CASA PODEROSA DOS FILHOS DE YEMANJÁ

CASA PODEROSA DOS FILHOS DE YEMANJÁ

terça-feira, 27 de outubro de 2015

SOCIEDADE OGBONI.



Na Nigéria existe uma tendência muito forte de formar associações e corporações devido a sua grande extensão de terras e também uma forte expressão política, estas associações são formadas com o interesse comum de proteger a população em economia, política, recriação e religião. 

A sociedade secreta Ògbóni é encontrada em terras Yorubá, e sustentada pela tradição de ter surgido nos primórdios de Ilé Ifè. 

Venera a terra como fonte da vida, simbolizada pelo orixá Edan…” Segundo um itan do Odu Irosun-Iwori, num antigo período da história da humanidade, esta vivia em total anarquia, promovendo sucessivos incidentes de roubos, assassinatos e violações de toda ordem de abuso aos códigos éticos ditados pelos ancestrais. 

Alguns habitantes pediram a interferência de Orunmilá, para que colocasse um paradeiro naquela situação alarmante. Orunmilá ordenou que se realizassem sacrifícios e aqueles que cumpriram as instruções de Ifá prosperaram em segurança.  

Depois disso, Orunmilá retirou-se aos céus, entregando a Edan a responsabilidade sobre a Terra.  Edan firmou um pacto e aqueles que juraram mantê-lo, puderam viver em paz,  harmonia,  justiça e prosperidade.

Após longo tempo de permanência na Terra, Edan retornou aos céus, delegando a um grupo de pessoas responsáveis a tarefa de supervisionar e fazer cumprir as leis estabelecidas. 

Este grupo se uniu em fraternidade, tornando-se a conhecida Sociedade Secreta Ogboni. 
Ainda hoje, Ogboni mantém ritual iniciático baseado num pacto que estabelece e faz cumprir o seu elevado código ético, zelando pela justiça, verdade, lealdade e proteção.

A justiça de Ogboni é firmada com a própria Terra – Onilé, que detém a prioridade em todos os ritos.   Dela sai o sustento de todos os seres que nela habitam, dela saiu o barro primordial com que Obatalá modelou o ser humano. Dela viemos, nela nascemos e recebemos a oportunidade da vida, dela somos alimentados e a ela alimentaremos, por ocasião da morte.

Conta o itan que Olodunmare concedeu cada reino da natureza a um òrisá, assim, sempre que um ser humano expressasse alguma necessidade relacionada a um dos reinos, deveria pagar uma prenda em forma de sacrifício ao òrisá correspondente.   Restou de todos os reinos, o próprio planeta Terra, que foi concedido a Onilé. O seu tributo seria a própria vida, pois nela repousam os corpos e restos de tudo o que já não vive. Onilé deveria ser propiciada sempre, para que o mundo continuasse a existir, gerando continuamente, nova vida e assegurando a continuidade do planeta.

Com o objetivo de promover a harmonia com a natureza, Ogboni venera Onilé – os senhores da  Terra – como fonte da Vida, simbolizada pelo òrisá Edan.    Daí resulta que todo aquele que transgredir o pacto estabelecido pela Lei de Ogboni, deverá, – incondicionalmente, prestar contas à Edan – a própria Terra.

Outra atividade dessa sociedade é a de detectar as ofensas feitas aos Orixás, para logo penalizar rigorosamente  os culpados. A cerimônia feita por essa sociedade mística se realiza em um lugar sagrado e nesse lugar são depositadas inúmeras oferendas.

Graças a seu poder espiritual os Ògbóni podem alcançar posições em nível social e políticos. Eles são facilmente reconhecidos porque usam um Opa-Edan, feito de ferro nas extremidades, ressaltam as figuras de uma mulher e outra de um Homem.  O chefe do culto de Ogboni é um iniciado que atinge o grau de Oluwo ( pai do segredo) e é portador do shaki – uma estola que o distingue como detentor de honra e respeito.
Por: Oluwo Ifarunaola Efunlase.
FONTE: https://ocandomble.wordpress.com/2011/05/25/sociedade-ogboni/


O Brasil com axé: candomblé e umbanda no mercado religioso


Reginaldo Prandi
RESUMO

DESDE os estudos de Roger Bastide, na década de 1940, muita coisa mudou no Brasil, também no âmbito das religiões e das religiões afro-brasileiras. Velhas tendências foram confirmadas, novas direções foram se impondo. Religiões recém-criadas se enfrentam com as mais antigas, velhas religiões assumem novas formas e veiculam renovados conteúdos para enfrentar a concorrência mais acirrada no mercado religioso. Vou tratar aqui de um ramo religioso pequeno demograficamente, porém importante do ponto de vista de seu significado para a cultura brasileira e da visibilidade que transborda de seu universo de seguidores: as religiões afro-brasileiras. Trata-se de acompanhar as mudanças numéricas encontradas pelos censos para dimensionar os seguidores das religiões afro-brasileiras, e de examinar algumas de suas características, como cor e escolaridade, para então avançar, sem perder de vista as peculiaridades constitutivas e organizacionais dos cultos e terreiros, alguma explicação sobre mudanças pelas quais vêm passando essas religiões nos dias de hoje.

ABSTRACT

MUCH HAS changed in Brazil since the studies of Roger Bastide in the 1940s, including the religious milieu of the Afro-Brazilian religions. Old trends were confirmed, new directions imposed themselves. Newfangled religions confront the more established ones; old religions take on new forms and convey renewed contents to face increasingly strenuous competition in the religious marketplace. I will deal here with a demographically small religious faction that is nevertheless important in Brazilian culture because of the visibility of its followers: the Afro-Brazilian religions. I will examine the various census figures in an attempt to assess the breadth of Afro-Brazilian religions and will examine some traits of their followers - such as race and educational level. Then, without losing sight of the constitutional and organizational peculiarities of the cults and the terreiros [ritual grounds of the Candomble religion], I will attempt an explanation for the changes these religions are presently undergoing.



As religiões afro-brasileiras em mudança

O CANDOMBLÉ - religião brasileira dos orixás e outras divindades africanas que se constituiu na Bahia no século XIX - e demais modalidades religiosas conhecidas pelas denominações regionais de xangô, em Pernambuco, tambor-de-mina, no Maranhão, e batuque, no Rio Grande do Sul, formavam, até meados do século XX, uma espécie de instituição de resistência cultural, primeiramente dos africanos, e depois dos afro-descendentes, resistência à escravidão e aos mecanismos de dominação da sociedade branca e cristã que marginalizou os negros e os mestiços mesmo após a abolição da escravatura. Eram religiões de preservação do patrimônio étnico dos descendentes dos antigos escravos. Assim foram conhecidas e analisadas por Roger Bastide que, entretanto, já observava a presença de brancos no candomblé no final da década de 1940, antecipando a transformação do candomblé e congêneres em religiões de caráter universal (Bastide, 1945, 1971, 1978). De lá para cá, muita coisa mudou, fazendo dessas religiões organizações de culto desprendidas das amarras étnicas, raciais, geográficas e de classes sociais. Não tardou e foram lançadas no mercado religioso, o que significa competir com outras religiões na disputa por devotos, espaço e legitimidade.

No início do século XX, enquanto os cultos africanos tradicionais eram preservados em seus nascedouros brasileiros, uma nova religião se formava no Rio de Janeiro, a umbanda, síntese dos antigos candomblés banto e de caboclo transplantados da Bahia para o Rio de Janeiro, na passagem do século XIX para o XX, com o espiritismo kardecista, chegado da França no final do século XIX. Rapidamente disseminada por todo o Brasil, a umbanda prometia ser a única grande religião afro-brasileira destinada a se impor como universal e presente em todo o País (Camargo, 1961). E de fato não tardou a se espalhar também por países do Cone Sul e depois mais além (Oro, 1993). Chamada de "a religião brasileira" por excelência, a umbanda juntou o catolicismo branco, a tradição dos orixás da vertente negra, e símbolos, espíritos e rituais de referência indígena, inspirando-se, assim, nas três fontes básicas do Brasil mestiço.

No curso da década de 1960, entretanto, o velho candomblé surgiu como forte competidor da umbanda. Com sua lógica própria e sua capacidade de fornecer ao devoto uma rica e instigante interpretação do mundo, o candomblé foi se espalhando da Bahia para todo o Brasil, seguindo a trilha já aberta pela vertente umbandista. Foi se transformando e se adaptando a novas condições sociais e culturais. Religião que agora é de todos, o candomblé enfatiza a idéia de que a competição na sociedade é bem mais aguda do que se podia pensar, que é preciso chegar a níveis de conhecimento mágico e religioso muito mais densos e cifrados para melhor competir em cada instante da vida, que o poder religioso tem amplas possibilidades de se fazer aumentar. Ensina que não há nada a esconder ou reprimir em termos de sentimentos e modos de agir, com relação a si mesmo e com relação aos demais, pois neste mundo podemos ser o que somos, o que gostaríamos de ser e o que os outros gostariam que fôssemos - a um só tempo (Prandi, 1991 e 1996). Como agência de serviços mágicos, que também é, oferece ao não-devoto a possibilidade de encontrar solução para problema não resolvido por outros meios, sem maiores envolvimentos com a religião. Sua magia passou a atender a uma larga clientela, o jogo de búzios e os ebós do candomblé rapidamente se popularizaram, concorrendo com a consulta a caboclos e pretos-velhos da umbanda.

Parcela importante da legitimidade social que a cultura negra do candomblé desfruta hoje foi gestada a partir de uma nova estética formulada pela classe média intelectualizada do Rio de Janeiro e de São Paulo nas décadas de 1960 e 1970, que adotou e valorizou mais do que nunca aspectos negros da cultura baiana, seus artistas e intelectuais. Começava o que chamei de processo de africanização do candomblé (Prandi, 1991), em que o retorno deliberado à tradição significa o reaprendizado da língua, dos ritos e mitos que foram deturpados e perdidos na adversidade da Diáspora; voltar à África não para ser africano, nem para ser negro, mas para recuperar um patrimônio cuja presença no Brasil é agora motivo de orgulho, sabedoria e reconhecimento público, e assim ser o detentor de uma cultura que já é, ao mesmo tempo, negra e brasileira, porque o Brasil já se reconhece no orixá, o Brasil com axé.

Em resumo, ao longo do processo de mudanças mais geral que orientou a constituição das religiões dos deuses africanos no Brasil, o culto aos orixás primeiro misturou-se ao culto dos santos católicos para ser brasileiro, forjando-se o sincretismo; depois apagou elementos negros para ser universal e se inserir na sociedade geral, gestando-se a umbanda; finalmente, retomou origens negras para transformar também o candomblé em religião para todos, iniciando um processo de africanização e dessincretização para alcançar sua autonomia em relação ao catolicismo. Nos tempos atuais, as mudanças pelas quais passam essas religiões são devidas, entre outros motivos, à necessidade da religião se expandir e se enfrentar de modo competitivo com as demais religiões. A maior parte dos atuais seguidores das religiões afro-brasileiras nasceu católica e adotou a religião que professa hoje em idade adulta. Não é diferente para evangélicos e membros de outros credos.



Quantos são os de religião afro-brasileira?

Segundo o recenseamento de 2000, apenas 0,3% da população brasileira adulta declaram-se pertencentes a uma das religiões afro-brasileiras, o que corresponde a pouco mais de 470 mil seguidores, embora pesquisas feitas com metodologia mais precisa indicam valores maiores, da ordem de pelo menos o dobro das cifras encontradas pelo censo (Pierucci e Prandi, 1996). Quando se trata das religiões afro-brasileiras, as estatísticas sobre os seguidores costumam oferecem números subestimados, o que se deve às circunstâncias históricas nas quais essas religiões surgiram no século XIX, quando o catolicismo era a única religião tolerada no País, a religião oficial, e a fonte básica de legitimidade social. Para se viver no Brasil, mesmo sendo escravo, e principalmente depois, sendo negro livre, era indispensável, antes de mais nada, ser católico. Por isso, os negros que recriaram no Brasil as religiões africanas dos orixás, voduns e inquices se diziam católicos e se comportavam como tais. Além dos rituais de seu ancestrais, freqüentavam também os ritos católicos. Continuaram sendo e se dizendo católicos, mesmo com o advento da República, no fim do século XIX, quando o catolicismo perdeu a condição de religião oficial e deixou de ser a única religião tolerada no país.

Desde o início as religiões afro-brasileiras se fizeram sincréticas, estabelecendo paralelismos entre divindades africanas e santos católicos, adotando o calendário de festas do catolicismo, valorizando a freqüência aos ritos e sacramentos da Igreja católica. Assim aconteceu com o candomblé da Bahia, o xangô de Pernambuco, o tambor-de-mina do Maranhão, o batuque do Rio Grande do Sul e outras denominações, todas elas arroladas pelo censo do ibge (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) sob o nome único e mais conhecido: candomblé. Até recentemente, essas religiões eram proibidas e, por isso, duramente perseguidas por órgãos oficiais. Continuam a sofrer agressões, hoje menos da polícia e mais de seus rivais pentecostais, e seguem sob forte preconceito, o mesmo preconceito que se volta contra os negros, independentemente de religião. Por tudo isso, é muito comum, mesmo atualmente, quando a liberdade de escolha religiosa já faz parte da vida brasileira, muitos seguidores das religiões afro-brasileiras ainda se declararem católicos, embora sempre haja uma boa parte que declara seguir a religião afro-brasileira que de fato professa. Isso faz com que as religiões afro-brasileiras apareçam subestimadas nos censos oficiais do Brasil, em que o quesito religião só pode ser pesquisado de modo superficial.

Com o tempo, as religiões afro-brasileiras tradicionais se espalharam pelo Brasil todo, passando por muitas inovações, mas quanto mais tradicionais os redutos pesquisados, mais os afro-brasileiros continuam se declarando, e se sentindo, católicos. Mais perto da tradição, mais católico. Um mapeamento dos afro-brasileiros declarados nas diferentes regiões mostra isso muito bem: eles são em número relativamente pequeno no Nordeste, região em que a religião afro-brasileira tradicional se formou, o que pode parecer paradoxal, e em número bem maior nas regiões em que se instalou mais recentemente, já no século XX, e onde a mudança religiosa no campo afro-brasileiro tem se mostrado mais vigorosa, casos do Sudeste e do Sul. Até hoje o catolicismo é uma máscara usada pelas religiões afro-brasileiras, máscara que, evidentemente, as esconde também dos recenseamentos.

Por sua vez, a umbanda é igualmente problemática quando se trata de quantificar seus seguidores. No início, a nova religião denominou-se espiritismo de umbanda, e não é incomum, ainda atualmente, os umbandistas se chamarem de espíritas, quando não de católicos. A umbanda conservou do candomblé o sincretismo católico: mais que isto, assimilou preces, devoções e valores católicos que não fazem parte do universo do candomblé. Na sua constituição interna, a umbanda é muito mais sincrética que o candomblé.

