Revista USP
versão ISSN 0103-9989
Rev. USP n.73 São Paulo maio 2007
LIVROS
Caminhando entre orixás
Heloisa Mara Luchesi Módolo
Psicóloga e mestre em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie
Candomblé e Umbanda: Caminhos da Devoção Brasileira, de Vagner Gonçalves da Silva, São Paulo, Selo Negro, 2005, 149 p.
Ao abrirmos o livro de Vagner Gonçalves da Silva, Candomblé e Umbanda: Caminhos da Devoção Brasileira, deparamos com um universo particular e curioso, anunciado logo na introdução, onde o autor declara seu intento de responder às seguintes perguntas: o que são e como se originaram as religiões afro-brasileiras? Quais as diferenças entre elas? Quem são as pessoas que as praticam? Além disso, propõe-se a fornecer uma visão histórica do desenvolvimento dessas religiões. O texto nos surpreende, pois, em cerca de 150 páginas - um livro relativamente pequeno - o pesquisador consegue fornecer rico e minucioso conteúdo sobre os dois modelos mais conhecidos de religião afro-brasileira: o candomblé e a umbanda.
Silva reconstitui o processo histórico sobre a formação das religiões afro-brasileiras, "o que não é uma tarefa fácil", logo nos previne. Tais religiões, originárias de segmentos marginalizados de nossa sociedade, os negros, os índios e os mais pobres, foram muito perseguidas. Os escassos documentos ou registros históricos sobre elas ou foram produzidos por órgãos e instituições que as combateram, ou estão nos relatos de viajantes estrangeiros que não as compreendiam, produzindo, por isso mesmo, material preconceituoso ou equivocado. Um desafio ao pesquisador!
Ao percorrer a trajetória histórica dessas religiões o estudioso encontra outras dificuldades em razão das suas características particulares: seus princípios doutrinários são passados oralmente já que não possuem livros sagrados; sua organização não é institucionalizada; os terreiros são autônomos, estabelecendo cada chefe sua própria doutrina. Assim, deparamos com uma história construída anonimamente, sem registro escrito.
Silva evidencia que, por apresentarem características muito diferentes do modelo oficial de religião dominante na sociedade brasileira, os cultos afro-brasileiros, tanto na sua prática (transes, sacrifícios de animais), quanto na sua ética, que não se baseia na visão maniqueísta, são associados a estereó-tipos como "primitivas" ou "atrasadas", o que o autor enfaticamente alerta não ser o ponto de vista adotado em seu estudo.
O livro é dividido em quatro capítulos. O primeiro nos apresenta a descrição do universo social e religioso do Brasil colonial, fundamentado no catolicismo português ao qual os índios e negros foram "convertidos". Desde a chegada dos portugueses os índios que aqui viviam foram sendo progressivamente dizimados. Os que sobreviveram foram catequizados pelos jesuítas, mas, mesmo aparentemente convertidos, não abandonavam totalmente suas tradições e crenças, associando seus deuses aos santos e ao deus católico. O autor descreve os ritos e o sincretismo indígenas, aparentemente controlado pela igreja oficial.
Para discutir as religiões africanas o autor examina preliminarmente o problema da origem dos negros que foram trazidos ao Brasil. A classificação dos escravos se dava pela localização dos portos em que embarcavam na África, embora tivessem, de fato, várias procedências. Silva aponta duas principais etnias africanas que aqui desembarcaram: os sudaneses e os bantos. Suas diferenças e semelhanças, os contatos entre si e com os brancos, sua condição como escravos e sua catequização são aspectos tratados pelo autor, que evidencia a ação do catolicismo no controle da religiosidade africana. Apesar de participarem de missas e festejos públicos, os negros eram sempre discriminados, cabendo-lhes nos autos e teatralizações religiosas os papéis de inimigos da fé, de mouros e pagãos. Como eram impedidos de participar das irmandades dos brancos, criaram irmandades próprias, como a de Nossa Senhora do Rosário, em que havia a devoção aos santos de cor preta. Também promoviam, através dessas mesmas irmandades, auxílio mútuo e obtinham benefícios, como enterro cristão e alforria, além de construírem igrejas para seus santos de devoção. Embora houvesse tentativa de controle por parte da igreja dominante, a cultura religiosa africana estava sempre presente nas suas cerimônias festivas.
Apesar da enorme separação social entre os brancos, negros e índios, o autor observa que as culturas religiosas ligadas a esses segmentos não ficaram impermeáveis umas às outras, mas na verdade se mesclaram e originaram novas formas: as religiões afro-brasileiras.
