Salve Jorge ou salve Ogum? A polêmica da novela das nove nas redes sociais e blogues confronta evangélicos e devotos de religiões afro
por Aron Édson Nogueira Giffoni Barbosa *
O professor Marcelo Ayres Camurça (2009) propõe a idéia de “guerra santa”, uma batalha de todos contra todos, de religião contra religião: “A atitude de acusação e intolerância às demais religiões e religiosidades (afro-brasileiras, kardecismo, esoterismo), com a consequente rejeição a outras práticas religiosas fora do âmbito de seu credo, parece levar a clivagens e competições, inaugurando no cenário religioso brasileiro uma nova forma de convivência – distinta daquela tradicional dos ‘empréstimos mútuos’ – semelhante aos modelos de mercado religioso e campo religioso [...]. A questão que se coloca, então, é de como uma atitude de beligerância e enfrentamento por parte de pentecostais e carismáticos pôde redundar num quadro de mercado religioso ativo e não de desagregação, de ‘guerra de todos contra todos’, enfim, de ‘guerra santa’” (CAMURÇA, 2009, p. 178).
Ainda, em nota de página, Camurça trata da questão da Iurd enquanto instituição religiosa que reprime veementemente outras religiões: “(7) As igrejas pentecostais, particularmente a Iurd, têm sido enquadradas em infrações por ferir dispositivos do princípio de liberdade religiosa, como a denúncia contra o bispo Macedo por ‘vilipêndio’ ao culto ‘religioso’, quando no seu livro Orixás, caboclos e guias, segundo os promotores, ‘ataca outras religiões e provoca transformações nos fiéis’” (CAMURÇA, 2009, p. 178).
Outro estudioso do neopentecostalismo, Ricardo Mariano (1999), afirma que essa perseguição às religiões afro é antiga, e vem desde o tempo da escravidão. Só que, hoje, os neopentecostais não contam mais com a ajuda repressiva da polícia ou do governo, afinal é assegurada a todos a liberdade religiosa. Contudo, continuam a perseguição por meio de discursos doutrinários, tanto em livros como no próprio culto.
Em suma, ao tratar os cultos afro com repulsa e não aceitação, o neopentecostalismo as coloca na margem da sociedade. E, conforme define Silva (2005), “a conversão da margem valoriza o centro: Deus, igreja, bispo...”, ou seja, quanto mais pessoas pertencentes às religiões afro forem convertidas, mais credibilidade terá a religião e seus líderes, fazendo com que, mais uma vez, sejam reproduzidos os preceitos, conceitos e agentes das religiões afro.
Desde sua origem, os cultos pentecostais são intensos na demonstração do poder dos considerados agentes do mal
As novelas lidam com os domínios universais da vida pessoal e emocional. Exploram dilemas comuns aos telespectadores e chegam mesmo a ajudá-los
Ainda, Silva (2005) afirma que o que ocorre é uma “antropofagia da fé inimiga”. Deve-se combater até que desapareça. A guerra santa consegue juntar um sincretismo invertido com um quê de pluralismo religioso. Os orixás que são sagrados para umbandistas e candomblecistas são apropriados como figuras do mal e causadores deste pelos neopentecostais. Essa inversão de sentido só é possível porque os orixás são reconhecidos como tais pelos neopentecostais, e automaticamente a existência deles é reproduzida por conta desse reconhecimento contínuo. Assim, uma depende da outra para ampliar seus significados e afirmar suas identidades.
Quanto mais pessoas pertencentes às religiões afro forem convertidas, mais credibilidade terá a religião e seus líderes. “A conversão da margem valoriza o centro: Deus, igreja, bispo…”
Concordamos aqui com a abordagem sociológica de Anthony Giddens (2005) acerca das novelas. Segundo Giddens, “as novelas lidam com os domínios universais da vida pessoal e emocional. Exploram dilemas que todos podem enfrentar e talvez cheguem até a ajudar alguns telespectadores a pensarem de maneira mais criativa a respeito das próprias vidas” (2005, p. 374).