Voltemos à questão dos números. O crescimento das cifras de adeptos declarados do candomblé e da umbanda, de um censo para outro, poderia ser atribuído a duas fontes de variação. Primeiro, os números refletiriam um aumento real no número de seguidores; segundo, seria conseqüência do fato de que a expansão da liberdade de crença no Brasil faria com que mais adeptos do candomblé e umbanda, que antes se escondiam sob a rubrica de católicos e espíritas, se declarassem de religião afro-brasileira. Os números crescentes mostrariam que a religião cresce porque tem mais fiéis ou porque uma parcela maior dos antigos seguidores passa a se declarar abertamente.

Feitas essas ressalvas, o que os dados disponíveis nos mostram é que o conjunto das religiões afro-brasileiras vem perdendo adeptos nos últimos vinte anos, os números são decrescentes. Considerando que, atualmente, são menos imperativas as razões que têm levado os afro-brasileiros a se declararem católicos ou espíritas, a queda recentemente observada só pode ser real, e pode até mesmo ser maior, uma vez que em censos anteriores as taxas de "escondidos" podiam ser maiores que as de agora.

De todo modo, o pequeno contingente de afro-brasileiros declarados, em 1980, representava apenas 0,6% da população brasileira residente. Em 1991, eles eram 0,4% e agora, em 2000, são 0,3%. De 1980 a 1991, os afro-brasileiros perderam trinta mil seguidores declarados, perda que na década seguinte subiu para 71 mil. Ou seja, o segmento das religiões afro-brasileiras está em declínio.

Podem ser muitas as razões do declínio afro-brasileiro, mas certamente elas estão associadas às novas condições da expansão das religiões no Brasil no contexto do mercado religioso. A oferta de serviços que a religião é capaz de propiciar aos consumidores religiosos e as estratégias de acessar os consumidores e criar novas necessidades religiosas impõem mudanças que nem sempre religiões mais ajustadas à tradição conseguem assumir. É preciso, sobretudo, enfrentar-se com os concorrentes, atualizar-se. Para religiões antigas, podem ocorrer mudanças que mobilizam apenas um setor dos líderes e devotos, como, por exemplo, ontem, a fração das Comunidades Eclesiais de Base e, hoje, a parcela da Renovação Carismática do catolicismo (Prandi, 1997). Isso vale para os grandes grupos religiosos. No caso dos evangélicos, avançam os renovados pentecostais, mas declinam algumas das denominações históricas.

Certamente, o sincretismo católico, que por quase um século serviu de guarida aos afro-brasileiros, não deve mais lhes ser tão confortável. Quando o próprio catolicismo está em declínio, a âncora sincrética católica pode estar pesando desfavoravelmente para os afro-brasileiros, fazendo-os naufragar. Por outro lado, é sabido como muitas igrejas neopentecostais têm crescido às custas das religiões afro-brasileiras, sendo que para uma de suas mais bem-sucedidas versões, a Igreja Universal do Reino de Deus, o ataque sem trégua ao candomblé e à umbanda e a seus deuses e entidades é constitutivo de sua própria identidade (Mariano, 1999).

Mas se o conjunto dos afro-brasileiros está em declínio, essa queda é devida ao segmento umbandista, que cai, enquanto sobe o candomblé. Os censos de 1991 e 2000 fornecem dados separados para a umbanda e o candomblé, sendo que a classificação candomblé reúne as chamadas religiões afro-brasileiras tradicionais (candomblé, xangô, tambor-de-mina, batuque). Como, pelo menos desde a década de 1950, a umbanda tem sido majoritária no conjunto afro-brasileiro, seu peso maior reflete diretamente na estatística geral do conjunto, indicando declínio.

Mas a participação relativa do candomblé tem aumentado. Em 1991, o candomblé já tinha conquistado 16,5% dos seguidores das diferentes denominações de origem africana. Em 2000, esse número passou a 24,4%. O candomblé cresceu para dentro e para fora do universo afro-brasileiro. Seus seguidores declarados eram cerca de 107 mil em 1991 e quase 140 mil em 2000, o que representa um crescimento de 31,3% num período em que a população brasileira cresceu 15,7%. Sem dúvida, um belo crescimento. Por outro lado, a umbanda, que contava com aproximadamente 542 mil devotos declarados em 1991, viu seu contingente reduzido para 432 mil em 2000. Uma perda enorme, de 20,2%. E porque o peso da umbanda é maior que o do candomblé na composição das religiões afro-brasileiras, registrou-se para este conjunto nada mais nada menos que um declínio de 11,9% numa só década. Na década anterior, fato para o qual Ricardo Mariano chamou a devida atenção (Mariano, 2001), as religiões afro-brasileiras já tinham sofrido uma perda de 4,5%, declínio que não somente se confirmou como se agravou na década seguinte. O conjunto encolheu, mas o candomblé cresceu.



Sincretismo, magia e o enfrentamento com pentecostais

Em seu processo de transformação em religião universal, isto é, religião que se oferece para todos, o candomblé conheceu o que chamamos de movimento de africanização, que implica certas reformas de orientação fortemente intelectual, como o reaprendizado das línguas africanas esquecidas ao longo de um século, a recuperação da mitologia dos deuses africanos, que em parte também se perdeu nesses anos todos de Brasil, e a restauração de cerimoniais africanos (Prandi, 1991 e 2000). Um elemento importante do movimento de africanização do candomblé e sua constituição como religião autônoma inserida no mercado religioso é o processo de dessincretização, com o abandono de símbolos, práticas e crenças de origem católica. É a descatolização do candomblé, que se descentra do catolicismo e se assume como religião autônoma.

Esse processo de africanização, evidentemente, é muito desigual e depende das diferentes situações com que se depara aqui e ali. Podemos, contudo, afirmar com segurança que o candomblé que mais se espalha pelo Brasil, o que mais cresce, é esse que vai cada vez mais deixando de lado as ligações com o catolicismo. Um seguidor desse candomblé pode, se quiser, freqüentar ritos da igreja católica, mas essa participação já não será mais vista como parte do preceito obrigatório a que estavam sujeitos os membros dos candomblés mais antigos; já não é mais um dever ritual. Não é mais necessário mostrar-se católico para poder louvar os deuses africanos, assim como não é mais necessário ser católico para ser brasileiro.

Um seguidor da umbanda está longe dessas preocupações. Ao contrário, em vez de fortalecer sua identidade religiosa, uma aspiração muito corrente entre os umbandistas é a de se iniciarem também no candomblé. Muitos o fazem e entre esses não são poucos os que acabam abandonando a umbanda definitivamente para se dedicar aos orixás segundo o rito do candomblé. Assim se enfraquece a autonomia umbandista. Nos ritos da umbanda, as preces católicas e a invocação de Jesus, Maria e santos da igreja nas letras dos cantos sagrados continuam indispensáveis. Num hipotético processo de dessincretização da umbanda, grande parte de seu hinário teria que ser abandonada, pois as referências às crenças católicas são muito explícitas.

Umbanda e candomblé são religiões mágicas. Ambas pressupõem o conhecimento e o uso de forças sobrenaturais para intervenção neste mundo, o que privilegia o rito e valoriza o segredo iniciático. Além do sacerdócio religioso, a magia é quase que uma atividade profissional paralela de pais e mães-de-santo, voltada para uma clientela sem compromisso religioso (Pierucci, 2001). Nesses termos, o candomblé é visto dentro do próprio segmento afro-brasileiro como fonte de maior poder mágico que a umbanda, o que atrai para o seio do candomblé muitos umbandistas.

Para o candomblé, que está mais perto do pensamento africano que a umbanda, o bem e o mal não se separam, não são campos distintos. A umbanda, porém, quando se formou, se imaginou também como religião ética, capaz de fazer a distinção entre o bem e o mal, à moda ocidental, cristã. Mas acabou criando para si uma armadilha. Separou o campo do bem do campo do mal. Povoou o primeiro com seus guias de caridade, os caboclos, pretos-velhos e outros espíritos bons, à moda kardecista. Para controlar o segundo, arregimentou um panteão de exus-espíritos e pombagiras, entidades que não se acanham em trabalhar para o mal quando o mal é considerado necessário (Prandi, 2001a). Ficou dividida entre dois campos éticos opostos, "entre a cruz e a encruzilhada", na feliz expressão de Lísias Nogueira Negrão (1996).

Tratado durante muito tempo com discrição e segredo, o culto dos exus e pombagiras, identificados erroneamente como figuras diabólicas, veio recentemente a ocupar na umbanda lugar aberto e de realce (Prandi, 1996, cap. 4 e 2001). Era tudo de que precisava um certo pentecostalismo: agora o diabo estava ali bem à mão, nos terreiros adversários, visível e palpável, pronto para ser humilhado e vencido. O neopentecostalismo leva ao pé da letra a idéia de que o diabo está entre nós, incitando seus seguidores a divisá-lo nos transes rituais dos terreiros de candomblé e umbanda. Pastores da Igreja Universal do Reino de Deus, em cerimônias fartamente veiculadas pela televisão, submetem desertores da umbanda e do candomblé, em estado de transe, a rituais de exorcismo, que têm por fim humilhar e escorraçar as entidades espirituais afro-brasileiras incorporadas, que eles consideram manifestações do demônio (Mariano, 1999).

A umbanda e o candomblé, cada qual a seu modo, são bastante valorizados no mercado de serviços mágicos e sempre foi grande a sua clientela, mas ambos enfrentam hoje a concorrência de incontáveis agências de serviços mágicos e esotéricos de todo tipo e origem, sem falar de outras religiões, que inclusive se apropriam de suas técnicas, sobretudo as oraculares. Concorrem entre si e concorrem com os outros. Por fim, foram deixados em paz pela polícia (quase sempre), mas ganharam inimigos muito mais decididos e dispostos a expulsá-los do cenário religioso, contendores que fazem da perseguição às crenças afro-brasileiras um ato de fé, o que se pode testemunhar tanto no recinto fechado dos templos como no ilimitado e público espaço da televisão e do rádio. Não foi um ato isolado e gratuito o discurso do pastor fluminense Samuel Gonçalves, da Assembléia de Deus, um dos apoiadores do candidato evangélico Anthony Garotinho à Presidência da República, em que afirmou que uma das "três maldições" do Brasil é a religião africana (Folha de S. Paulo, 30/7/2002, p. A6).



Organização e concorrência

Candomblé e umbanda são religiões de pequenos grupos que se congregam em torno de uma mãe ou pai-de-santo, denominando-se terreiro também cada um desses grupos. Embora se cultivem relações protocolares de parentesco iniciático entre terreiros, cada um deles é autônomo e auto-suficiente, e não há organização institucional eficaz alguma que os unifique ou que permita uma ordenação mínima capaz de estabelecer planos e estratégias comuns na relação da religião afro-brasileira com as outras religiões e o resto da sociedade. As federações de umbanda e candomblé, que supostamente uniriam os terreiros, não funcionam, pois não há autoridade acima do pai ou da mãe-de-santo (Concone e Negrão, 1987). Além disso, os terreiros competem fortemente entre si e os laços de solidariedade entre os diferentes grupos são frágeis e circunstanciais. Não há organização empresarial e não se dispõe de canais eletrônicos de comunicação. Sobretudo, nem o candomblé em suas diferentes denominações nem a umbanda têm quem fale por eles, muito menos quem os defenda. Muito diferente das modernas organizações empresariais das igrejas evangélicas, que usam de técnicas modernas de marketing, que treinam seus pastores-executivos para a expansão e a prosperidade material das igrejas, que contam com canais próprios e alugados de televisão e rádio, e com representação aguerrida nos legislativos municipais, estaduais e federal. Mais que isso, a derrota das religiões afro-brasileiras é item explícito do planejamento expansionista pentecostal: há igrejas evangélicas em que o ataque às religiões afro-brasileiras e a conquista de seus seguidores são práticas exercidas com regularidade e justificadas teologicamente. Por exemplo, na prática expansiva de uma das mais dinâmicas igrejas neopentecostais, fazer fechar o maior número de terreiros de umbanda e candomblé existentes na área em que se instala um novo templo é meta que o pastor tem que cumprir.

Grande parte da fraqueza das religiões afro-brasileiras advém de sua própria constituição como reunião não organizada e dispersa de grupos pequenos e quase domésticos, que são os terreiros. Num passado recente, entre as décadas de 1950 e 1970, as religiões de conversão se caracterizavam pela formação de pequenas comunidades, em que todos se conheciam e se relacionavam. A religião recriava simbolicamente relações sociais comunitárias que o avanço da industrialização e da urbanização ia deixando de lado. Tanto no terreiro afro-brasileiro como na igreja evangélica, o adepto se sentia parte de um pequeno e bem definido grupo. Ao contrário disso, a religião típica da década de 1980 em diante é uma religião de massa. As reuniões religiosas são realizadas em grandes templos, situados preferencialmente nos lugares de maior fluxo de pessoas, com grande visibilidade, que funcionam o tempo todo - algumas 24 horas - e que reúnem adeptos vindos de todos os lugares da cidade, adeptos que podem freqüentar a cada dia um templo localizado em lugar diferente. Os crentes seguem a religião, mas já não necessariamente se conhecem. O culto também é oferecido dia e noite no rádio e na televisão e o acesso ao discurso religioso é sempre imediato, fácil. Os pastores são treinados para um mesmo tipo de pregação uniforme e imediatista. No catolicismo carismático, por sua vez, a constituição dos pequenos grupos de oração teve que se calçar na criação dos grandes espetáculos de massa das missas dançantes celebradas pelos padres cantores (Souza, 2001). Nesses vinte anos, mudou muito a forma como a religião é oferecida pelos mais bem-sucedidos grupos religiosos. São mudanças a que o candomblé e a umbanda não estão afeitos. Não são capazes de se massificar, mesmo porque a vida religiosa de um afro-brasileiro se pauta principalmente pelo desempenho de papéis sacerdotais dentro de um grupo de características eminentemente familiares. Não é à toa que o grupo de culto é chamado de família-de-santo. Mais que isso: as cerimônias secretas das obrigações e sacrifícios não são abertas sequer a todos os membros de um terreiro, havendo sempre uma seleção baseada nos níveis iniciáticos, não sendo concebível a sua exposição a todos, muito menos sua divulgação por meio televisivo.

Além de se constituírem em pequenas unidades autônomas, reunindo, em geral, não mais que cinqüenta membros, os terreiros de candomblé e umbanda usualmente desaparecem com o falecimento da mãe ou pai-de-santo, tanto pelas disputas de sucessão como pelo fato bastante recorrente de que os herdeiros civis da propriedade e demais bens materiais do terreiro, tudo propriedade particular do finado chefe, não se interessam pela continuidade da comunidade religiosa. A não ser em uma dúzia de casas que se transformaram em emblemas de importância regional ou mesmo nacional para a religião, dificilmente um terreiro sobrevive a seu fundador. Tudo sempre começa de novo, pouco se acumula.

