundo, duas visões religiosas e filosóficas, que transpõem o tempo e o espaço para coexistirem num mesmo ponto artístico, só que vindas de caminhos, não diferentes, mas complementares. Quando Doré desenha momentos da Divina Comédia ele não tem somente a consciência dos acontecimentos da narrativa escrita em 1320, mas teve acesso à situação artístico-econômica-social da época, assim como à vida de Dante Alighieri. Além de atestar a imortalidade da obra de Dante Alighieri, que me permito dizer, presente até hoje nos meandros da modernidade, seja no texto caótico das igrejas, nos pecados a nossa volta ou simplesmente nessa necessidade de sistematizar e catalogar tudo o que há em torno.


O T E X T O : (Trecho das páginas 56 e 57 da “Divina Comédia”, escrito por Dante Alighieri, traduzido por Fabio M. Alberti. editora Nova Cultura Ltda, São Paulo, SP)


Floresta das Harpias. 2º recinto, 7º círculo. Inferno:


“Nesso ainda não chegara à outra margem quando adentramos uma floresta de tal modo espessa que por trilha alguma era cortada. Sua fronde não era verde, mas escura; não eram lisos seus ramos, e sim nodosos, e deles pendiam, em lugar de frutos, farpas venenosas” (...)


“Vinha-me de todos os lados o aiar dolorido, mas eu não alcançava deslumbrar os que assim gritavam. Detive-me confuso e angustiado. Creio que o guia supôs estivesse eu acreditando procederem os gritos de tubas, que entre as árvores de nós se houvesse escondido. Ele observou: Se quebrares um ramo dessa dessa fronde verás que teu pensar não é correto”


“Arranquei então o ramo de um galho”(...)
 
 

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