Se voltarmos um pouco no tempo, lembraremos que, de fato, as novelas da rede Globo passaram a retratar situações cotidianas e que estão ou estavam em pauta na discussão nacional e mundial, como clonagem, homossexualismo, tráfico de pessoas e de drogas, desigualdade social, entre outros. A novela Salve Jorge traz à tona a questão do tráfico de pessoas, além da convivência atual dos moradores do morro do Alemão, comunidade pacificada recentemente, no Rio de Janeiro. Certamente as pessoas assemelham as suas vidas aos eventos retratados nas novelas, o que não sabemos ao certo é se as soluções apresentadas para os dilemas na TV são as mesmas adotadas pelas pessoas na vida real.
São muitas as realidades retratadas: tráfico de pessoas, o cotidiano nos morros… O que não sabemos ao certo é se as soluções apresentadas para os dilemas na TV são as mesmas adotadas pelas pessoas na vida real
Os evangélicos, ao boicotarem a novela da rede Globo, automaticamente baixam a audiência dessa emissora e aumentam a da rede Record, ao assistirem à reprise proposta pelo bispo Macedo. Seria uma estratégia midiática para aumentar a audiência da Record? Ou isso seria apenas consequência da crença e fidelidade dos evangélicos ao que é proposto por suas denominações?
O que pensar dessa situação, quando lembramos que o Brasil é um país laico e garante a liberdade de culto às pessoas, ao mesmo tempo em que garante a liberdade de expressão? A Iurd se posiciona dos dois lados, afinal, exerce seu direito de cultuar o que bem quer e, junto a isso, pratica a liberdade de expressão quando faz campanha em favor do combate às religiões afro-brasileiras, enquanto que as religiões afro-brasileiras se posicionam apenas do lado da liberdade religiosa, ficando, assim, acuadas pela ação repressiva dos neopentecostais. O combate é intrínseco e inseparável da doutrina teológica da Iurd, afinal, os exus e entidades são representações dos demônios, que por sua vez são combatidos e expulsos desse plano a todo vapor pelos iurdianos. Se não existissem os exus e entidades, certamente os demônios seriam outros, quem sabe os próprios santos católicos. E se um dia ninguém mais frequentar a umbanda ou o candomblé? Não haverá mais demônios? Quem irá praticar o mal? Fica a questão para pensarmos: sem as religiões afro-brasileiras e seus exus e entidades, a Iurd fica sem chão teológico, doutrinário e ritualístico.
*Aron Édson Nogueira Giffoni Barbosa (arongiffoni@hotmail.com) é bacharel (Antropologia) e licenciado em Ciências Sociais, mestrando em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Ronaldo de. A igreja Universal e seus demônios. 1. ed. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2009.
CAMPOS, Leonildo Silveira. Teatro, templo e mercado: organização e marketing de um empreendimento neopentecostal. Petrópolis: Vozes, 1997.
GIDDENS, Anthony. Sociologia. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2005.
MACEDO, Edir. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?, Rio de Janeiro: Gráfica Universal, 16ª ed., 1993.
MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil.São Paulo: Edições Loyola, 1999.
PRANDI, Reginaldo. As religiões afro-brasileiras e seus seguidores. Civitas, Porto Alegre, v. 3, n. 1, 2003.
PRANDI, Reginaldo. O Brasil com axé: candomblé e umbanda no mercado religioso. Estudos Avançados, São Paulo, v. 18, n. 52, 2004.
SILVA, Vagner Gonçalves. Candomblé e umbanda: caminhos da devoção brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2005.
SILVA, Vagner Gonçalves. Concepções religiosas afrobrasileiras e neopentecostais: uma análise simbólica. Revista USP, São Paulo, n. 67, p. 150-175, 2005.
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