Fragmentada em pequenos grupos, fragilizada pela ausência de algum tipo de organização ampla, tendo que carregar o peso do preconceito racial que se transfere do negro para a cultura negra, a religião dos orixás tem poucas chances de se sair melhor na competição - desigual - com outras religiões. Silenciosamente, assistimos hoje a um verdadeiro massacre das religiões afro-brasileiras. Sem um projeto novo de expansão e de reorientação num quadro religioso que se tornou extremamente complexo e competitivo, a umbanda talvez tenha menos recursos que o candomblé para enfrentar a nova conjuntura. Os dados dos censos mostram que é da umbanda que vem o encolhimento demográfico do segmento religioso afro-brasileiro, e o vigor do novo candomblé não tem sido suficiente para compensar as perdas. Nem seus líderes, em grande parte pouco escolarizados, têm sabido como reagir ou como se organizar, mais preocupados que estão em garantir o funcionamento de seus terreiros. A umbanda tem menos de cem anos de idade e parece não conseguir se adaptar às novas demandas que a sociedade apresenta. Já o candomblé, que é pelo menos um século mais antigo que a umbanda, porém renovado pelas mutações que vem sofrendo em sua expansão, tem se mostrado mais ágil para se adequar aos novos tempos. É mais uma demonstração de que a religião que não muda morre.

De todo modo, a importância cultural da umbanda, do candomblé, do xangô, do tambor-de-mina, do batuque e outras denominações menores no cenário cultural brasileiro tem sido sempre maior que seu alcance demográfico em termos da efetiva filiação de seguidores. Sua contribuição às mais diferentes áreas da cultura brasileira é riquíssima, como acontece também noutros países americanos em que se constituíram religiões de origem negro-africana. Mas, se se confirma que o Brasil vem se tornando religiosamente menos afro-brasileiro, a fonte viva de valores, visões de mundo, arranjos estéticos, aromas, sabores, ritmos etc., que são os terreiros de candomblé e umbanda, pode entrar em processo de extinção. Não seria um horizonte promissor para o cultivo da diferença cultural e do pluralismo religioso, cujo alargamento alimentou promessas do final do século XX de mais democracia, diversidade, tolerância e liberdade.



Religião e seguidores em mudança

Houve tempo em que a mudança de religião representava uma ruptura social e cultural, além de ruptura com a própria biografia, com adesão a novos valores, mudança de visão de mundo, adoção de novos modelos de conduta etc. A conversão era um drama, pessoal e familiar, representava uma mudança drástica de vida. O que significa hoje mudar de religião, quando a mudança religiosa parece não comover ninguém, como se mudar de religião fosse já um direito líquido e certo daquele que se transformou numa espécie de consumidor, consumidor religioso, como já se chamou esse converso? Certamente o drama é menos profundo (Pierucci e Prandi, 1996 e Prandi, 2001b).

As mais díspares religiões, assim, surgem nas biografias dos adeptos como alternativas que se pode pôr de lado facilmente, que se pode abandonar a uma primeira experiência de insatisfação ou desafeto, a uma mínima decepção. São inesgotáveis as possibilidades de opção, intensa a competição entre elas, fraca sua capacidade de dar a última palavra. A religião de hoje é a religião da mudança rápida, da lealdade pequena, do compromisso descartável.

Mas não somente o crente muda de um credo para outro, desta para aquela religião. As religiões mudam também e mudam muito rapidamente, muitas vezes suas transformações apontando para um outro público-alvo, visando a uma clientela anteriormente fora do alcance de sua mensagem. É verdade que a religião muda a reboque da sociedade, sobretudo no que diz respeito aos modelos de conduta que prega e valores que propaga, freqüentemente adaptando-se a transformações sociais e culturais já plenamente em curso, num esforço para não perder o trem da história, como tem ocorrido especialmente com a igreja católica. Hoje, provavelmente, muitas das mudanças contemplam não especificamente a sociedade em transformação, mas o conjunto das diferentes religiões que se oferecem como alternativas sacrais, o que significa que a religião muda para poder melhor competir com as outras crenças em termos da adesão de fiéis, e não em razão de se pôr numa posição axiológica mais compatível com os avanços da sociedade, embora isso também possa ser importante e às vezes pressuposto na dinâmica do próprio mercado religioso. Posições anteriormente alcançadas, tanto no plano da filosofia religiosa como no das conseqüências políticas e de orientação na vida cotidiana, que derivam dos valores então assumidos, podem ser completamente abandonadas, com a busca de novos modelos que possam melhor apetrechar aquela religião na concorrência com as demais.

Grupos religiosos, igrejas e denominações cindem-se e se multiplicam, ampliando ainda mais a oferta. Outras apresentam facetas múltiplas, mantendo a unidade institucional, mas sendo capazes de atender a demandas variadas a partir de mensagens diferentes e movimentos particulares, embora gostem de advogar que a diversidade que contemplam e produzem repousa em verdades teológicas únicas. É bastante notória a facilidade com que um adepto do candomblé muda de terreiro, de nação, de grupo religioso, sempre à procura de soluções que acredita poder encontrar fora da comunidade de culto em que se iniciou, trafegando pela enorme variedade de modos de proceder o culto existente no interior do próprio candomblé. Quando não abandona a própria religião para experimentar as mesmas promessas de conforto e felicidade em território pentecostal, por exemplo, o que tem sido uma tendência nada desprezível do trânsito religioso brasileiro nas duas últimas décadas.

Evidentemente, os motivos que reforçam a diversidade religiosa não se encontram somente no âmbito dos crentes seguidores, os consumidores de religião, agindo, sobretudo, no interior da própria organização religiosa. Mudanças internas da religião não significam necessariamente perigo para a sua sobrevivência institucional, não implicam apenas separação e ruptura. Ao contrário, quem não muda não sobrevive. Interesses vários podem então ser exercitados com maior liberdade, numa competição interna cujo sucesso se mede não pelos alcances teológicos possíveis, mas pela adesão de crentes. A própria carreira sacerdotal se vê compelida a incorporar novas habilidades, como aquelas até bem pouco mais apropriadas aos homens de negócios e mais marcadamente atributivas de artistas, ginastas e estrelas de TV, entre outras qualidades. Vejam-se, por exemplo, as mudanças profundas que o movimento de Renovação Carismática introduziu no modelo do clérigo católico brasileiro (Prandi, 1997).

Se isso ocorre em religiões unificadas institucionalmente, pode-se imaginar o que acontece em religiões sem unidade administrativa e doutrinária, como as afro-brasileiras, em que cada terreiro tem para com os demais obrigações apenas protocolares, cada um com seu governo independente.

Mesmo em se tratando de religiões severamente consolidadas em termos de organização sacerdotal e obrigações hierárquicas, surgem novos horizontes de mobilidade social baseada na capacidade pessoal de inovação e empreendimento do sacerdote. Nas grandes igrejas, muitas das quais atuando como conglomerados empresarias de acumulação econômica internacional, assim como nas religiões em que a unidade administrativa e sacerdotal é reduzida, fraca ou inexistente, como ocorre em todo o segmento afro-brasileiro, em certas correntes evangélicas e no conjunto das práticas esotéricas, o sucesso do líder religioso, e por conseguinte da sua religião ou modalidade religiosa, depende da sua capacidade de atrair devotos e clientes e gerar renda necessária à expansão daquela denominação.

Tanta oferta, que é crescente, depende de demanda grande e diversificada. Aquilo que se entende por religião deve contemplar necessidades, gostos e expectativas que escapam às velhas definições da religião, surgindo as mais inusitadas formas de acesso ao sagrado e sua manipulação mágica, como ocorre com muita propriedade no vasto e pouco definido universo do esoterismo.

Experimentar novos sentimentos e formas da religião, contudo, não significa necessariamente mudar de religião. Não é preciso sair da religião que se professa para provar da mudança religiosa. Quantas vezes não ouvimos pessoas mais velhas do candomblé reclamar que sua religião não é mais como costumava ser nos seus tempos de juventude? Para os mais velhos, que sentem a mudança como perda, a religião certa é a que não muda. As próprias religiões costumam se apresentar como verdades eternas e imutáveis. "Assim como era no princípio, agora e sempre", afirma o Credo católico, oração afirmativa de uma religião em constante transformação.

Tudo isso vale igualmente para o candomblé e a umbanda. Os seguidores dos orixás também acreditam na eternidade das verdades religiosas e na perenidade dos ritos. Sabem que muito se perdeu e se modificou ao longo da história do culto dos orixás no Brasil, quer em razão das adversidades sociais e culturais que enfrentou, a começar da própria escravidão, que por causa da displicência dos sacerdotes mais antigos, que teriam levado para o túmulo muito conhecimento que preferiram não passar adiante. É o que se imagina. Pois bem, esse conhecimento perdido, esquecido, escondido existe em algum lugar, e é imperativo recuperá-lo, para o revigoramento da própria religião e o fortalecimento do poder de seus rituais, é o que se acredita.

A idéia de que é preciso recuperar o mistério perdido ao longo da história da religião no Brasil (língua, rezas, cantigas, oriquis, mitos, odus, ebós, tabus etc.) parte do suposto de que em algum lugar existe sobrevivência ou registro do que se perdeu, que alguém de grande conhecimento é capaz de ensinar a fórmula almejada, que algum processo iniciático em outro templo, nação ritualística, cidade ou país pode resgatar o patrimônio que as gerações anteriores de pais e mães-de-santo, por impedimento sociocultural, egoísmo e desleixo, não souberam transmitir às gerações seguintes. Recobrar segredos guardados é imperativo para restaurar o grande poder mágico da religião. O livro é uma das fontes possíveis, viagens à África e consultas com africanos ou mesmo com velhos sacerdotes brasileiros é outra. Em geral se paga por um segredo guardado, cujo acesso quase sempre depende de submissão a alguma obrigação iniciática. No candomblé, o que é pago é mais valorizado; sem dinheiro não há axé, não há fluxo da força sagrada. Mas a adoção de fórmulas ou elementos recuperados se faz de acordo com a interpretação pessoal, a vontade e o interesse de cada pai ou mãe-de-santo, e se dá de modo diferente em cada terreiro. Assim, recuperar o passado perdido também significa adaptar, inovar, criar.

Uma das mais profundas mudanças observadas no candomblé nas últimas décadas do século XX foi sua universalização, quando passou de religião étnica a religião de todos, com a incorporação, entre seus seguidores, de novos adeptos de classe média e de origem não africana. Segundo o censo demográfico do ibge, apenas 16,7% dos umbandistas se constituíam, no ano 2000, de pessoas que declararam ser de cor preta, cifra que para os dos adeptos do candomblé também foi expressivamente pequena: 22,8%. Surpreendentemente, o censo de 2000 mostrou também que as religiões afro-brasileiras apresentaram a segunda maior média de anos de escolaridade de seus seguidores declarados, ficando atrás apenas do espiritismo kardecista, religião sabidamente de classe média e de seguidores com escolaridade elevada. Para o ano 2000, a média de anos de escolaridade dos membros declarados do candomblé e da umbanda foi de 7,2 anos, quando a média da população total do Brasil era igual a 5,9 anos, a dos espíritas kardecistas 9,6 anos, a dos católicos 5,8 anos e a dos evangélicos pentecostais 5,3 anos. São indicadores inequívocos da penetração da classe média branca escolarizada. Certamente esse segmento, que não é a maioria, declara-se afro-brasileiro no quesito de religião do censo com maior freqüência que os pobres e negros.

 De fato, a base social do candomblé mudou, e mudou muito. Grande parte, certamente a maioria ainda, é de gente pobre, com muitas dificuldades para arcar com os gastos financeiros impostos pela exuberância e complexidade dos ritos iniciáticos. Mas a classe média branca e escolarizada já está no terreiro, muitas vezes competindo com os negros pobres, que evidentemente, pela sua condição de afro-descendentes, se sentem com freqüência os legítimos donos das tradições dos orixás. Disputam cargos, regalias e posições de mando e de prestígio no intrincado jogo de poder dos terreiros. Levam consigo valores, costumes e aspirações próprios de sua condição social. O hábito de leitura, o gosto pelo estudo, o prazer do consumo descortinam um mundo de novidades a serem buscadas nos livros, nas revistas, na internet, nas atividades universitárias, no mercado de artigos religiosos. No terreiro aprendem o quanto é valorizado o saber religioso. Há tesouros a descobrir em termos da mitologia e dos ritos, segredos perdidos a recuperar. Freqüentemente, vem a decepção: os segredos são de polichinelo, acrescentam pouco ou quase nada ao que se sabia e praticava antes. Pior que isso: mais saber religioso não confere necessariamente mais poder, seja o poder de mando seja o de manipulação mágica. A procura, entretanto, não cessa, outros caminhos são buscados.

Nas religiões dos orixás, cada terreiro tem plena autonomia administrativa, ritual e doutrinária, e tudo depende das decisões pessoais da mãe ou pai-de-santo. O controle social exercido entre terreiros, no conjunto geral do chamado povo-de-santo, se faz por redes informais de comunicação, em que a fofoca ocupa lugar privilegiado (Braga, 1998), sem que a independência do sacerdote-chefe de terreiro, contudo, sofra realmente qualquer limitação eficaz. É costume se dizer que no candomblé "nada pode e tudo pode" e que tabus são para ser quebrados (Augras, 1987). Assim, cada comunidade de culto é livre para experimentar inovações ou retornar a formas anteriores, incorporando práticas que para outros da mesma religião podem não fazer o menor sentido. Cada terreiro exerce o direito de copiar e incorporar novidades, mas costuma dotá-las de outros significados. Pode mudar, afirmando que se mantém na rígida tradição. Terreiros nascem uns dos outros, mas não há dois iguais, mesmo quando se observam os terreiros mais antigos, surgidos da mesma matriz fundante.

Os seguidores são unânimes, entretanto, ao acreditar que o futuro da religião depende tanto da manutenção das velhas tradições, das quais os centenários terreiros da Bahia ainda representam a fonte mais legítima, como da recuperação do conhecimento que se perdeu desde que os velhos fundadores foram arrancados de suas famílias e cidades africanas para serem brutalmente escravizados no Brasil. Pensam o futuro da religião em termos estritamente religiosos e atribuem o progresso ou declínio de seus cultos não em função de planos, políticas e estratégias institucionais, mas à vontade dos orixás. Acreditam que sempre é tempo de recuperar a tradição que não chegou até os dias de hoje, adaptando-a para o presente da religião, pois em algum lugar ainda existe, conforme repetem com muito freqüência, muitos segredos guardados.



Bibliografia

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Texto recebido e aceito para publicação em 8 de outubro de 2004.