No segundo capítulo, "O Candomblé e a Reinvenção da África no Brasil", encontramos a descrição histórica das principais influências que a religião africana sofreu. Preocupa-se o autor em esclarecer que o calundu foi a forma urbana do culto africano até o século XVIII, antecedendo às casas de candomblé do século XIX (há relato sobre esses encontros, com muita música e dança, datado de 1728). Para Silva, esses cultos englobavam uma grande variedade de cerimônias, misturando elementos africanos, católicos e espíritas. Relatos da época sobre esses eventos revelam um enorme sincretismo. Com a Constituição brasileira de 1824 garantiu-se a liberdade de culto para todas as religiões, desde que as fachadas de seus templos não as identificassem. Com a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República, 1888 e 1889, respectivamente, instala-se uma nova ordem político-econômica no Brasil. O autor esclarece as muitas conseqüências e interferências desses fatos na vida e no mundo religioso do negro e prossegue descrevendo a organização social dos terreiros e de dois modelos de ritos, chamados de nações do candomblé: o rito jeje-nagô e o angola.
No terceiro capítulo, as influências e denominações regionais das religiões afro-brasileiras, a correspondência entre os deuses africanos e os santos católicos, bem como o calendário das festas religiosas sincréticas, foram organizados pelo autor em três quadros comparativos, destacando com clareza as principais características de um mundo religioso tão complexo. Ainda nesse capítulo, preocupado em detalhar o processo de associação sincrética entre deuses africanos e santos católicos, expõe em outros dois quadros o panteão das religiões afro-brasileiras, com a classificação dos orixás, especificando sua cor, oferenda alimentar, sacrifício animal e o dia de preferência.
O quarto e último capítulo evoca a importância dos movimentos artísticos - literatura, artes plásticas, música -, das teorias socioantropológicas e da historiografia brasileira na ratificação da visão depreciativa e preconceituosa da qual o índio e o negro foram historicamente vítimas ao evidenciar as suas contribuições para a formação da cultura brasileira. Além de atrair os intelectuais e estudiosos brasileiros, o candomblé também atraiu pesquisadores estrangeiros. Todos se encarregaram de divulgá-lo e muitos, encantados com a nova crença, a ele se converteram.
A participação mais efetiva dos brancos de classe média nos cultos que até então eram freqüentados predominantemente pelos negros e pobres provocou uma nova "mistura", principalmente dos kardecistas, que assistiram às suas práticas se mesclarem aos elementos das tradições religiosas afro-brasileiras, nascendo assim a umbanda.
O autor apresenta as principais contribuições da doutrina kardecista e da interferência de seus métodos e explicações científicas para a legitimação e constituição da umbanda, que se desenvolveu como religião organizada e reconhecida. Silva expõe resumidamente, em outro quadro, as diferenças rituais entre o candomblé e a umbanda, abarcando seu panteão, finalidades do culto às divindades, bem como a concepção e a finalidade do transe. Ele também faz distinção entre a iniciação e os modos de comunicação com os deuses, sua hierarquia religiosa e, finalmente, destaca as diferentes músicas e danças rituais.
O autor concluiu que o desenvolvimento de religiões estranhas à religião oficial, como a dos africanos e a dos indígenas, também eles formadores da sociedade brasileira, deu-se pelo processo contínuo de negociação entre seus participantes e as semelhanças estruturais existentes entre esses sistemas religiosos e o dominante, promovendo intercâmbio e sincretismo. Observa, contudo, que com o grande interesse despertado pelos intelectuais, pesquisadores e artistas, o candomblé passou a ser visto com mais tolerância entre os brancos e, ao se tornar símbolo da cultura religiosa brasileira, popularizou-se para além dos limites iniciais. De sua parte, a umbanda, nascida no Brasil exatamente do casamento do "embranquecimento" dos valores religiosos da macumba com o "empretecimento" dos valores kardecistas, proporcionou uma nova síntese de valores religiosos, patrocinando a integração de todas as categorias sociais.
Se com a valorização do candomblé houve uma forte "folclorização" da religião, na umbanda a ênfase na organização burocrática e sua busca por legitimação social provocou, além do acolhimento espiritual, o reconhecimento de segmentos marginalizados, tornando-se, dessa forma, uma das forças mais expressivas das atividades assistenciais no Brasil.
O vasto conteúdo apresentado no livro surpreende-nos não só pela competência do autor, que "caminha no meio do mundo dos orixás com intimidade", mas também por trazer, de maneira clara e eficiente a um leitor ainda que inexperiente nessa linguagem religiosa, a história de um povo, suas crenças, deuses, ritos e mitos, enfim, trechos da história do Brasil.
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