Reginaldo Prandi é professor do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Ocupa atualmente o cargo de representante da Área de Sociologia na Capes. É autor, entre outros livros, de Os candomblés de São Paulo (Hucitec, 1991), A realidade social das religiões no Brasil (com Antônio Flávio Pierucci, Hucitec, 1996), Herdeiras do axé (Hucitec, 1996), Um sopro do Espírito (Edusp, 1997), Mitologia dos orixás (Companhia das Letras, 2000), Encantaria brasileira (organizador, Pallas, 2001), Os príncipes do destino (Cosac & Naify, 2001), Ifá, o Adivinho (Companhia das Letrinhas, 2002), Xangô, o Trovão (Companhia das Letrinhas, 2003) e Minha querida assombração (Companhia das Letrinhas, 2004).

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sábado, 17 de outubro de 2015

Intolerância, fanatismo, discriminação: velhos dogmas invadem a política e tensionam a agenda pública


Por Camila Vianna, Jéssica Alves, Jéssica Monteiro, Roberta Thomaz e Thaianne Coelho


Em tempos de visitas sagradas ao país,em que a pregação religiosa mistura-se ao discurso político, ficam ainda mais claras as relações entre Igreja e Estado. E se há uma pressão cada vez maior de grupos religiosos sobre as decisões políticas, afirmar a espiritualidade também tornou-se mais que uma questão de fé.

Em 2008 a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), foi formada por representantes de diversas religiões para lutar pela liberdade religiosa. Desde o seu início, a comissão não mede esforços para estimular o diálogo e a paz entre as religiões. Para o interlocutor da CCIR, babalawo Ivanir dos Santos, o preconceito religioso ainda é forte e não se limita à crença.

“Ele se estende pra cultura, pra questão racial. Porque o africano não é cartesiano, ele é integral. Então, costumes, cultura e religiosidade estão juntos. Você nasceu branca, dos olhos azuis, mas se botar um fio de contas, roupa branca e não sei o quê, alguém encontra na rua e diz ‘tá amarrado!’. Porque na verdade ela assume uma identidade negra, que é africana, querendo ou não”.

O reverendo Marcos Amaral é pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil, uma das denominações que mais sofreram perseguições e, hoje, é tida como uma das mais intolerantes. Para ele, o preconceito também vai além da religião, mas se configura como dominação de uma maioria sobre uma minoria. Além disso, ainda hoje, o que não for visto como catequizador foge do interesse da igreja.

“A igreja evangélica é intolerante porque hoje é maioria, e o sistema de maioria reprime as minorias. A igreja possui um viés missionário muito forte, quase alheio às questões políticas, ecológicas, o que ‘faz a cidade’. E se não é para esse fim, não vale.”

Para o ateu, Pedro Martinho – aquele que estaria fora da discussão sobre religião por não ter uma -, a sociedade na qual todas as religiões viveriam em paz é quase tão sem sentido quanto a existência de um Deus. “Não acredito em sociedade ideal. A convivência pacífica entre todas as religiões e o ateísmo, que não é uma religião mas que, no caso, entra na roda, só vai ser possível no dia em que a religião for uma questão de âmbito essencialmente privado. Só que eu não sei se, sem os “fanáticos”, “fundamentalistas” religiosos para sustentar as bases e fundamentos das religiões, elas sobreviveriam por muito tempo”, acredita.

Segundo a antropóloga Ana Paula Miranda, a solução para o dilema ainda está longe do fim, já que se trata de opiniões e visões diferentes. Mas ainda vale a reflexão. E se existe uma maneira de começar a romper com esse panorama conflituoso, a resposta é enfática e sem uma posição definida, como a discussão.

“Sim e não. Sim, porque as pessoas que participam desse grupo vão sendo socializadas a entender quais são seus direitos e buscar cada vez mais, legalmente, a garantia desses direitos. E não porque isso é um processo político que pode acontecer em qualquer espaço, na medida em que esse grupo se posiciona, os grupos que são contrários ficam mais acirrados no enfrentamento. Não tem uma solução que não tenha uma reação”.

Como não pregar o preconceito

Das brincadeiras de infância ao amadurecimento religioso na vida adulta, o Ifá Israel Oliveira passou a vida muito próximo ao tema da religião. O menino, nascido em Rio do Pires, interior da Bahia, sempre escolhia ser o padre das historinhas dos colegas de infância.

Passou pelo Seminário, conheceu o Candomblé, e hoje, aos 40 anos e morando no Rio de Janeiro, caminha apenas pelo mundo dos orixás da cultura africana Yorubá, no culto específico do Ifá.

Israel joga seus opelés para qualquer pessoa. Se um católico for se consultar, verá as imagens de São Rafael e São Miguel em uma espécie de aparador. “São meus anjos protetores”, ele diz. Se for um budista, verá a imagem do buda e outros objetos que ganha de presente dos amigos. E verá, logo ao lado, a imagem do Ifá, abaixo de uma foto emoldurada que ele próprio tirou do palácio de Osun, na Nigéria, considerado o local onde Oxum apareceu pela primeira vez.

A iniciação na doutrina, em 2009, o fez conhecer a cultura nigeriana durante 21 dias e entrar de vez nessa sociedade que, segundo Israel, é voltada ao culto à Ori, que significa um culto à sabedoria. E, para ele, nesse culto não há
espaço para preconceitos e intolerâncias. Mas não é assim com todas as sociedades e todos os cultos. “O que se vê hoje é disputa de dinheiro”, afirma.

O comportamento individual e coletivo da religião, que começa a partir da melhora de si mesmo e depois do ambiente de moradia, juntamente com uma educação religiosa não dogmática, mas voltada para a diversidade e aceitação das diferenças, são mais significativos que passeatas e marchas, segundo Israel.

“Nós do axé temos que dizer a que viemos e temos que mudar comportamentos. Para isso, temos que dar exemplos. 

Acredito que da maneira como essas passeatas e organizações são feitas hoje, elas não funcionam efetivamente. São muito mais um desfile de egos do que um meio para discutir e apresentar propostas para a superação dos problemas religiosos. 

Enquanto nós não tivermos instrumentos adequados para oferecer boa educação religiosa para as crianças, temos que recuperar os adultos. 

E isso tem que ser feito por comportamentos e exemplos positivos que começam dentro de nós mesmos e depois partem para a sociedade”.
fonte: http://jornalocasarao.com/2013/11/21/credo/




O PAI-DE-SANTO E O BABALAÔ: interação religiosa e rearranjos rituais na religião dos orishas



Revista Pós Ciências Sociais. v. 8 n. 16 São Luis/MA, 2011.

O PAI-DE-SANTO E O BABALAÔ: interação religiosa e rearranjos rituais na religião dos orishas

Stefania Capone*


* Stefania Capone é Directrice de recherche no Centre National de Recherche Scientifique (CNRS) e ensina no Departamento de Antropologia da Universidade de Paris-Nanterre (França). E’ a autora de A busca da Africa no candomblé. Tradição e poder no Brasil (Rio, Pallas, 2004; ed. original, Paris, Karthala, 1999, também traduzido para o inglês, Duke University Press, 2010) e de Os Yoruba do Novo Mundo: religião, etnicidade e nacionalismo negro nos Estados Unidos (Rio, Pallas, 2011; ed. original, Paris, Karthala, 2005). Ela se consagra atualmente ao estudo dos processos de transnacionalização religiosa e da expansão das religiões afro-americanas na Europa e nas Américas, tendo coordenado varios números especiais sobre estes temas em revistas internacionais, assim como um livro coletivo, La religion des orisha: un champ social en plein recomposition (Paris, Hermann, 2011).

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RESUMO

Este artigo visa a analisar a expansão das religiões afro-americanas para além das barreiras étnicas e nacionais. Sua expansão tem criado redes de parentesco ritual que têm facilitado a circulação de valores, símbolos e práticas entre as diferentes variantes religiosas afro-americanas, ajudando a construir a chamada “religião dos orishas”. O artigo se concentrará na crescente interconexão de diferentes tradições regionais, especialmente o candomblé brasileiro e a santería cubana, e na influência que práticas rituais e discursivas, elaboradas em um contexto tri-continental, estão exercendo sobre práticas religiosas locais. A análise da reintrodução do culto de Ifá nas casas de candomblé e as mudanças estruturais provocadas na hierarquia e nos processos de legitimação religiosa mostrarão como o contexto transnacional, dentro do qual as religiões afro-cubanas e afro-brasileiras estão evoluindo, não somente modifica como exacerba as lutas locais pelo poder religioso.

Palavras-chave: Candomblé. Santería. Ifá. Transnacionalização. Mediunidade. Gênero. Hierarquia religiosa.

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ABSTRACT

This article is concerned with the expansion across ethnic and national barriers of Afro-American religions. Their spread has created transnational networks of ritual kinship that facilitate the circulation of values, symbols and practices between different modalities of Afro-American religions, helping to build the so-called “orisha religion”. The article will focus on the growing interconnectedness between different regional traditions, namely Brazilian Candomblé and Cuban Santería, and on the influence that ritual and discursive practices, taking place in a tri-continental context, are having on local religious practices in the Diaspora. The analysis of the reintroduction of Ifá worship in Candomblé houses, and the subsequent structural changes in hierarchy and legitimacy, will show how the transnational context in which Afro-Cubans and Afro-Brazilian religions are now evolving not only modifies the extent of local struggles for religious power but also exacerbates it.

Keywords: Candomblé. Santería. Ifá. Transnationalism. Mediumship. Gender. Religious hierarchy.

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1          INTRODUÇÃO

Uma das mudanças mais significativas no campo das religiões afro-americanas é sua recente expansão para além das barreiras étnicas e nacionais. Nas últimas décadas, estas religiões passaram de secretas e perseguidas a religiões públicas e respeitáveis, alcançando pessoas de diferentes origens sociais, assim como estrangeiros, que estão importando estas religiões para seus próprios países. A expansão destas religiões tem criado redes de parentesco ritual que ultrapassam as fronteiras nacionais, fazendo surgir comunidades transnacionais de praticantes como, por exemplo, o batuque ou africanismo na Argentina e no Uruguai, e a santería ou Regla de Ocha no México e nos Estados Unidos. A proliferação destas redes cada vez mais ativas de sacerdotes e suas tentativas de ser reconhecidos como praticantes de uma verdadeira “religião universal”1 tornou-se um aspecto importante do conjunto das  tradições dos orishas desde a década de 19802.

As religiões afro-americanas são historicamente caracterizadas por sua extrema fragmentação e ausência de uma autoridade superior que possa impor uma qualquer ortodoxia a seus seguidores. No entanto, nos forums internacionais, líderes religiosos almejam a unificação de suas práticas, destacando a existência de um alicerce comum a todas as modalidades das religiões afro-americanas. Desde o começo dos anos 1980, ocorreram várias tentativas de padronizar as práticas religiosas afro-americanas. As Conferências Internacionais da Tradição dos Orixás e Cultura (também conhecidas como COMTOC ou Congressos Mundiais dos Orishas) ajudaram a criar redes que põem em contato iniciados do candomblé brasileiro, da santería cubana, do vodu haitiano, do orisha-voodoo norte americano e da “religião tradicional” yoruba. Estas tentativas geram novas formas de “creolização” religiosa, nas quais o trabalho sincrético – a base histórica destes tipos de religião – é ressignificado, dando preferência a variações endógenas africanas ou afro-americanas em detrimento de influências exógenas européias ou católicas (CAPONE, 2007b). Os empréstimos rituais de práticas ligadas aocandomblé brasileiro na religião lucumí dos cubanos radicados em Miami, assim como os empréstimos rituais de práticas adivinhatórias originárias de Cuba e da Nigéria no candomblé brasileiro, são exemplos desta tensão fundadora entre unificação e fragmentação dentro destes fenômenos religiosos.

As Conferências Internacionais da Tradição dos Orixás e Cultura (COMTOC) foram as primeiras a tentar organizar uma rede internacional de iniciados nas religiões de origem africana. Desde o seu começo, estes encontros tinham como objetivo reunir líderes religiosos yorubás e da diáspora no intuito de unificar a tradição dos orishas3. Os principais tópicos de discussão destes fóruns são as múltiples facetas da tradição, a padronização das práticas religiosas e a luta contra o sincretismo, assuntos comuns às diferentes modalidades das religiões afro-americanas. As redes entre praticantes, desenvolvidas durante as COMTOC, assim como sua forte presença na internet, têm facilitado a circulação de valores, símbolos e práticas entre as diferentes variantes religiosas, ajudando a construir a chamada “religião dos orishas”4.

Este artigo se concentrará na crescente interconexãode diferentes tradições regionais e na influência que práticas rituais e discursivas, elaboradas em um contexto tri-continental, estão exercendo sobre práticas religiosas locais. Nos últimos anos, esta interconexão tem envolvido duas das mais importantes religiões afro-americanas: o candomblé e a santería ou religião lucumí. Brasileiros iniciam cubanos americanos no culto a orixás caídos no esquecimento em Cuba e nos segredos do culto do orí (a cabeça) (CAPONE, 2007a), enquanto cubanos e nigerianos iniciam brasileiros nos segredos das práticas divinatorias de Ifá. A análise da reintrodução do culto de Ifá nas casas de candomblé, através dos cursos de língua yoruba, e as mudanças estruturais provocadas na hierarquia e nos processos de legitimação religiosa mostrarão como o contexto transnacional, dentro do qual as religiões afro-cubanas e afro-brasileiras estão evoluindo, não somente modifica como exacerba as lutas locais pelo poder religioso. A mediunidade se torna então um dos principais pivôs rituais na reorganização da hierarquia religiosa, opondo os pais-de-santo (líderes do culto, babalorixás) e os babalaôs (os mestres das artes divinatorias)5.

2             A VOLTA À ÁFRICA OU A BUSCA DA TRADIÇÃO

Ifá, o mais elaborado dos sistemas africanos de adivinhação, ocupa uma posição única no que é chamado de “religião tradicional yoruba”. De acordo com J.D.Y. Peel (1990, p. 338), sua difusão no âmbito da religião yoruba está diretamente relacionada à “sua capacidade de ‘cavalgar a onda’ das mudanças sociais”. A atual difusão do sacerdócio do babalawo, o especialista da adivinhação de Ifá, em vários locais da diáspora, parece confirmar a “flexibilidade” do babalawo e sua capacidade de “responder em seus próprios termos a novas experiências” (PEEL, p. 348).

Vários autores têm monstrado que, se as religiões dos orishas se formaram num contexto de migração forçada, elas também foram reelaboradas no Novo Mundo através de viagens livremente escolhidas que têm alimentado as trocas com a “Terra das origens” e a circulação de produtos religiosos, de especialistas e de práticas rituais entre a África e as Américas durante os séculos XIX e XX6. Lorand Matory (2005, p. 50), entre outros, analisou as viagens e o comércio entre Brasil e África, demonstrando como uma classe de comerciantes afro-brasileiros contribuiu com a elaboração da cultura e da religião tradicional yoruba. Os elos entre o Brasil e a África, especialmente a Nigéria e o atual Benim, nunca foram completamente rompidos, mesmo após o fim do tráfico negreiro em meados do século XIX.

As primeiras viagens de descendentes de africanos entre o Brasil e a África remontam a este periodo, quando o movimento de retorno à costa oeste da África se fortaleceu entre os escravos libertos. Este movimento, que começou com a rebelião mal-sucedida de 1835 na Bahia e a expulsão dos rebeldes condenados, em breve adquiriu, para os membros do candomblé, a natureza de uma jornada simbólica rumo à Terra das origens. Ir para a África significava refazer o elo com a tradição religiosa que tinha sido rompido pela escravidão, tornando-se rapidamente uma poderosa fonte de prestígio para os membros do candomblé.

Várias histórias são relembradas sobre as idas e vindas entre o Brasil e a África das mais renomadas personalidades do candomblé baiano. O exemplo mais conhecido é, sem dúvida, o de Martiniano Eliseu do Bonfim. Principal informante de Raymundo Nina Rodrigues e figura lendária do candomblé da Bahia, ele foi, com o seu pai, pela primeira vez à Nigéria em 1875, permanecendo em Lagos até 1886. Roger Bastide (1971, p. 233) justifica suas viagens pelo desejo de “aprender a arte da adivinhação antes de se tornar o babalaô mais famoso da Bahia”. Com sua viagem, Martiniano do Bonfim ganhou de fato grande prestígio entre os membros do candomblé e em pouco tempo tornou-se um dos babalaôs (adivinhos) mais procurados de Salvador (VERGER, 1981, p. 32). Em 1910, Martiniano ajudou Mãe Aninha (Eugênia Ana dos Santos) a fundar o terreiro do Axé Opô Afonjá, considerado um dos bastiões da “tradição africana” no Brasil. Martiniano do Bomfim, que morreu em 1943 (CARNEIRO, 1986, p. 120), é geralmente considerado um dos últimos babalaôs no Brasil, assim como Felisberto Sowzer, que era membro de uma “dinastia de sacerdotes e viajantes lagosianos-brasileiros, a começar com o seu avó adivinho [originário] de Oyo, Manoel Rodolfo Bamgbose” (MATORY, 2005, p. 47)7.

Outros sacerdotes, já ativos no Brasil, fizeram a viagem de volta à Terra das origens não para aprender, mas para exercer seu conhecimento ritual. De acordo com Peel (1990, p. 352), José Felipe Meffre, que havia voltado do Brasil, praticava a adivinhação de Ifá em Lagos na década de 1850 com objetos rituais que trouxera do Brasil, tornando-se rapidamente “notável e sem paralelos aqui [em Badagry] e em Lagos”8.

As viagens entre o Brasil e o país yorubá exigiam, no entanto, o conhecimento das línguas africanas. No início do século XX, Nina Rodrigues (1988, p. 129) já ressaltava o papel de língua franca desempenhado pelo yorubá (o nagô) entre a população escrava da Bahia. Contudo, ele reconhecia que confiar totalmente na memória dos descendentes de escravos podia às vezes induzir a erros, nos planos tanto cultural quanto lingüístico:

Tão conhecido é o fato da importância da língua nagô na Bahia que se tem chegado mesmo ao exagero. Quando em 1899 estiveram nesta cidade [Salvador] os missionários católicos que percorriam o Brasil angariando donativospara a catequese africana, foram eles aconselhados a dirigir-se à população de cor da cidade em língua nagô. O sermão pregado na igreja da Sé no dia 4 de janeiro teve completo insucesso, reunindo apenas alguns curiosos. [...] era um erro supor que entre nós se mantivesse na população crioula uma língua nagô tão pura que lhe permitisse entender o missionário; os que falam alíngua antes se servem de um patois, abastardado, do português e de outras línguas africanas (NINA RODRIGUES, 1988, p. 132)9.

No entanto, isto não impediu que Nina Rodrigues (que colaborava com Martiniano do Bonfim, seu principal informante) enfatizasse a superioridade da língua yorubá: “Ela possui, mesmo entre nós, uma certa feição literária que eu suponho não ter tido nenhuma outra língua africana no Brasil, salvo talvez o haussá, escrito em caracteres árabes pelos negros muçulmis” (NINA RODRIGUES, 1988). Trinta anos mais tarde, o etnólogo baiano Édison Carneiro reafirmava a necessidade de estudar a língua nagô, “a língua latina do Sudão” (CARNEIRO, 1991, p. 110). Em 1933, Carneiro tinha começado a aprendero nagô com Martiniano do Bonfim como professor e com a ajuda do ‘Guia prático de yorubá ou nagô, a língua mais difundida na Costa ocidental da África’, da Sociedadedas Missões Africanas de Lyon (França) (CARNEIRO, 1991, p. 113).

Aprender a língua das origens é um sonho que perdura desde então. Em1959, a primeira cadeira de ensino do yorubá na Bahia foi criada no Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) da Universidade Federal da Bahia. Esta cadeira foi ocupada por Ebenezer Latunde Lashebikan, um professor vindo especialmente da Nigéria. Como previsto, muitos membros do candomblé compareceram a esse curso, que desde 1965 começou a ser oferecido regularmente no CEAO. Em 1974, foi assinado um acordo entre o governo brasileiro, a Universidade Federal da Bahia e a prefeitura de Salvador, para lançar um programa de cooperação cultural entre o Brasil e vários países africanos, que visava, entre outras coisas, o desenvolvimento dos estudos afro-brasileiros.

Esse acordo facilitou a vinda ao Brasil de vários nigerianos, como estudantes ou como professores de língua yorubá. Foi o caso, em 1976, de Olabiyi Babalola Yai, “un lecturer no Departamento de Letras africanas da Universidade de Ifé, que esteve no Brasil [...] como professor de língua yorubá na Bahia” (ABIMBOLA, 1976b, p. 619). A importância dada aos cursos de língua yorubá pelos iniciados no candomblé era a resposta ao que Abimbola define como um “problema linguístico”: “É uma situação dolorosa para muitos devotos dos orixás, que pagariam qualquer preço para adquirir a habilidade lingüística [necessaria a] proporcionar a compreensão de seu próprio repertório [ritual]” (ABIMBOLA, 1976b, p. 634).

A Universidade de Ifê decidiu então enviar professores de yorubá para o Brasil, com o objetivo de ajudar os adeptos do candomblé a compreender, finalmente, o significado de seus cantos sagrados. Mas a distância espacial exacerbava o “problema lingüístico”, porque os iniciados no culto dos orixás no Brasil tinham ficado tempo demais separados de seus irmãos africanos. Em vista disso, Abimbola sugeriu coordenar visitas de intercâmbio regulares, por meios públicos ou privados, para facilitar o contato entre iniciados da África e das Américas (ABIMBOLA, 1976b, p. 635).

Os cursos de língua yorubá rapidamente se multiplicaram, marcando presença em várias cidades brasileiras, especialmente São Paulo e o Rio de Janeiro. Em 1977, a Universidade de São Paulo (USP) e o Centro de Estudos Africanos organizaram o primeiro curso de língua e cultura yorubás, no departamento de Ciências Sociais. Durante dez anos, mais de seiscentos alunos, na maioria pais e mães-de-santo de candomblé, frequentaram esse curso. Os estudantes nigerianos encarregados das aulas não demoraram a perceber queos alunos estavam mais interessados nos “fundamentos” do culto que na língua yorubá. Com o tempo, o aprendizado da língua passou assim para o segundo plano, superado pelos ensinamentos dos mitos e ritos das divindades yorubás10.

Enquanto oficialmente ensinavam yorubá, estes estudantes nigerianos começaram a dar aulas sobre os rituais dos orixás. Para isso, baseavam-se nas obras dos africanistas, que, graças a seu conhecimento do inglês, traduziam para o público brasileiro. Passou-se assim da transmissão oral, que é tradicionalmente a base do aprendizado no candomblé, para o estudo de um conjunto de obras “sagradas”, escritas, em sua maioria, por antropólogos, como Sixteen Cowries (1980) e Ifa Divination (1969) de William Bascom.

O antropólogo Vagner Gonçalves da Silva, que participou dos cursos da USP, descreve assim o choque causado por essa nova fonte de conhecimento entre os iniciados mais ligados à tradição brasileira:

No curso, descobre-se com grande entusiasmo a existência de livros que descortinam informações consideradas muitas vezes tabu no interior dos terreiros. A possibilidade de aulas e contatos com africanos, além de fornecer os rudimentos do yorubá (que podem ser utilizados na tradução de cantigase nomes dos orixás), permite relativizar questões que até então se apresentavam como dogmáticas ou mesmo descaracterizar um conhecimento tido até então como “seguro”. Vi em muitos dos meus amigos de curso, principalmente aqueles mais velhos no santo, um olhar de decepção com relação à distância que havia entre o culto brasileiro aos orixás (ao menos da formacomo era praticado em seus terreiros, mesclado com outras nações, como a angola, ou tributários de influências católicas) e aquele praticado na África, segundo as descrições dos nigerianos. Estes alunos logo abandonavam as aulas prevendo a impossibilidade de compatibilizar os ensinamentos recebidos no terreiro com aqueles das lições na sala de aula. Já os mais novos, ou aqueles que de certa maneira discordavam de algumas práticas brasileiras como o sincretismo, puderam, a partir deste curso, redefinir alguns de seus conceitos religiosos e legitimá-los também “via acadêmica” (SILVA, 1992, p. 237).

Apesar destas preocupações legítimas, acompanhar os cursos de língua e civilização yorubás assim como os cursos paralelos sobre os "fundamentos" da religião tornou-se, em alguns círculos de praticantes do candomblé, sinônimo de cultura e aperfeiçoamento na carreira sacerdotal. Se os velhos pais-de-santo eram, em sua maioria, todos analfabetos e sem educação formal, os novos iniciados, especialmente nas grandes cidades do Sudeste do Brasil, são hoje educados, estudam em universidades e podem falar diversas línguas. Os cursos sobre os orixás se desenvolveram assim, progressivamente, em instituições criadas com este propósito. A grande demanda do mercado religioso - esta sede por mais conhecimento sobre a religião - fez dos cursos um sucesso.


3          ESTUDAR OS ODÙ NO RIO DE JANEIRO

O primeiro Curso de Cultura Afro-Brasileira foi organizado no Rio de Janeiro em 1976 por Ornato José da Silva, um babalorixá e autor de livros sobre o candomblé. Ele trabalhou em conjunto com um jovem nigeriano, Benjamin Durojaiye Ainde Kayodé Komolafe (Benji Kayodé), que, na época, era estudante de medicina na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Kayodé se apresentava como um awó11 recém chegado da Nigéria. Este primeiro “curso de base para a formação de seminaristas [sic] nos cultos afro-brasileiros” foi realizado na Congregação Espiritualista Umbandista do Brasil (CEUB). Entre a primeira leva de alunos, estavam duas grandes figuras que contibuiram com a difusão deste tipo de cursos no Rio de Janeiro: Ruth Moreira da Silva e José Beniste. Foi também em 1976 que a Sociedade Teológica Yorubá de Cultura Afro-Brasileira foi fundada, sob a direção de Eduardo Fonseca Jr. Jornalista de profissão. Fonseca organizou a primeira Semana de Cultura Afro-Brasileira nesse mesmo ano, contando com a presença do embaixador da Nigéria, Olajide Alo, que, em seu discurso de encerramento, enfatizou a importância de tais iniciativas para o desenvolvimento das relações entre a África e o Brasil.

Em 1977, a Sociedade Teológica Yorubá de Cultura Afro-Brasileira contratou, como professor de yorubá, outro jovem nigeriano, Joseph Olatundi Aridemi Osho, estudante da Escola de Engenharia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Esta experiência durou até o começo de 1979, quando ele começou a dar aulas no Centro de Estudos e Pesquisas da Cultura Yorubá, fundado em 1977 por Fernandes Portugal. A ambição do centro era reunir adeptos da religião e pesquisadores em Ciências Sociais, especializando-se no estudo da cultura afro-brasileira. Para tanto, foram organizadas conferências em terreiros, associações, e em uma universidade privada do Rio de Janeiro, a Estácio de Sá, assim como cursos de yorubá no próprio centro. O público que frequentava estes cursos era formado por adeptos da religião que buscavam aprofundar seus conhecimentos da cultura yorubá. Queixavam-se de que eram forçados a isso porque “os velhos” não haviam transmitido às novas gerações todo o saber de que dispunham e, por causa disso, era preciso ir em busca dos conhecimentos perdidos.

Uma das práticas rituais que haviam sido esquecidas no Brasil era a adivinhação pelos odùs, isto é, as configurações (signos) que constituem a base do sistema de adivinhação de Ifá12. Os dezesseis odùs principais chegam a formar duzentos e cinquenta e seis combinações ligadas, cada uma delas, a uma história (itán) do corpus de conhecimentos de Ifá. O objetivo da adivinhação é então revelar, através da identificação do odù e do itán correspondente a cada situação particular, os sacrifícios que os homens devem fazer para restaurar a harmonia entre o mundo material e o mundo espiritual13. Os primeiros cursos de adivinhação incluíam assim o aprendizado do corpus de conhecimentos de Ifá, combinado com o estudo da língua yorubá.

Em 14 de janeiro de 1978, Benji Kayodé e Richard Yinka Alabi Ajagunna, outro estudante nigeriano da Escola de Medicina do Rio de Janeiro, realizaram a cerimônia de encerramento do primeiro curso de adivinhação africana, outorgando o título de omo Ifá (“filho de Ifá”) a seus alunos. Tornar-se omo Ifá equivale a ter recebido a “mão de Orunmilá” (awo fakan),  primeiro grau no processo de iniciação do novo babalaô, quando um homem descobre o odù que guia sua vida material e religiosa14. No final da década de 1970, outro babalorixá, Torodê de Ogum, começou a organizar cursos de língua yorubá e mitologia dos orixás na sua casa de culto, o Ilé Axé Ogun Torodê, no Rio de Janeiro. Após ser confirmado como omo Ifá em 1978, Torodê prosseguiu sua iniciação para tornar-se babalaô, realizando cerimônias anuais com os nigerianos. Após vários anos de estudo, Torodê recebeu de Kayodé o título de babalaô e, a partir de 1984, começou a ensinar ele mesmo a prática adivinhatória de Ifá, assim como a cultura e os rituais yorubás. Em seu próprio terreiro, ele organizava um ou dois grupos de estudo por ano, com cerca de quarenta a cinquenta pessoas, geralmente iniciados interessados nas tradições africanas, mas a iniciação no candomblé não constituia um fator decisivo para ser aceito no curso, pois, de acordo com o próprio Torodê, era possível ser um sacerdote de Ifá sem ser iniciado no culto dos orixás15. Torodê fala das consequências destes cursos no meio do candomblé:

Houve um choque devido aos costumes brasileiros, [aos orixás] estarem sincretizados comos santos da Igreja Católica. Quando [os nigerianos] tentaram cortar, desvincular essa situação, os mais radicais, que achavam que Santa Bárbara era Iansã e que Ogum era São Jorge, não se conformaram. [...] Eu achava absurdo no Brasil, não podia entender por que Ogum teria que ser, para o baiano, Santo Antônio, que era português. Ou São Jorge, que era Jorge da Capadócia, sírio, e foi para o exército romano. Foi por isso que, quando o meu pai-de-santo morreu em 1971, eu tive uma curiosidade incrível de procurar a matriz na África.

Os anos 1980 foram caracterizados por uma demanda crescente por informação sobre os “fundamentos” e as práticas rituais “tradicionais”. José Beniste, autor de vários livros sobre os orixás, lançou o Programa Cultural Afro-Brasileiro na Rádio Roquette Pinto e começou a dar cursos com Richard Ajagunna na zona norte do Rio de Janeiro, beneficiando da colaboração de Ruth Moreira da Silva, que também ministrava um curso com ele no Instituto Brasil-Nigéria. Desde 1990, outro curso sobre as práticas adivinhatórias foi dado por Adilson Antônio Martins (Adilson de Oxalá), que tinha sido iniciado em 1968 no candomblé jeje. Adilson começou a se interessar pelo culto de Orunmilá (Ifá) quando chegaram os estudantes nigerianos e trabalhou junto a eles em pesquisas bibliográficas. Mas sua iniciaçãocomo awo fakan foi realizada, em 1992, por um babalao cubano, Rafael Zamora Diaz, que tinha acabado de chegar ao Rio de Janeiro.

Zamora, um ex-jornalista da TV cubana, tinha vindo ao Brasil em 1991 com o projeto de fazer um documentário sobre as “religiões africanas” em Cuba e no Brasil. Casado com uma jornalista carioca, Zamora estabeleceu-se no Rio e organizou, em 1992, a primeira cerimônia de awo fakan e de kofá, seguindo a tradição cubana de Ifá. Entre os membros deste primeiro grupo de iniciados estava Adilson Antônio Martins, sua esposa, Lúcia Petrocelli Martins (que se tornou a primeira apetebí brasileira segundo a tradição cubana) e Alberto Chamarelli Filho.

Em agosto de 1992, Rafael Zamora (Awó ni Orunmilá Ifá Biyi Omó Odù Ogunda Keté) iniciou em Cuba o primeiro babalao brasileiro, Alberto Chamarelli Filho. Anos depois, Adilson Antônio Martins completou sua iniciação em Ifá com um babalawo nigeriano, Adisa Arogunda de Adekunle, recebendo o nome ritual de Babalawo Ifáleke Awó ni Orúnmilá Omó Odu Ogbe-Bara16. Hoje, vários babalaos cubanos moram no Rio de Janeiro e têm criado ramas (familias religiosas de Ifá segundo a tradição cubana) nesta cidade.


4          REIMPLANTANDO IFÁ NO CANDOMBLÉ

A presença dos babalaos cubanos na cidade do Rio de Janeiro ofereceu novos modelos rituais aos iniciados do candomblé, uma religião que, ao contrário do que geralmente se crê, está presente há muito tempo na antiga capital do Brasil (RIO, 1976; CAPONE, 2004a). A inserção do culto de Ifá, segundo suas vertentes dominantes – a nigeriana e a cubana – em um sistema ritual, como o do candomblé, estruturado em torno de uma complexa hierarquia religiosa, na qual os pais e as mães-de-santo são as principais figuras de autoridade e a mediunidade é altamente valorizada, não podia deixar de acarretar novas tensões no campo religioso afro-brasileiro. Se, em Cuba, o sacerdócio de Ifá é restrito aos homens heterossexuais que não entram em transe, no candomblé brasileiro as posições mais elevadas na hierarquia ritual continuam sendo o apanágio de mulheres e de homens, frequentemente homossexuais, que incorporam suas próprias divindades. Uma vez escolhidos pelos orixás, os homens e as mulheres que não entram em transe ocupam funções religiosas específicas (ogã e ekede), mas serão sempre subordinados a seus próprios iniciadores: os pais e as mães-de-santo de candomblé. Além disso, a mediunidade, que é a capacidade de um indivíduo de entrar em transe e incorporar as divindades, é uma condição necessária à reprodução das linhagens religiosas. No candomblé, repete-se incessantemente que, sem ter realizado os rituais de iniciação como iyawó evivenciado o transe dos deuses, não seria possível iniciar outras pessoas, porque “não se pode transmitir o que não se recebeu”.

O caso de um terreiro nos subúrbios do Rio de Janeiro é exemplar das tensões entre estes dois sacerdócios – o pai-de-santo e o babalaô –, determinadas pela superposição de diferentes sistemas hierárquicos. Se Ifá compartilha com o candomblé, o fato de pertencer ao “complexo cultural yorubá”, sua integração às práticas rituais do candomblé não é sem consequências, podendo até acarretar à destruturação do grupo religioso.

O Ilê Axé Omo Alaketu é um terreiro de candomblé ketu17, fundado em 1975 pelo pai-de-santo Carlinhos de Odé (Carlos Alberto Assef)18. A história de Pai Carlinhos é representativa das trajetorias religiosas dos iniciados nas casas de candomblé do Sudeste do Brasil. Umbandista reconhecido por suas habilidades mediúnicas, ele foi inspirado por seus guias a aprofundar sua busca espiritual iniciando-se no candomblé, uma religião considerada “mais próxima das raízes africanas”. Ele foi iniciado em São Paulo em 1975 e abriu rapidamente sua própria casa de culto em Imbarié, um subúrbio popular do Rio de Janeiro. O terreno no qual o terreiro foi construído foi comprado pelo irmão de Carlinhos, João, que havia sido confirmado como ogã da casa por uma mãe-de-santo baiana, Edeuzuita de Oxoguiã, iniciada na “nação” ketu. Carlinhos já tinha pedido o auxílio de outros especialistas religiosos para compensar a distância do seu iniciador paulista. Outra mãe-de-santo, Letícia, o tinha ajudado em suas primeiras iniciações e Edeuzita de Oxoguiã, que era parte de um axé (tradição religiosa) prestígioso em Salvador, realizou a iniciação de Regina, a esposa de Carlinhos, assim como os rituais de confirmação de João, seu irmão. Regina tornou-se assim a mãe pequena do terreiro, enquanto João tornou-se o principal ogã do Ilê Axé Omo Alaketu19. A grande influência de Edeuzuita teve, como resultado, a “correção” da iniciação de Carlinhos. De acordo com ela, Carlinhos tinha sido feito19 “pela metade”, já que deveria também ter sido iniciado para Oxalá, orixá que compartilhava sua cabeça junto a Odé.

Ao fazer isso, Carlinhos “trocou as águas”, colocando-se sob a supervisão ritual de uma mãe-de-santo, membro de uma prestigiada “nação” de candomblé. “Trocar as águas” – onde a água representa a tradição religiosa ou “nação” – é uma das formas mais eficientes de renegociação dos elos rituais. Ao se colocar sob a proteção de outro pai ou outra mãe-de-santo, o iniciado rompe o vínculo de submissão com o seu terreiro de origem. Esta prática, que é muito comum no candomblé, constitui de fato uma poderosa estratégia de legitimação do percurso religioso dos iniciados.

Esta busca por uma origem religiosa mais valorizada, mais próxima das “raízes da tradição”, não é uma estratégia restrita às elites do candomblé baiano, mas está bem presente na vida quotidiana de muitos iniciados. Na prática, no candomblé, sempre se pode trocar de “nação” graças às “obrigações” (as cerimônias rituais). Após a “feitura do santo”, momento da integração definitiva dentro de uma casa de candomblé, o novo iniciado deve realizar uma série de rituais que confirmam o seu status dentro do grupo religioso. Após a feitura, será assim realizada a obrigação para o primeiro, o terceiro, o sétimo, o décimo quarto e o vigésimo primeiro anos de iniciação. Cada uma destas cerimônias rituais pode acarretar uma “troca das águas”, ou seja, uma mudança de afiliação religiosa. Uma pessoa pode ser assim iniciada em um terreiro de “nação” angola e realizar sua cerimônia ritual de um ou de sete anos em outro terreiro e com outra mãe ou outro pai-de-santo. Essas mudanças podem também ser resultado de conflitos ou incompreensões, como acontece com frequência nas casas de candomblé, levando à troca de “nação” ou de zelador de santo21.

Edeuzuita de Oxoguiã tornou-se então a zeladora de santo de Carlinhos em um momento no qual o terreiro dele estava no auge, com um grande número de iniciados e clientes. Em 1983, quando João Velho, que foi confirmado como ogã do Ilê Axé Omo Alaketu, começou a participar das atividades do terreiro, a casa de culto estava já no meio de um processo de “reafricanização”. Regina, a mãe pequena, dava aulas aos membros do terreiro sobre os “fundamentos” da religião, explicando a significação das palavras nagô (yorubá) usadas nas práticas rituais e proporcionando dados sobre a prática tradicional da religião yorubá22. João Velho descreve assim este processo de “reafricanização”, que consiste de forma geral em uma intelectualização e racionalização das práticas religiosas:

O aspecto ritualístico era muito forte, mas no que dizia respeito à ética e à filosofia, havia uma lacuna. Eu acho que esse é o ponto fraco do modelo baiano do candomblé. Eu acho que tudo vem da falta de conhecimento da língua yorubá. Estavamos realizando cerimônias sem saber de fato o que elas significavam. [...] A fé era grande, mas estava baseada em uma ideologia do medo, ignorância e submissão a um puro ritualismo. Naquela época, nós não tínhamos nenhuma outra informação. Não tínhamos acesso aos cubanos ou aos nigerianos. A liderança baiana era a única a impor suas próprias regras religiosas.

Em 1988, o falecimento da mãe pequena desencadeou uma verdadeira crise dentro do grupo religioso, levando ainda mais a aprofundar a busca pelos fundamentos. Este processo de “volta às raízes” levou Pai Carlinhos e seu irmão João a organizar uma viagem à África, para “rencontrar a tradição africana”. Na Nigéria, João Assef realizou uma adivinhação com o Araba de Ifé, o chefe do culto de Ifá naquela cidade, e descobriu que precisava ser iniciado nesse culto. No início, isso causou grande incompreensão, porque o culto de Ifá havia desaparecido das casas de candomblé. João Velho explica assim o quão complexo esta notícia foi para os dois irmãos: “A religião deles era o candomblé. Mas o candomblé não tinha nada a ver com a ‘cultura de Ifá’. Como na maioria das casas de culto brasileiras, nós não tínhamos nenhuma informação sobre Ifá.”

Em 1995, os dois irmãos finalmente encontraram uma oportunidade de redescobrir a “cultura de Ifá”. Naquele momento, Rafael Zamora era o único babalao cubano morando no Rio de Janeiro e já tinha começado a introduzir no candomblé o sistema de adivinhação de Ifá, segundo a tradição cubana. O primeiro membro do Ilê Axé Omo Alaketu que participou de uma cerimônia dirigida por Rafael Zamora foi o irmão de Pai Carlinhos, João Assef. Durante esse ritual, ele recebeu a “mão de Orunmilá” (awo fakan), primeiro nível de iniciação masculina no sacerdócio de Ifá. Ao se tornar awo fakan, João abriu seu próprio terreiro às influências rituais dos cubanos e de seus seguidores. Zamora já havia iniciado, como babalaos, um grupo de cinco brasileiros que tinham viajado a Cuba para concluir sua iniciação. De fato, para iniciar um novo babalao, segundo a tradição cubana, é preciso reunir oito babalaos que conduzirão os rituais de iniciação. Nos anos 1990, isto era impossível no Rio de Janeiro e a viagem à Cuba tornava-se inevitável. Em abril de 1996, João Assef foi então para Cuba para se iniciar como babalao. Ao retornar, outros membros de seu terreiro começaram a se interessarem pelo sistema ritual importado de Cuba, considerado mais próximo das tradições yorubás.

Ao contrário do que ocorreu com os cursos de adivinhação ministrados pelos professores nigerianos, o culto de Ifá não atraiu os chefes dos terreiros, mas seus ogãs. Os babalaos cubanos insistiam no fato de que uma iniciação em Ifá não era compatível com o exercício da mediunidade. Portanto aqueles que entrassem em transe não poderiam tornar-se babalaos. Ora, por definição, os ogãs não são possuídos pelos deuses. Assim, após João Assef, o principal tocador (alabé) da casa também foi iniciado no culto de Ifá. Essa iniciação logo se tornou a causa de um novo drama: “Eles começaram a brigar. Assim que foi iniciado em Ifá, o ogã começou a agir como se ele fosse mais importante que seu próprio pai-de-santo. Muita gente deixou a casa naquela época. Foi em 1997.”

Esta crise foi provocada pela transgressão de uma regra tácita no candomblé que quer que o líder da casa seja o único a poder realizar a adivinhação no terreiro, graças ao dilogún ou jogo de búzios23. No entanto, no caso do terreiro de Pai Carlinhos, a adivinhação já não era mais o monopólio do pai-de-santo, pois seu irmão, João Assef, já tinha se tornado o babalao da casa. De acordo com João Velho, este não foi o único efeito da forte influência cubana na casa de culto:

A “cultura cubana” influenciou profundamente o terreiro, conseguindo modificar os rituais. Nós adotamos o coco [quatro partes do coco, côncavas e convexas, usadas na adivinhação], cantigas lucumís [de santería] para o sacrifício de animais, a moyuba24... eu lembro que nós freqüentemente seguíamos os dois rituais durante os sacrifícios. O pai-de-santo nos dizia que, para os orixás, não fazia diferença, que poderia se esperar o mesmo efeito após um ritual ketu ou un ritual lucumí. Ele explicou que eram dois caminhos que levavam ao mesmo objetivo: entrar em contato com os orixás. Mas a maioria dos filhos-de-santo não entendía. Havia muita discussão entre nós.

Supervisionados por Zamora e seu grupo de babalaos, Carlinhos e João Assef começaram a “cubanizar” os rituais de candomblé. A adivinhação com a noz de cola, geralmente usada no candomblé, foi assim substituída pela adivinhação com os quatro pedaços de coco, chamados em Cuba de obí, o mesmo termo que designa a noz de cola na Nigéria e no Brasil. Isso foi paradoxal, já que, em Cuba, a falta de nozes de cola tinha forçado os praticantes a substituir o fruto africano por cocos. Portanto, ao invés de “reafricanizar” a religião, o que estava ocorrendo era um processo de “cubanização” dos rituais de candomblé. Além disso, quando altares individuais eram consagrados, o númsero de pedras (otã) no assentamento foi modificado para se encaixar na tradição cubana. Na mesma lógica, os rituais cubanos do lavatorio e do paritorio25 começaram a ser efetuados durante a iniciação e até a adivinhação com o dilogún foi modificada. Após realizar a cerimônia de awo fakan, que o colocou numa posição de dependência frente ao seu iniciador cubano, Carlinhos tinha sido confirmado por Zamora como oriaté, o especialista cubano da adivinhação com os búzios e “mestre de cerimônias” durante os rituais de iniciação. Ele começou então a consultar os tratados de Ifá, muito populares em Cuba, para “corrigir” a forma como se “lêm” os búzios no candomblé. Na maioria das casas de candomblé, os búzios são tradicionalmente considerados “abertos” quando o lado manualmente aberto fica para cima, enquanto em Cuba, como na Nigéria, é o lado naturalmente aberto (a fenda da concha) que representa a “boca” pela qual o orixá“fala”26.

A tensão recorrente no terreiro, determinada por todas estas mudanças rituais, resultou na divisão do grupo religioso, levando em pouco tempo à partida de alguns de seus membros mais importantes, que escolheram seguir o grupo de Zamora. Foi nessa época que João Velho, ogã de Odé, o orixá de seu pai-de-santo, assim que Dudu, o filho de Pai Carlinhos, decidiram iniciar-se em Ifá sob a supervisão de outro cubano, Wilfredo Nelson, que tinha atuado como ojugbona27 na iniciação do irmão de Carlinhos, João Assef, em Cuba. Wilfredo Nelson exerceu assim o papel de mestre de cerimônias durante a iniciação e João foi o padrino em Ifá de Dudu Assef, seu sobrinho, e João Velho.

Até então, a colaboração ritual entre os dois irmãos tinha se desenvolvido sem maiores problemas. João Assef atuava nos rituais de iniciação como babalao e era responsável pelos sacrifícios de animais. Enquanto Carlinhos realizava a adivinhação do itá (no terceiro dia de iniciação) seguindo a tradição cubana, João o auxiliava na interpretação do odù (o signo divinatório).

Quando João Velho e Dudu Assef decidiram iniciar-se em Ifá, Wilfredo Nelson viajou para Cuba para trazer o fundamento de Olofi (o Ser supremo), sem o qual, de acordo com a tradição cubana, nenhum babalao poderia ser iniciado. A iniciação aconteceu no ronkó (igbodú), o quarto das iniciações do terreiro. O ronkó e o acesso a este local sagrado tornaram-se o pivô de um novo drama ritual. De fato, somente aqueles que já passaram pelo processo de iniciação podem entrar neste espaço durante os rituais. O fato de Pai Carlinhos, por causa de sua mediunidade, não ter podido concluir sua iniciação como babalao e ter permanecido awo fakan, minava sua autoridade no lugar mais sagrado de uma casa de candomblé. Se no seu terreiro ele comandava todas as cerimônias para os orixás, ele não era aceito em um ritual de Ifá, ao qual seu irmão João, ao contrário, podía legítimamente participar. A hierarquia religiosa do terreiro estava assim sendo profundamente desafiada, já que o status religioso de João Assef era diferente no candomblé e em Ifá. Na prática, se a sua posição como ogã de candomblé o tornava inferior a seu irmão, seu papel como babalao o tornava superior na hierarquia de Ifá. Isto só poderia levar a novas tensões na casa de culto.

João e seu filho Rafael Assef entraram progressivamente em contato com nigerianos, descobrindo, segundo o próprio Rafael, “novas informações, que apontavam para a distorção cultural na tradição cubana”. Da mesma forma, João Velho começou a pesquisar sobre Ifá na internet, descobriu os escritos de William Bascom e de Wande Abimbola, e inscreveu-se num curso de língua yorubá ministrado por um estudante nigeriano. Este confronto entre vários modelos de tradição levou gradualmente o grupo a se emancipar da tutela dos cubanos. João Velho analisa assim esse novo processo: “Eu comecei a trazer informação da África que ia de encontro à tradição cubana. Eles não eram os donos da verdade como nós pensávamos. Nós começamos uma nova pesquisa, que nos ajudou a reavaliar o que eles nos ensinaram.”

Esta busca pelos “verdadeiros princípios” da religião yorubá levou à fundação de um novo terreiro: o Ilé Asè Igba Asuko, no subúrbio de Itaboraí (Estado do Rio de Janeiro). A principal mudança que ocorreu nos rituais foi a instalação de altares coletivos para os orixás, de acordo com a tradição nigeriana. Isto levou a novas divisões dentro do terreiro e outros iniciados decidiram deixar a casa de culto, inconformados com as novas mudanças de rumo.

Em agosto de 2000, Rafael Assef viajou para a Nigéria para ser iniciado como babalawo em Ibadan. Ele foi apresentado diante da sociedade Ogboni e da sociedade feminina das Gelédés. De volta ao Rio, ele juntou as influências nigerianas às tradições cubanas. Pai Carlinhos ainda usava os tratados de Ifá cubanos para interpretar os odùs durante as adivinhações, enquanto acrescentava rezas nigerianas aos rituais. Foi decidido que se deveria voltar a usar as nozes de cola, como se fazia na África, e o coco parou de ser utilizado na casa de culto. O pai de Rafael, João Assef, que tinha sido iniciado como babalao em Cuba, fundou um templo de Ifá em Teresópolis, no estado do Rio de Janeiro, onde começou a realizar as cerimônias de kofá para as mulheres e de awo fakan para os homens. A criação desse templo marcou uma nova fratura entre os dois irmãos. Eles eram agora rivais, em particular quando se tratava da adivinhação e da prescrição dos ebós, os sacrifícios rituais. Estas tensões só podiam ser resolvidas por uma clara separação dos espaços rituais. Na prática, o grupo religioso se dividiu em dois centros, de acordo com as necessidades rituais: o terreiro de candomblé só trataria dos rituais para os orixás, enquanto o templo se concentraria nos rituais para Ifá. Dentro da prática ritual, os dois sacerdócios estavam definitivamente separados28.


5          HIERARQUIA, MEDIUNIDADE E CONFLITO

O encontro de duas tradições distintas da “religião dos orishas” parece reforçar as características estruturais de ambas. A “religião dos orishas” constitui-se assim como um verdadeiro “espaço conflitual”, dentro do qual as tensões agem, de forma paradoxal, como um fator de equilíbrio entre suas diferentes vertentes. Para muitos estudiosos yorubás, Ifá representa um amplo arquivo cultural, um concentrado da filosofia yorubá, que fundamenta as interpretações das práticas e das instituições yorubás. Mas, a maioria destes autores raramente salientam o “papel da adivinhação na micro-política da existência social” (PEEL, 1990, p. 340). Na realidade, onde quer que apareça, Ifá tende a ocupar uma posição hegemônica no âmbito religioso e filosófico. Na Nigéria, Ifá conseguiu assim tornar-se o ponto de articulação dos cultos dos outros orixás: o babalawo desempenha um papel que, segundo Peel (PEEL, 1990, p. 342), é análogo ao do rei, que lidera todos os cultos, exercendo sua mediação entre seu povo e os orixás.

As tensões rituais destacadas na história da casa de candomblé de Pai Carlinhos constituem um caso exemplar dessa capacidade, característica do sistema de Ifá, de ocupar novos espaços, modificando profundamente o equilíbrio interno das hierarquias religiosas. Quando sobreposto a um sistema de crenças como o do candomblé, no qual a mediunidade desempenha um papel muito importante e as posições mais elevadas são ocupadas, de forma geral, por mulheres ou homens homossexuais, o sacerdócio de Ifá, cujas aspirações hegemônicas são principalmente expressas pela dominação masculina no nivel ritual, pode causar uma série de dramas rituais devidos às mudanças na hierarquia religiosa29. O monopólio da adivinhação, assim como o exercício da mediunidade, tornam-se então a principal arena desses dramas rituais.

No entanto, estas tensões não são características somente do encontro entre o candomblé e Ifá. Em Cuba, esta mesma tensão estrutural dentro da prática ritual se expressa na relação entre duas figuras rituais, o oriaté e o babalao, cujos papéis são, ao mesmo tempo, complementares e rivais. O termo “santería” se refere geralmente, em Cuba, a duas reglas (sistemas rituais) diferentes: a Regla de Ocha e a Regla de Ifá. A maioria dos adeptos são conscientes da diferença entre as duas Reglas e se consideram alternativamente membros da comunidade dos olochas (os iniciados no culto dos orixás) ou dos babalaos30. David Brown (1989) tem analisado o período de “profissionalização” do sacerdócio, que vai em Cuba desde a independência (1989) até a década de 1950, quando o oriaté torna-se uma das principais figuras de autoridade no seio das religiões afro-cubanas.

O papel ritual do oriaté retoma o antigo sonho de estabelecer um modelo de ortodoxia para a religião. De acordo com Lydia Cabrera (1980, p. 184), os babalaos cubanos detinham tradicionalmente algumas prerrogativas rituais sobre os olochas, mesmo assim “deve-se concordar que os antigos babalaos eram muito despóticos e queriam dominar os santeros, quem acabavam saindo de seu jugo”. Segundo esta autora, o papel do oriaté emergiu então como sendo o novo Obá (rei) da Regla de Ocha, assumindo tarefas rituais antes a cargo do babalao31. Em Cuba, assim como nos Estados Unidos, onde a religião lucumí é muito difundida, a presença de um oriaté ou de um babalao nos rituais é, ainda hoje, sujeita a negociações complexas sobre suas respetivas competências rituais32. Apesar das controvérsias sobre a maneira “ortodoxa” de realizar os rituais, estes dois especialistas religiosos defendem a legitimidade de sua autoridade ritual através das mesmas revendicações à “tradição africana”. A multiciplicidade das raízes dessa tradição propicia a formação das múltiples variações ao seio da “religião dos orishas”.

Em Cuba e nos Estados Unidos, a organização das atividades rituais na religião lucumí segue assim dois modelos diferentes, que Brown (1989, p. 214) define como dois campos opostos: o “oriaté-centered” e o “Orula-centered”. Nas casas dirigidas por um babalao (Orula-centered) ou que depende de seus serviços, o iniciado em Ifá ocupará sempre na hierarquia um lugar mais alto do que o de um olocha, independente de quando ele foi iniciado. Portanto, um babalao, com dois anos de iniciação, será “mais velho” que um olocha com trinta anos de iniciação33. De acordo com os babalaos, esta seria a consequência lógica da posição dominante ocupada por Orula (Orunmilá) em relação aos outros orixás, uma posição dominante que é com frequência questionada nas casas “oriaté-centered”, onde os oriatés são a mais alta autoridade ritual.

Nas casas de culto dirigidas por babalaos, os adeptos recebem os colares sagrados (elekés) das mãos de seu padrino ou madrina na Ocha (correspondentes ao pai ou à mãe-de-santo de candomblé). O babalao, que se torna seu padrino em Ifá, dá a eles os guerreros – Ogun, Oxossi e Osun, que representa a existência individual, acompanhados por Eleguá (nome dado a Exu em Cuba). Uma vez obtidos estes “resguardos”, o adepto pode realizar a primeira iniciação no culto de Ifá, recebendo a “mão de Orula (Orunmilá)” (awo fakan para os homens e kofá para as mulheres). Ele se vê assim inserido em uma rede de parentesco religioso, que o conecta a diversos ilês ou ramas (linhagens religiosas). O papel desempenhado pelo babalao na vida religiosa de seu afilhado (ahijado) dependerá então dos laços já estabelecidos na sua casa com o culto de Ifá.

Mas a iniciação no culto de Ifá de um olocha (ou olorisha, o iniciado no culto dos orixás) implica, de forma geral, o rearranjo das relações rituais entre iniciador e iniciado. Como vimos, segundo a tradição cubana, o babalao ocupa sempre em uma posição superior à de um olocha, independente da idade de iniciação de cada um. O novo babalao pode, portanto, ocupar uma posição mais alta na hierarquia que seu próprio padrino (iniciador), caso esse último ainda não tenha sido iniciado no culto de Ifá. Da mesma forma, ele pode deixar de demonstrar sua submissão ritual ante seus irmãos “mais velhos”:

Embora aquele afilhado seja “mais novo” na Ocha, o novo sacerdote de Orula está acima de sua madrina ou padrino e de todos os seus irmãos, no que diz respeito à “casa de Orula”. Assim, esta inversão de status pode provocar muitos problemas nas relações pessoais entre eles. Uma regra de respeito entre as duas Reglas reconhece o espaço especial que padrinos ou madrinas ocupam na vida do novo babalao, independente de sua nova posição (BROWN, 1989, p. 188).

A história do terreiro de Pai Carlinhos ressalta esta mesma inversão na ordem hierárquica. Durante sua iniciação em Ifá, foi dito a João Velho que ele havia se tornado “um rei” (Obá sendo o título ritual concedido a um babalao) e que ele poderia até pedir a seu próprio pai-de-santo que se prostrasse ante ele em sinal de respeito. Foi também dito que mesmo os orixás mostrariam este tipo de consideração, prostrando-se em frente ao novo babalao. De fato, alguns de seus irmãos-de-santo, uma vez possuídos por seus orixás, começaram a agir desta maneira, demonstrando publicamente seu respeito ao novo iniciado. No entanto, os orixás demonstram geralmente esse tipo de respeito diante do pai ou da mãe-de-santo que iniciou seus “cavalos”. Prostrar-se diante de um recém-iniciado, que acabou de realizar seus ritos de iniciação em Ifá, torna-se assim claramente uma maneira de questionar a ordem hierárquica estabelecida dentro do grupo religioso.

Os estudos da “globalização da religião yorubá” têm assim que levar em consideração esses rearranjos rituais e as tensões que eles provocam34. O sistema de Ifá e seu corpus de conhecimentos podem ajudar a lidar com estas novas situações, fruto do encontro entre modelos distintos de tradição. Antes da sua viagem ao Brasil, Rafael Zamora descobriu, no signo divinatório que regia a sua vida, a razão última da sua “missão” nesse país. O odù Ogunda Keté explica como todas as religiões podem conviver em harmonia. Um dia, Orunmilá (Orula), o deus do oráculo de Ifá, recebeu a visita de um homem incomodado com a intolerância religiosa que dividia seu povo. As pessoas não conseguiam se entender e todos acreditavam ser os donos da verdade. Após consultar Ifá, Orunmilá declarou que o problema desapareceria quando as pessoas compreendessem que todas as religiões convergem ao mesmo objetivo: a paz que não pode ser obtida sem a real compreensão do Outro.

Seguindo os ensinamentos de seu sinal adivinhatório, Zamora fez de sua Sociedade de Ifá e Cultura Afro-Cubana no Brasil, uma excelente ferramenta para a promoção das trocas rituais entre o culto de Ifá e o candomblé, duas “religiões irmãs”, na sua visão, intimamente conectadas. De acordo com ele, estas não são religiões diferentes ou divergentes, mas dois galhos de uma mesma árvore, que cultuam as mesmas divindades e têm as mesmas origens culturais. Esta idéia se refere claramente a outro odù, Ogbe Odi, que explica como o conhecimento foi distribuído entre todos os homens da terra. Cada um deles possui assim algum fragmento deste conhecimento sagrado. A cooperação religiosa é, portanto, possível e necessaria, porque Olofi, o ser supremo, “compartilhou o conhecimento entre todas as cabeças” (MENÉNDEZ, 1995).

No entanto, esta divisão não traz harmonia ao mundo, porque, segundo os babalawos nigerianos, não é a paz que governa o universo: “A questão mais importante na nossa parte do cosmos é o conflito. O conflito é a ordem do dia, em detrimento da paz” (ABIMBOLA, 1997, p. 3). Somente o sacrifício é capaz de reequilibrar as forças do universo. Mas, para que isto seja possível, torna-se necessário reunir os diversos fragmentos deste conhecimento ancestral que foram dispersos pelo mundo.


6          CONCLUSÃO

A tendência a preservar o conhecimento ancestral e a compensar as perdas rituais é o que historicamente alimenta as religiões afro-americanas. Fragmentos desta tradição foram preservados em Cuba, Brasil e Nigéria. Nas últimas décadas, o processo de fortalecimento das raízes envolve a busca pela “re-africanização” através de cursos de língua e civilização yorubás, assim como as viagens aos centros tradicionais do culto aos orixás, são entendidas como um retorno a um passado imutável, à‘verdadeira’ tradição africana. A reconstituição desta unidade perdida é uma tentativa de reencontrar uma tradição e um passado compartilhados, ambos indispensáveis à criação de uma comunidade de praticantes da “religião dos orishas”.

Este encontro entre “religiões irmãs” é baseado na idéia da existência de uma base cultural comum. Melville Herkovits (1941) foi o primeiro a declarar a existência de uma “gramática cultural”, comum aos diversos povos da África ocidental, que permitiu a formação das culturas afro-americanas. Esta idéia da persistência de um substrato africano, no qual a religião desempenha um papel fundamental, também pode ser encontrada no modelo das “rapid early synthesis” da creolização, desenvolvido por Mintz e Price (1992). Neste modelo expressa-se o mesmo tipo de tensão, presente no trabalho de Roger Bastide (1971; 1974), entre a África e as Américas: de um lado, as “orientações cognitivas” africanas, que permitiram ao escravo adaptar-se à sua nova terra, dando origem às culturas afro-americanas; e do outro lado a idéia de um “núcleo duro da cultura africana”, imune a influências externas, que teria permitido a preservação das tradições africanas no Novo Mundo. Esta idéia de uma unidade de base da cultura africana tem inspirado vários projetos de unificação das práticas religiosas afro-americanas.

Na busca pelos fundamentos perdidos na Passagem do Meio (a viagem nos navios negreiros), o sincretismo entre “religiões irmãs” – candomblé, Regla de Ocha e Ifá – torna-se um “bom” sincretismo, um sincretismo positivo que abre caminhos rumo à “re-africanização” (CAPONE, 2007b). O que se busca hoje no Brasil é uma tradição compatível com a modernidade (PRANDI, 1991), baseada na racionalização das práticas religiosas e na aquisição dos conhecimentos religiosos. Os livros são uma das fontes possíveis para a reconstrução da tradição perdida. Sem um livro sagrado que determine os dogmas da religião, os trabalhos de antropólogos se tornaram ferramentas valiosas para que os praticantes redescubram os fundamentos da religião que podem confirmar o “tradicionalismo” de suas práticas. A irrupção do culto de Ifá no candomblé fornece assim novas formas de legitimação das práticas rituais. O corpus de Ifá, com seu esé (versos) e itán (histórias), é o livro sagrado que os iniciados do candomblé aguardavam. Sua interpretação e readaptação no contexto brasileiro permitem pensar o elo que une as diferentes facetas do culto dos orixás.

Os intercâmbios entre “religiões irmãs”, como o candomblé brasileiro e a santería cubana, têm portanto como objetivo o restabelecimento de um sistema de crenças comum, no qual elementos de distintas religiões afro-americanas se fundem. Mas as tentativas de readquirir esta unidade perdida devem também levar em consideração as tensões estruturais que abalam esse universo religioso, assim como a multiplicidade dos modelos de tradição que constituem o que hoje se chama de “religião dos orishas”.


NOTAS

1 Retomando Max Weber, Renato Ortiz (2002, p. 82) define assim o que se entende por «religião universal»: «Geralmente define-se como religião universal as crenças (judaísmo, confucionismo, bramanismo, budismo, cristianismo, islamismo) cuja compreensão do mundo propõe uma ética na qual o indivíduo escolheria, com maior ou menor grau de autoconsciência, o caminho de sua ‘salvação’».

2 O termo yoruba òrìsà (divindade) é escrito de maneira diferente no Brasil (orixá) e em Cuba (oricha). Em inglês, escreve-se orisha, termo que será usado neste artigo e em todas as referências dentro do contexto internacional dos praticantes das religiões afro-americanas. Os termos orixá e oricha serão mantidos quando se referirem a sistemas de crenças regionais como o candomblé e a santería, também chamada de Regla de Ocha ou religião lucumí.

3 Para a análise das COMTOC ou Congressos Mundiais dos Orishas, de 1981 a 2005, ver Capone (2011, p. 271).

4 Esta expressão designa o conjunto das variantes religiosas que cultuam os orishas, tanto na África quuanto nas Américas. Esta denominação nasceu nos fóruns internacionais, especialmente as COMTOC, onde com frequência religiões afro-americanas, como o candomblé, a santería e o orisha-voodoo, são consideradas variações regionais de um mesmo sistema de crenças baseado no culto das divindades yorubás. Sobre o processo de formação de l’orisha-voodoo, variante afro-americana da santería nos Estados Unidos, ver Clarke (2004) e Capone (2011).

5 O termo yoruba babaláwo (baba-ní-awo, “pai do segredo”) é escrito de maneira diferente no Brasil (babalaô) e em Cuba (babalao). Estes termos serão usados quando se referirem ao contexto brasileiro e cubano.

6 Ver, por exemplo, Turner (1975), Verger (1987[1968]), Cunha (1978), Cobley (1990), Capone (1998 e 2004a), Matory (1999 e 2005), Guran (2000).

7 Felisberto Américo de Souza, que tinha anglicizado seu nome para Sowzer, foi igualmente uma figura importante na fundação do candomblé no Rio de Janeiro (CAPONE, 2004a). Ele foi um dos últimos adivinhos da Bahia, o rival direto do célebre Martiniano Eliseu do Bonfim (VERGER, 1981: 32; ver também CARNEIRO, 1986, p. 121). Seu avô, Bamboxê (Bamgbose), foi um dos fundadores da primeira casa de candomblé, a Casa Branca ou Engenho Velho, em Salvador de Bahia.

8 De acordo com Matory (2005, p. 53), em 1889, um a cada sete lagosianos tinham vivido em Cuba ou no Brasil. O famoso Adechina, que tinha sido escravo em Cuba, teria retornado a África para iniciar-se como babalao, voltando depois a Cuba para exercer a sua arte (SARRACINO, 1988).

9 A linguista Yeda Pessoa de Castro revela situação idêntica para o yorubá tal como é falado nos dias de hoje nos terreiros: “Essa suposta ‘língua-nagô’ falada entre os candomblés não passa de uma terminologia operacional, específica das cerimônias religiosas e rituais [...], e apoiada em um sistema lexical de diferentes línguas africanas que foram faladas no Brasil durante a escravidão” (1981, p. 65).

10 Abimbola escreve sobre a experiência “contra-aculturativa” a qual Lashebikan foi submetido em Salvador. Ele foi o primeiro professor de yorubá na Bahia e um “reconhecido estudioso da língua yorubá”: “Mas Lashebikan era completamente ignorante no que diz respeito aos caminhos dos orixás, já que na Nigéria ele se considerava cristão. Portanto, quando chegou ao Brasil, ele não conseguia entender as pessoas às quais ele devia ensinar. Mas ele logo se adaptou e aprendeu mais sobre os orixás à medida que ensinava a língua yorubá a seus alunos, que eram em sua maioria babalorisa e iyalorisa” (ABIMBOLA, 1976b, p. 634).

11 Iniciado no culto de Ifá. “Os adivinhos de Ifá são mais comumente chamados de babalawo, ou ‘pai dos segredos’ (...) ou simplesmente awó, segredos ou mistérios” (BASCOM, 1969a, p. 81).

12 No Brasil, após a morte dos últimos babalaôs, as mães e os pais-de-santo seguiram praticando adivinhação pelo dilogún ou jogo de búzios, outro sistema baseado na interpretação das caídas de dezesseis cauris. O jogo de búzios passou a ser realizado, na maioria dos casos, através de diversas técnicas, nas quais a memória dos odùs tinha quase completamente desaparecido.

13 Os odùs são também chamados de “caminhos” pelos quais “vêm” os orixás, influenciando, de modo positivo ou negativo, suas ações sobre os homens. Os odùs são considerados entidades vivas e ativas que se deve alimentar e tornar propícias pelos sacrifícios.

14 Para descrição de um ritual de iniciação no culto de Ifá, realizado em São Paulo em 1987, ver Prandi (2003, p. 151).

15 Na verdade, segundo a tradição cubana, um babalaô não deveria nunca ser possuído pelos orixás, ao passo que os iniciados no candomblé incorporam geralemente suas divindades, com a exceção dosogãs e das equedes que não são possuídos pelos orixás. Em Cuba, onde há um grande número de babalaos, a mediunidade não é condição indispensável à iniciaçãono culto dos orixás e as mulheres não podem ser plenamente iniciadas nos segredos de Ifá. Elas só podem receber o kofá, o primeiro nível de iniciação em Ifá, tornando-se apetebís (assistentes) do babalao. Em outro trabalho, analisei as questões de gênero no culto de Ifá (CAPONE, 2011, p. 226).

16 Rafael Zamora faleceu em fevereiro de 2011, após morar por mais de vinte anos no Rio de Janeiro. Em abril do mesmo ano, faleceu também Adilson Martins, deixando um grupo de iniciados ligados à Ordem Brasileira de Ifá (OBI), fundada por ele.

17 O candomblé é dividido em “nações”: nagô (ketu, efon, ijexá, nagô-vodun), jeje, angola, congo, caboclo. O conceito de nação perdeu seu significado étnico original e agora possui sentido mais “político” e teológico. Para uma discussão deste conceito, ver Costa Lima (1976) e Parés (2006).

18 A história desse terreiro foi reconstruida durante uma longa entrevista realizada no Rio de Janeiro com João Velho e Rafael Assef, dois membros desta casa de candomblé. Os nomes das pessoas envolvidas não foram modificados à pedido dos dois entrevistados.

19 A mãe pequena é a assistente direta do pai ou da mãe-de-santo. Ela também é conhecida como iyá kekeré, “mãe pequena” em yoruba. Um ogãé um cargo ritual reservado a homens que não entram em transe e que atuam como protetores do grupo de culto, assim como tocadores e sacrificadores de animais. No candomblé, um pai ou uma mãe-de-santo não pode iniciar seu próprio esposo ou seus próprios filhos. Sera então preciso pedir a outro sacerdote de executar o ritual de iniciação para eles.

20 No candomblé, a expressão “feitura de santo” é usada para designar a iniciação.

21 A expressão “zelador de santo”, equivalente a pai-de-santo, possui, entretanto, significado sutilmente diferente. De fato, se o pai-de-santo é geralmente o iniciador da pessoa, o zelador é aquele que cuida de suas entidades. Assim, esta segunda expressão não envolve nenhuma noção de parentesco religioso direto.

22 Em um trabalho anterior, analisei o processo de “reafricanização” no candomblé (CAPONE, 2004a).

23 O dilogún é um método de adivinhação no qual os deuses, através de Exu, falam diretamente através das caídas dos búzios. No Brasil, substituiu a adivinhação com o opelé, a corrente adivinhatória usada em Ifá, à qual são presas oito pedaços de coco (ou de outros tipos de nozes ou sementes). Cada combinação remete a um odù (signo divinatório) do sistema de Ifá.

24 A moyuba,do yoruba mojúbà, é a invocação que antecede todo ritual lucumí. Ela honra os mortos da família do sacerdote assim como sua genealogia religiosa.

25 Esses dois rituais visam a “dar à luz” as divindades. Para o lavatorio (lavagem), prepara-se o omiero (ervas maceradas na água, às quais se acrescentam certos elementos específicos a cada divindade), noqual são lavadas as diferentes partes do altar individual. O ritual do paritorio (parto) marca o laço defiliação entre o orixá que “vai nascer” e aquele que “o engendra”, que pertence de forma geral ao iniciador (padrino ou madrina de santería). A circulação da água de um receptáculo a outro simboliza a continuidade do laço ritual entre iniciador e iniciado.

26 Hoje em dia, muitas casas de candomblé têm “corrigido” a forma de ler os búzios, sob a influência diretas dos especialistas rituais – nigerianos e cubanos – ou dos livros sobre a adivinhação.

27 O ojugbona equivale ao pai ou à mãe criadeira no candomblé. Em Cuba, ele é considerado o segundo padrino do iniciado, aquele que toma conta do noviço durante o período da iniciação.

28 Estas duas casas de culto foram fechadas como conseqüência da morte de João Assef, seguida pela de seu irmão Carlinhos.

29 Se, na Regla de Ocha, a orientação sexual não é um fator de exclusão, permitindo aos homossexuais que progridam em suas carreiras religiosas, o culto de Ifá, ao contrario, é aberto somente aos homens heterossexuais. As mulheres podem tornar-se madrinas (chefes de culto) e ter um certo número de afilhados/as (ahijados), enquanto os homens podem seguir seu itinerário religioso até serem iniciados no culto de Ifá ou confirmados como oriatés, os especialistas dos rituais de iniciação e da adivinhação pelos búzios. Este cargo ritual, antes mantido por mulheres (RAMOS, 2003), é hoje a exclusividade dos homens. Uma santera pode receber o kofá, tornando-se apetebí (a assistente do babalao), mas ela não poderá exercer as mesmas funções que um homem plenamente iniciado em Ifá.

30 Um olocha pode também ser iniciado no culto de Ifá, tornando-se em Cuba um oluwo, ou seja um babalao que antes passou pelos rituais de iniciação da Regla de Ocha. Mas, uma vez iniciado em Ifá, ele se identificará na maioria dos casos como babalao e não mais como olocha, destacando dessa forma a identidade religiosa mais prestigiosa.

31 Willie Ramos (2003) defende, ao contrário, a primazia dos oriatés sobre os babalaos cubanos, apresentando novas evidências históricas que questionam as informações dada pelos babalaos à Lydia Cabrera nos anos 1970.

32 Em outro trabalho (CAPONE, 2011), analisei os conflitos entre babalaos e oriatés nos Estados Unidos. Estes conflitos sintetizam as tensões existentes no campo das religiões afro-cubanas.

33 Tanto o candomblé quanto a santería são baseado no “princípio de senioridade” que estrutura as relações hierárquicas nos grupos de culto. A “idade” do indivíduo depende da data de sua iniciação – idade de santo – e os “mais novos” devem mostrar uma attitude de respeito face aos “mais velhos”.

34 Sobre este assunto ver, entre outros, Oro e Steil (1997), Clarke (2004), Olupona e Rey (2008) e Capone (2001-2002; 2004b; 2011).


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